Boa Esperança

Capítulo I

Uma densa névoa envolvia a manhã, na pequena cidade de Boa Esperança, lugarejo remoto dos pampas gaúchos. Não se podia ver a pequena ponte de madeira que atravessava o riacho que ali passava, nem sequer os frondosos Ipês que coloriam aquelas terras. Era inverno, e o frio castigava os infelizes obrigados a começar tão cedo sua jornada. Que inveja tinham eles dos que ainda estavam envoltos em seus sonhos de edredon, protegidos do vento por suas paredes de madeira.

Seu Paulo, o leiteiro, era daqueles que apesar de acordar cedo há quase trinta anos, ainda não se resignara. Amaldiçoava todo dia o seu velho e confiável despertador de corda, que jamais falhara nestas três décadas de entrega. É verdade que geralmente ele se acordava bem antes da hora de levantar, mas gostava do calor das cobertas no inverno, e de ficar estirado na cama sem mover- se , sob a mira de um ventilador, no verão. Ainda assim, nunca se atrasara para o seu ofício, excetuando-se as duas vezes em que ficou doente: uma por pegar uma forte gripe que lhe deixou com mais de quarenta graus de febre, e outra quando atacado fortemente por sua úlcera, quando ainda não a havia operado.

Além dele, ainda outros se aventuravam a enfrentar os rigores do frio pampeano: o Dr. Castro, que clinicava na cidade há vinte e dois anos, desde que passou num concurso público e foi nomeado para atender no que é até hoje, o único posto de saúde de Boa Esperança; e ainda a Dona Marilda, mulher do dono do armazém, que apesar de só abrir sua janela lá pelas nove da manhã, todos sabiam que já às seis estava desperta e atenta a tudo o que ocorria na cidade, acompanhando tudo através das frestas de sua veneziana, enquanto tomava calmamente seu café da manhã e adiantava alguns dos seus afazeres domésticos.

Entretanto, ao contrário de ambos, Seu Paulo não prestava atenção em nada que não lhe dissesse respeito. Egoísta por um lado, discreto e avesso à fofocas por outro, ele seguia sua rotina solitária e modorrenta. Conseguira a proeza de ser quase invisível, num lugarejo de não mais que trezentas pessoas. O motivo residia em seu passado: fora casado quando jovem e depois de dois anos de casamento, acordou certa manhã sem ela ao seu lado. Sua mulher fora embora, segundo dizem, com um homem desconhecido, levando junto a alegria, a esperança e os sonhos que ele alimentava. Os dois teriam sido vistos na saída da cidade pelo Seu Rezende, que confidenciara o fato ao Dr. Castro, fonte principal de notícias do lugarejo. Logo, toda a cidade soubera do ocorrido, e Seu Paulo teve vontade de fugir da vergonha que sentia dos olhares de todos. Seu Paulo não fugiu fisicamente, é verdade, mas cuidou para que seu espírito escapasse para longe, levando consigo a vergonha massacrante que sentia então e ficando com o resto que sobrou: quase nada.

Esta era Boa Esperança: a pequena vila esquecida pelos cartógrafos, e às vezes por Deus, segundo os vitupérios de algumas de suas almas amargas.

Mas esta manhã apenas começara igual às outras. Devido à névoa, ninguém ainda notara o estranho que se aproximava lentamente, com uma mochila surrada nas costas e uma grande mala preta na mão. A cena de sua entrada na cidade parecia sugerir que algo iria acontecer, mais cedo ou mais tarde.

Seus olhos tinham como alvo o infinito. Eram cheios de brilho, e ao mesmo tempo, vazios de sentido. Vestido de preto em toda a extensão de seus 1.85cm, esta parecia ser também a cor de sua alma, ao menos à primeira vista. Como a primeira vista dificilmente deixa de ser igual à última, ao menos para as mentes mais tacanhas, já imagina-se o impacto resultante de sua chegada em Boa Esperança, já que a simples aparição de um forasteiro naquele lugar, por sua raridade, já seria um grande motivo para alarde entre a população local. Mesmo as pedras das ruas pareciam tremer ante seus passos.

