"A desgraça é variada."

Poe

 

À Elisa, minha primeira leitora. 


O COZIDO

O cheiro forte do tempero invadia todo o apartamento. Muito colorau com pimenta. Era isso! Entrava pela janelinha do banheiro, única comunicação com o apartamento vizinho do corredor de trás.

 

Levantou-se e foi lá.

 

Apertou a campainha. Uma jovem senhora abre a porta, não sem antes ver pelo olho mágico. Reconhece o vizinho do outro lado do corredor. Identificou-o pela barba. Já pegaram o elevador algumas vezes.

 

Apesar de ter saído do banho e ainda trazer na cabeça uma toalha para enxugar os cabelos, ela o atende.

— Oi, posso ajudar?

— Oi, vizinha.  Sou do 404... Não dá para não notar  que você está cozinhando...

Rindo e meio sem entender o porquê a "visita" (mais para um incômodo) inusitada, ela espera ele continuar.

— É que eu... —fala com aquele receio de dizer o que quer com medo do não- senti o cheiro da sua carne e vim... Pedir um pedaço... Sabe... Moro só, e não fiz feira, na verdade vou fazer hoje à tarde... Mas o cheiro da carne me deu uma fome (Fala isso de maneira expansiva e fazendo aquele som de crianças quando estão achando uma comida gostosa)...E vim pedir um pedaço. Pode ser pequeno, sem problemas, da sua carne.

 

A vizinha fica meio sem graça, não sabe o que responder. Tinha carne o suficiente, só que era para ela. Tentou argumentar, meio constrangida. Mas, sempre com a porta meio cerrada. E, como o vizinho insistia, ela puxou o pino de segurança e colocou no lugar com a correntinha. Não que aquilo protegesse alguma coisa, já estava quebrado mesmo; ao menor empurrão a porta se escancarava de vez, mas pelo menos psicologicamente, servia.

 

O homem percebendo o receio diante da sua abordagem e entendendo que ela não lhe daria um pedacinho sequer de sua carne, pede desculpas pela, enquanto a vizinha fecha a porta.

 

A porta se escancarou!

 

Ela grita. Mas, rapidamente o invasor avança e a faz calar metendo-lhe na cara a toalha que ela trazia nos cabelos. O instinto não a deixa ficar inerte. Procura desvencilhar-se, não consegue. O cheiro da carne está mais forte agora que ele entrou no apartamento. Pede-lhe para ficar quieta.

— Eu prometo!

— Promete?

— Sim!

— Boa menina. Quero só um pedaço da carne.

— Pode levar tudo. Vá, pode pegar...

— Não, e os seus filhos?

— Morro só. Não se preocupe comigo tenho mais para fazer...

— E aquele meninos?

— Meus sobrinhos... Pode pegar a carne e ir...

— Posso mesmo?

—Sim, sim...

— Obrigado, vizinha.

 

E vai em direção à cozinha pegar a carne que lhe despertara tanto desejo a pondo de invadir o apartamento e agredir a sua moradora.

 

No fogão está a panela. Nem a abre. Ainda quente. Só tinha ela no fogo. Dá uma conferida para ver se a vizinha estava sentadinha no mesmo lugarzinho onde a deixara e, cai no chão esfaqueado.

 

Quase morto. Vendo o rosto da vizinha. Que agora não era mais de uma meiguisse passiva, mas de prazer animal. 

 

O homem mexeu o pescoço e viu no banheiro uma mulher caída, igualmente ensanguentada, já morta.

 

— Ela também veio atrás do cozido de ontem. "Cozinho muito bem." Disse a moradora do apartamento 406.

 

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George Itaporanga
Enviado por George Itaporanga em 30/01/2023
Reeditado em 18/02/2024
Código do texto: T7707660
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