Ele andava sem pressa, e não parecia sequer se importar com os olhares de medo dos quais era alvo. O primeiro a vê-lo foi Seu Paulo, que quase caiu da bicicleta na qual entregava o leite. Logo Seu Paulo, que estava sempre perdido em seu mundinho, sem atentar para quem ia ou vinha. O choque foi tamanho, que ele ficou olhando para o estranho atonitamente, sem perceber o ridículo da situação. O homem passou reto por ele, sem ao menos lhe dirigir um único olhar, ou ainda, sem que este sequer o evitasse. Era como se ele, sua bicicleta e suas garrafas de leite não existissem.

À medida em que entrava no lugarejo, os olhares o procuravam e se procuravam uns aos outros, como que se, entre si, fizessem em silêncio as perguntas óbvias a serem feitas naquelas circunstâncias. Dona Marilda, que estranhara o ritmo dos passos que não conseguira reconhecer como sendo de nenhum dos outros moradores locais, chegou a abrir a janela para ver quem era. Cena inédita, era sua janela aberta antes das nove! Seu Apolinário, o padeiro, que acordara cedo para esperar a remessa semanal de farinha que vinha da cidade, chegou a olhar duas vezes rápidas, antes de se virar pela terceira vez e em definitivo, a fim de acompanhar a trajetória do forasteiro.

No rastro de seus passos, podia se ouvir um burburinho, que foi aumentando aos poucos e acordando outras pessoas, mesmo as mais preguiçosas. Pouco depois do homem chegar ao seu objetivo, que era a pousada da cidade, que tivera sido ocupada pela última vez há mais de uma ano, quando um grupo de surfistas que viajava rumo a uma pequena praia ao sul resolvera parar ali para descansar antes de seguir viagem.

Agora, mais da metade da população local se encontrava nas portas de suas casas, ou em pequenos grupos reunidos. Boa Esperança estava quase em combustão.

Capítulo II

A estas alturas, o dono da pousada, que era também o contabilista dos poucos fazendeiros locais, era a única figura exultante por ali. Já podia contabilizar enfim algum dividendo extra advindo do investimento em construir aqueles apartamentos no fundo de sua casa. A visão do lucro dizimou seu possível medo e desconfiança do estranho de negro. Recebeu-o alegremente, com um sorriso bonachão em seu rosto redondo:

- Olá amigo! Em que posso lhe ajudar? – perguntou o Sr. Couto.

- Bem, gostaria de um apartamento – respondeu o estranho, um tanto sério, mas sem qualquer traço de antipatia.

- Temos dois grandes e o resto são de apenas três peças. Quer dar uma olhada?

- Não será preciso. Fico com um dos grandes.

- Ok! É para quanto tempo, senhor?

- Gostaria de pagar por dia. Dou uma entrada referente a quatro dias agora, e na saída quito o total – falou o homem de forma resoluta.

- Como quiser, senhor.

Nisso, uma multidão de olhares se dirigia para a pousada. O que estaria querendo aquele estranho num lugar tão distante de tudo? Provavelmente estivesse de passagem para algum lugar, apostava a maioria. Porém quando ficaram sabendo que ele não alugara o quarto por um dia apenas, mas sim por tempo incerto, as especulações foram se tornando cada vez mais criativas e fantasiosas. A bolsa de apostas, se por ali houvesse uma, estaria fervilhando.

Todos viram, através da grande janela da frente da pousada o vulto negro do homem indo em direção aos fundos. Não demorou dois minutos para que alguns deles fossem até a pousada a fim de descobrirem o que disse o homem, quanto tempo iria ficar, se tinha sotaque, etc... O dono da pousada, não sabia sequer a quem responder primeiro, tal era a confusão que ali se estabelecera. Tratou então de dispersar os enxeridos, com medo de que seu hóspede se sentisse incomodado com o alarido. Sob protesto, foram todos embora, com exceção de João Esponja, como era conhecido na cidade o biscateiro da cidade.

Como fazia supor seu apelido, João estava sempre em estado um pouco alterado, a não ser quando em serviço, pois o dever lhe fazia miraculosamente ficar suficientemente sóbrio para fazer o seu trabalho de forma sempre competente. João entendia de tudo um pouco e usava isso em seu favor, num lugar em que as pessoas não tinham a quem mais recorrer em casos de emergência banais, como o estouro de um cano, ou algum problema de instalação elétrica. Enfim, para problemas como esse, chamava-se sempre o João Esponja, o faz-tudo de Boa Esperança.

Pois João, estando em seu estado normalmente alterado, resolveu que não sairia dali sem as respostas que queria, e pronto! Não havia Cristo que o fizesse mudar de ideia. Falava de modo enrolado, como na maioria das vezes, e a cada vez que falava, o fazia num volume mais alto. Até que o Sr. Couto perdeu a cabeça e partiu pra cima dele aos tapas. João recuou até a porta, tentando revidar os golpes, sem sucesso algum, evidentemente. Até que saiu porta afora, xingando o Sr Couto de todos os nomes possíveis e imagináveis.

Dali em diante a situação foi se tornando aparentemente mais calma na cidade, com pequenos focos de fofoca aqui e ali, mas que só poderiam ser notados por quem não conhecia a calmaria e o silêncio que ali imperavam antes.

Na hora do almoço, um numeroso grupo se reuniu na praça, em frente à pousada, para conversar despretensiosamente. Claro que não era para que cuidassem se o forasteiro iria ou não almoçar, o que iria almoçar, e se iria sair depois do almoço ou voltar pro seu quarto. Era apenas uma conversa banal, que se realizava coincidentemente em frente à pousada. Lá pela uma hora da tarde, o

Sr. Couto se dirigiu ao quarto do homem, com uma bandeja e uma garrafa de vinho, fato que estranhamente dispersou o grupo persistentemente reunido na praça.

A tarde foi tranquila e em nada transparecia nas ruas do lugarejo o tumulto da manhã. O silêncio voltara a ser a harmonia de fundo, a moldar o ritmo dos passos, dos poucos que percorriam aquelas ruas de pedra. Mas no íntimo de cada um a curiosidade e a ansiedade não haviam diminuído, pelo contrário: parece que quanto maior o silêncio do estranho, maior a expectativa geral. Ainda mais depois da história contada pelo Dr. Castro, que ouvira falar que em uma cidadezinha na fronteira com o Uruguai, um homem vestido todo de negro teria incendiado boa parte da cidade, que como Boa Esperança, era feita de casas de madeira. Dizem que o fogo espalhou-se rapidamente, e que só não pegou em todas as casas porque o vento não ajudou o intento do assassino. Ainda assim, 80% das casas ardeu em chamas, ceifando centenas de vidas em uma só noite.

A história, como não poderia deixar de ser, espalhou-se rapidamente por Boa Esperança, criando um certo pânico silencioso entre as pessoas. Era muita coincidência e geralmente tamanha coincidência só acontecia nas novelas e filmes, nunca na vida real.

Alguns dias se passaram sem que o homem saísse de seu quarto, com exceção de uma única vez, em que foi pedir uma lâmpada, já que a do seu quarto havia queimado. Este fato, a coincidência e a raridade de algum estranho por ali aportar, fizeram com que muitos moradores adquirissem uma inacreditável certeza de que era aquele o autor do assassinato relatado pelo Dr. Castro. Era daquelas certezas que as pessoas costumam ter sobre as outras, ainda que nem sempre acompanhadas de alguma convivência. Juntavam as cores da roupa, o silêncio do homem, a grande mala que trazia e ainda o fato de que procurara um fim de mundo para ficar, como se fossem provas, mais do que indícios de alguma culpa. Dr. Castro, na verdade, sequer sabia se tal história era ou não verdadeira, mas a passara como se fosse, como tudo o que contava. Este era o seu costume, e as pessoas lhe davam crédito quando suas histórias corroboravam com suas teses e expectativas.

Quinze dias se passaram, e o homem só havia sido visto duas vezes: uma pela Dona Marilda, quando este fora perguntar ao Sr. Couto onde poderia comprar livros. Este lhe dissera que uma vez a cada mês passava por ali um tipo de caixeiro viajante dos tempos modernos, com um caminhão cheio de badulaques. Provavelmente teria livros para vender. A outra vez, fora pelo João Esponja, que estava consertando uma calha da casa ao lado da pousada, quando o homem abriu a porta de seu apartamento e olhou em direção à janela da rua da pousada, como se procurasse algo ou alguém. Quando este percebeu que João o vira, o cumprimentou levemente com a cabeça e entrou um tanto quanto rapidamente e trancou-se novamente. Segundo João, ele agira como alguém que tem algo a esconder.

- É um bandido, sem dúvida! – sentenciara o mais novo Juiz da Comarca de Boa Esperança, entre um soluço e outro.

João não era lá muito respeitado por ninguém, mas sua história encontrou eco na impressão de boa parte da cidade. Tantas pessoas com a mesma opinião não poderiam estar enganadas.

Dois dias mais tarde, viram o homem andando pela cidade às três da madrugada, olhando para as casas, para a praça, e embora estivesse só nas ruas, caminhava com certa pressa, como que com medo de que o vissem. Andou por uns vinte minutos e entrou novamente em seu apartamento.

Padre Juarez, que até então se mantivera neutro na questão, opinara que era hora dos moradores fazerem uma reunião e decidirem que atitude tomar em tal circunstância. Uma coisa era certa: não poderiam ficar de braços cruzados, ou isso acabaria por lhes custar caro. Começou a arrebanhar seus fiéis discretamente após as missas, e a lhes perguntar o que achavam do perigo iminente que corriam. Todos se mostravam preocupados, mas não sabiam bem o que fazer. Talvez devessem esperar que ele fosse embora, o que certamente aconteceria dentro de pouco tempo, achavam. Entretanto, em alguns minutos de conversa, saíam da igreja resolutos de que algo deveria ser feito. Através do Dr. Castro, que se relacionava com todo mundo, marcou-se uma reunião com as pessoas mais influentes do povoado. Seria no Domingo, no horário da missa, para que não houvesse perigo de chamarem a atenção do estranho.

Seu Rezende, que era já um septuagenário de opinião respeitada, achava que deveriam ir à reunião já armados, para o caso da decisão ser de um ataque preventivo, bem ao estilo George Bush, o qual Seu Rezende tanto admirava. Dona Rita, que era professora, ponderou que tudo parecia muito precipitado. Ninguém tinha nenhuma prova de que aquele homem fizera algo, ou que ainda viria a fazer. Seu Rezende, elevando o tom de sua voz, o que raramente acontecia, fulminou:

- Que ele é bandido, isso está na cara! Qualquer pessoa de bom senso pode ver. Ou agimos antes dele, ou ele não nos deixará agir.

- Na reunião decidiremos tudo! - resolveu o Padre.

Capítulo III

Sentado numa escrivaninha, o estranho parecia alienado do que acontecia lá fora. Imerso em seus próprios pensamentos, olhava fixamente para sua máquina de escrever. Parecia querer imaginar um mundo distante e intangível, ou ainda, querer entender um mundo tangível para o corpo, mas não para a mente.

Por suas mãos, tomavam forma lugares e pessoas. Tantos sentimentos a serem descortinados e compreendidos. Tantas dores a serem lastimadas e amores a serem cantados de forma poética. Tantas situações possíveis e escolhas a serem feitas. Cada linha era um destino diferente que se abria para seus filhos fictícios.

Os litros de café o ajudavam a enfrentar o inevitável sono, e nisso já estava viciado. Sua expressão denunciava um evidente cansaço, pois não é fácil ser o deus de tantas vidas.

Pilhas de papel espalhadas pelo apartamento, além de roupas atiradas pelo chão chamaram a atenção do Seu Couto, quando este lhe foi alcançar o almoço, e deu uma espiada pela porta entreaberta. Mas nem a bagunça, nem a reação dos outros moradores contra o estranho lhe preocupavam, desde que no último dia, ele não sumisse sem efetuar o pagamento. Estranhara, no entanto, que o homem só usasse velas, sem jamais ter ligado luz elétrica. Não poderia ser por economia, já que o preço da luz já estava incluído na diária.

- Mas que diabos! Se o homem quer usar velas, que use velas. Menos gasto para mim! - pensara o velho contabilista.

E já nem se importava com o som da velha máquina de escrever do estranho, que cortava o silêncio noturno e o seu sono. Algumas noites de insônia, talvez até mesmo alguns meses, não lhe fariam mais mal do que o bem que os lucros do hóspede lhe fariam.

E assim passaram-se as noites até o Domingo. A calmaria parecia ter retornado à Boa Esperança, ao menos na aparência das coisas. Assim o estranho também pensara.

Capítulo IV

Nem todos os entardeceres de domingo são belos, mas quando pensamos em um, nos vem a mente um belo e confortável Sol, pássaros cantando suas melodias de acasalamento e jovens casais de namorados passeando de mãos dadas nos parques. Aquele era um final de tarde de domingo diferente, não só por ser em Boa Esperança, e não haverem jovens casais de namorados, nem parques, mas também porque o Sol não brilhara em momento algum do dia, além do que, ventava persistente e atipicamente para a época do ano.

Ainda assim, dificilmente o mau tempo afastava algum fiel da missa. Ainda mais naquele fatídico dia em que o ritual católico daria lugar a uma decisiva reunião. Por isso, não surpreendia que a igreja estivesse cheia, abrigando quase todos os moradores do lugarejo. Só não haviam ido as crianças, que haviam ficado na pequena escola que havia, sob os cuidados da supervisora, já que a professora não quisera perder a discussão.

Quando Padre Juarez viu que estavam todos no átrio apenas a espera do início, ele subiu ao altar a fim de começar o que para muitos poderia ser visto como um júri popular. A batina seria facilmente confundida com uma toga, naquelas circunstâncias por um leigo em direito. Para aumentar a coincidência do cenário, o padre, para chamar a atenção dos presentes, bateu no altar com um pequeno martelo de metal que trouxera para esta finalidade. Ao soar das batidas, o silêncio fez-se imediato e absoluto. Todos então, dirigiram seus olhares para o rosto de expressão grave que ostentava o sacristão e puderam sentir a

importância do acontecimento e de suas possíveis implicações futuras. Neste momento ecoaram as primeiras palavras do padre:

- Queridos irmãos, estamos hoje aqui reunidos, na casa de Deus, não para celebrarmos sua palavra através do ritual, como de costume fazemos, mas celebrá-la através de nossas atitudes. Esta é uma ocasião rara e como tal deve ser encarada. Temos, sob os nossos ombros, o peso do dever e ele se resume a fazermos justiça. Quando um de nossos irmãos erra, temos o dever divino de fazê-lo pagar pelo seu erro. Deus age através de cada um de nós neste momento, não nos permitindo ceder à piedade ou medo. Este é um daqueles raros momentos em que não agimos mais como meros homens, mas sim como filhos de Deus.

Sabemos que há um estranho vivendo nesta cidade, e que este estranho a escolheu como túmulo para enterrar os seus pecados atrozes. A pergunta que se impõe é: quem aqui está disposto a ser conivente com isso? Quem aqui, na hora do julgamento final, quer ser confrontado com a sua covardia que até mesmo poderá vir a ser fatal para si mesmo e para seus filhos? Pois eu vos digo que ninguém que seja realmente filho de Deus estaria disposto a este fim.

Só nos cabe então um caminho, meus irmãos: aceitarmos o encargo que nosso Pai nos deu e cumprirmos sua vontade sem a questionarmos, pois quem somos nós para irmos de encontro àquilo que Deus quer. Somos apenas pequenos grãos imersos num imenso deserto. Assim como os grãos estão sujeitos aos caprichos do vento e seria antinatural eles o contrariarem, nós estamos sujeitos à vontade divina e da mesma forma, nossa natureza é a ela nos entregarmos.

Bem, creio que já expus a palavra do Senhor. Agora, que falem os homens.

Quando terminou de falar, o padre, que até então estivera absorto em suas palavras, olhou para os seus fiéis, e o que viu, de nenhuma forma o surpreendeu: a maioria dos homens e mulheres mantinham seu olhar altivo e aparentemente decidido, ainda que houvesse uma parcela razoável de pessoas aparentemente indecisas. Mas ele sabia que a parcela mais influente era a decidida, e isso o tranquilizava. As pessoas começaram então a manifestar-se. Como sempre, iniciaram os menos inibidos. Dr. Castro, claro, teve a primazia:

- Amigos de Boa Esperança, como todos sabem, houve um terrível assassinato em uma cidade na fronteira com o Uruguai, e que provavelmente, este homem que aqui apareceu do nada, seja o autor. Sendo assim, se nada fizermos a esse respeito, todos nós correremos o risco de acordarmos qualquer dia com este maníaco em nosso quarto pronto para nos matar e fugir. Além do que, seria inadmissível sermos coniventes com um ato de tamanha barbárie como o que este homem cometeu. Então, se vamos fazer algo, que seja algo que resolva a situação de vez e rapidamente, sem que lhe seja possível suspeitar de que conhecemos seu crime.

- Bem, então o que o doutor sugere que façamos? – perguntou o Seu Rezende, fazendo uma daquelas perguntas que todos sabem a resposta, mas que ainda assim precisa ser feita.

- Me custa muito admitir que a única saída possível seja a mais radical, mas a situação assim o exige. Como bem disse o padre em seu sermão, não podemos nos acovardar neste momento. Proponho a todos nos encaminharmos à pousada e darmos um fim na insegurança que tomou conta da cidade, e na injustiça de haver um assassino frio e sanguinário vivendo livremente.

Podem imaginar que para um homem que vive para salvar vidas, esta decisão é muito difícil, porém seria mais se outra alternativa houvesse – respondeu o doutor.

Houve um certo burburinho quando Dr. Castro silenciou. Até que Dona Rita, acostumada aos hábitos escolares, levantou o braço e pediu a palavra:

- Amigos, creio que conheço quase todos que aqui se encontram, e conheço muito bem. Entretanto, parece-me que ninguém aqui está percebendo a gravidade da atitude que estamos prestes a tomar. Nada sabemos deste homem, e ainda assim estamos dispostos a condená-lo à morte, sem que tenhamos qualquer prova de sua culpa. Eu como professora, não posso concordar com isso. Não me parece que uma igreja pode ser usada como um tribunal, nem que um sacerdote possa ser revestido com os poderes de um magistrado. Muito menos que um réu possa ser considerado culpado sem qualquer tipo de defesa. O que presencio hoje aqui, nada tem a ver com justiça, mas sim com uma espécie de tirania popular alimentada por uma necessidade de algumas pessoas de aplacarem seus medos da maneira mais fácil. Medos sim, pois o homem teme tudo aquilo que desconhece, e este homem é para nós o desconhecido. Ao invés de decidirmos pela saída mais fácil, que é tirar sua vida, e assim nos livrarmos de um problema que talvez nem problema seja, poderíamos tentar conversar com ele abertamente, de forma madura e civilizada. Assim daremos uma chance a ele de continuar vivo, e a nós, de mantermos nossas mãos e consciência limpas.

- Isso é papo furado, professora! Pode ser bonito nos livros, mas a realidade nos exige atitudes bem diferentes. Este homem pode muito bem se fingir de uma pessoa de bem, ainda mais se o alertarmos de nossas desconfianças. E então, um dia quando acordarmos, poderemos nos deparar com a mesma cena que os moradores daquela cidadezinha se depararam. Não é hora de pensarmos em ética ou em valores, mas sim de pensarmos em nossas vidas.

- E convenhamos professora, conversarmos com ele? Como chegaríamos até ele e perguntaríamos: com licença, mas gostaríamos de saber se é o senhor o assassino que está sendo procurado por todo o estado. Que efeito extraordinário isso teria! Ele certamente nos confessaria todos os seus crimes sem relutar e ainda, imploraria por perdão divino de joelhos ante o padre. Ora! Sejamos realistas, meus caros! – disse Nakamura, o gerente do pequeno e único posto bancário que havia na cidade.

- É isso aí! – reforçou Seu Paulo saindo de sua eterna invisibilidade, para apoiar a solução final.

Nisso, instalou-se um alvoroço na igreja. Todos falavam ao mesmo tempo e em sua grande maioria, para apoiar as palavras do gerente. Ninguém queria correr o risco de conviver com um assassino. Palavras de ordem começaram a ser gritadas por alguns mais exaltados, o que rapidamente se espalhou. Em segundos, a igreja parecia um estádio de futebol, com as torcidas gritando seus refrãos. A diferença é que ali os discordantes silenciavam.

Mas tal silêncio nada representava em meio àquela comoção gerada pelo discurso do Padre, e a exaltação de Nakamura. Nada poderia apagar aquela sensação de medo e a reação natural, dela proveniente. Nos olhos de quase todos não se podia ver qualquer rastro de dúvida; nos olhos de uma minoria, alguma dúvida; nos olhos de não mais que cinco, um certo pavor e incompreensão com relação ao que estava acontecendo.

O impulso natural da pequena multidão foi dirigir-se à pousada, não demorando sequer um minuto para lá chegar, visto que elas não distavam mais que duzentos metros uma da outra. Chegando na frente do prédio, houve de início um certo arrefecimento da ira, como que o temor pelo que fossem encontrar lhes tivessem tomado de assalto, repentinamente. Mas esta pausa não durou mais que um minuto. Logo, a supremacia matemática se materializou na mente de cada um, mostrando que o temor não tinha lógica alguma. A horda retomou sua exaltação, e os gritos se fizeram ouvir de novo. Mas agora, eles podiam ser ouvidos pelo homem e pelo dono da pousada.

Seu Couto, apavorado, sabia que não tinha outra alternativa senão sair à rua para tentar acalmar o povo. Hesitou por uns momentos, até que João Esponja começou a forçar o portão de entrada. O velho viu que só lhe restava intervir de alguma forma.

Quando ele colocou seu barrigão pra fora da porta, a gritaria aumentou, sendo que já não mais se distinguia o que cada um falava. Uma palavra aqui, outra acolá, mas no geral, pouco se entendia o que diziam. Seu Couto tentou começar a falar, mas no mesmo instante João Esponja e mais uns companheiros seus de secar copos, conseguiram arrebentar as correntes que trancavam o portão.

O que se viu a seguir, poucos na cidade gostam de lembrar. Mesmo os mais exaltados admitem que aquela noite lhes fez ter pesadelos por muitos e muitos anos. O corpo de Seu Couto e um casal de velhos sendo pisoteados; a casa da frente sendo saqueada e destruída; uma mulher que tentava conter a fúria de seu marido sendo agredida a socos, sem que ninguém interviesse. Nas mãos de alguns surgiam armas até então escondidas: facas, peixeiras, pistolas... qualquer coisa que servisse ao propósito de fazer parte do ato hediondo que estava por ser cometido.

O terreno de trás já havia sido invadido, e as pessoas começaram a se concentrar na frente do apartamento do forasteiro. Nenhum som ou movimento em seu interior podiam ser percebidos pela horda. Se ele já estivesse dormindo, o que pelo tumulto criado era improvável, seria ainda mais fácil. Os corajosos homens começaram a quebrar as janelas com pedaços de madeira e pedras. Não queriam invadir rapidamente, mas sim torturá-lo psicologicamente, sentirem o cheiro de seu pavor escorrendo através de seu suor, ante ao iminente fim de sua vida. Como os felinos que brincam com sua presa antes da mordida fatal, a horda deleitava-se em seu sadismo sanguinário. Ninguém mais falava, ninguém mais pensava; como um bando de animais, lhes movia apenas o impulso voraz do ataque.

Quando por fim entraram no apartamento do forasteiro, ao invés de se depararem com alguém amedrontado em posição de defesa, o encontraram em frente à sua máquina de escrever, completamente absorto e ausente deste mundo. Após um certo choque inicial, os homens começaram a se revezar nos golpes, e quanto mais batiam, menos tinham vontade de parar. Nenhum grito se ouviu, sequer um gemido ele deixou escapar. Em menos de três minutos, já não havia qualquer sinal de vida nele. Ainda assim, os golpes continuaram a ser desferidos por até mais uns cinco minutos depois de sua morte, quando todos já haviam expurgado o seu ódio e o seu medo.

Ninguém mais falou qualquer palavra, nem lançou seus olhos rumo aos olhos de outrem. Muito menos em direção ao rosto deformado do cadáver. Como que se tivessem acordado de um estranho pesadelo, tentavam se recompor para voltarem à normalidade. Mas este era um pesadelo real, com consequências reais. Para apagar aquilo de suas mentes, talvez apenas usando o fogo como borracha. E foi o que fizeram: dois deles buscaram um galão de gasolina, encharcaram com ela o apartamento e atearam fogo. Estavam livres de seu medo e de sua vergonha. Finalmente Boa Esperança poderia voltar à placidez de seus intermináveis dias.

Epílogo

Debruçado na mesa da cozinha, Seu Couto ostentava várias escoriações, embora tenha tido mais sorte que o casal de velhos. Estes, tiveram a morte como destino horas depois, ante os olhares inundados de perplexidade e remorso dos mesmos que os pisaram.

No final das contas, acabara tendo sérios prejuízos, pois o homem não chegara a lhe pagar o resto dos dias que ficou. Para piorar, o incêndio havia se espalhado por mais dois apartamentos, deixando intacto apenas um.

Teria ainda pela frente, que enfrentar a cara torta de muitos que não gostaram da ideia dele ter abrigado aquela ameaça para a cidade. Se ele tivesse negado ao homem hospedagem, ao invés de ter pensado no lucro avidamente, não teria que pensar seriamente em mudar-se de cidade. O que aliás seria difícil, pois teria que vender sua pousada para alguém a fim de arranjar dinheiro para a viagem e o reinício.

Resolveu então, revirar o apartamento incendiado para ver se miraculosamente encontrava alguma cédula de dinheiro. Fez isso de madrugada, quando ninguém, senão as corujas, ririam de seu desespero. Vasculhou metro a metro com cuidado, e ao fim de duas horas de busca, encontrara apenas um punhado de moedas, que não chegavam ao valor de cinco reais.

Pendurado na parede, um quadro emoldurava a foto de um homem jovem, que aparentava ser o estranho mais moço, vestido de preto. Na gaveta debaixo da escrivaninha, encontrara uma caixa de metal. Empolgado com a possibilidade de colocar suas mãos numa pequena fortuna, e assim poder deixar tudo aquilo para trás, arrombou o cadeado que a lacrava com uma pequena marreta. Ao abri-la, uma surpresa não muito agradável: o legado deixado pelo estranho era não mais que um maço de umas trinta ou quarenta folhas datilografadas.

Seu Couto, curioso a respeito do teor dos textos do estranho, pôs-se a lê-las. Importa aqui descrever a última página do texto:

“O estranho então esperou que todos já tivessem sido seduzidos por Morfeu, para levar à cabo sua missão: livrar o mundo daquela cidade de sanguessugas e atrasados, o que aliás não seria difícil, pois teria que incendiar menos de cem casas, em sua maior parte de madeira e agrupadas. Só teria que esperar uma noite com vento, para que o fogo se espalhasse mais rápido, e tudo estaria resolvido.

Seria a continuação de seu projeto de exterminar os vermes deste mundo. Sabia que um dia poderia vir a pagar com sua liberdade ou sua vida, mas o preço era mais do que justo. Afinal, sua missão era divina, e assim como todos os homens santos, teria que sacrificar-se pela vontade de Deus.

Assim, durante a ventosa noite, espalhou estrategicamente gasolina por algumas casas intercaladas, a fim de que quando o fogo se espalhasse, nenhuma fosse poupada.

Foi um espetáculo inesquecível ver as chamas do fogaréu se alastrar pela cidade. A claridade do fogo, contrastando com a escuridão da noite, simbolizava a luta que ele ora travava contra as trevas da ignorância, que atravancavam o progresso do mundo.

Deliciou-se em ouvir os gritos de horror e desespero das mulheres e crianças, e imaginou o prazer que ainda sentiria em sua vida, cada vez que exterminasse uma nova cidade.

Sua missão agora estava cumprida. Ele pegou sua mochila surrada, sua grande mala que portava sua velha máquina de escrever, e rumou para a próxima colônia de vermes.

Sua missão era sua vida. Portanto, não tinha tempo a perder.’’

Seu Couto sabia o que aquilo significava, e que seria ainda pior para ele se tais papéis fossem descobertos pelos outros. Uma pequena fogueira, em meio a tamanha destruição não se faria notar. Jogou um pouco de álcool nos papéis, e os deixou queimar, até que nada do que ali estava escrito pudesse ser compreendido.

Até hoje, a autoria do massacre da pequena cidade próxima à fronteira com o Uruguai , continua sendo um mistério para a polícia.

Marcelo Simas Pereira
Enviado por Marcelo Simas Pereira em 11/03/2022
Código do texto: T7470153
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