*Cadê Tereza?
Cadê Teresa?
Por esse tempo, eu trabalhava na construção da Ferrovia de Carajás, na Construtora Queiroz Galvão, a 40 km de São Félix, cidade à margem direita do Rio Tocantins. O corpo técnico era todo do Núcleo do Ceará, portanto, nordestinenses que falavam a minha língua.
Na Empresa, havia um engenheiro de nome Cariolano* que não era do meu departamento, mas com quem, vez ou outra, eu me encontrava no restaurante de apoio. Era o tipo de gente que fazia amizades com facilidade e comigo foi especial, parecia que nossos “santos” se combinavam.
Um dia, sabe-se lá a mando de qual imprevisto, ele me convidou para realizarmos um trabalho num sábado seguinte. Ora, nós não trabalhávamos aos sábados, exceto em casos especiais e aquele não era um deles. Além disso, estávamos no meio da semana. E como eu cuidava somente da área de obras de artes especiais (pontes de concreto) e ele, da área de terraplenagem, fiquei ainda mais surpreso, pois não era função minha acompanhá-lo.
Eu morava com outro técnico na vila dos funcionários e ele, na vila dos engenheiros com a família. Falei do caso com meu amigo de apartamento, topógrafo cearense, de nome Chaparral, que não escondeu não só a sua admiração, como a sua preocupação pelo fato. Para ele também pareceu estranho, pois, segundo ele, Cariolano parecia um “cara bonzinho”, mas apenas parecia, não era homem de se confiar. Para completar, ainda me fez uma recomendação:
– Cara, te cuida! Não vás só! De minha parte, irei ficar atento a essa história. Pode ser que seja apenas averiguação de trabalho e eu esteja exagerando, mas essa história não está me cheirando bem.
Aquilo me lembrou um dos adágios mais conhecidos: “Quem vê cara, não vê coração”.
No sábado combinado, ele chegou a minha porta cedo e já foi logo me avisando que eu levasse duas mudas de roupa sobressalentes e material de higiene pessoal, para o caso de não retornarmos à noite, o que me deixou ainda mais desconfiado. Refiz a mochila e nos mandamos numa caminhonete cabine dupla da empresa.
Quando o Chaparral me disse para eu não ir sozinho, eu entendi muito bem o recado. Como bom nordestino, cabreiro por necessidade e origem, cuidei de deixar minha faca de caça e pesca do melhor aço e corte camuflada bem perto de mim, na possibilidade, ainda que remota, de precisar descascar uma laranja. Não me descia pela goela aquela história de me levar, uma vez que, no departamento dele, havia gente disponível e mais qualificada.
Naquele tempo, não dispúnhamos dos rádios de comunicação de hoje. Em topografia, usávamos sinais ou códigos feitos com as mãos, para os auxiliares distantes. Para isso, eu usava uma flanela vermelha, para melhor visualização. Como isso não era novidade, resolvi levar a flanela comigo.
No caminho, a conversa foi fluindo com naturalidade. Andamos quarenta quilômetros de estrada vicinal adentro e, quando chegamos à área da ferrovia, o cabra mudou o tom da conversa inteiramente.
Por um descuido dele, eu já havia percebido que ele estava conduzindo uma arma de fogo e, por isso, vi logo que algo não iria prestar. Descemos para verificar um dos pontos que ele dizia ser emblemático e, em dado momento, ele disse:
– Mozaniel, agora que estamos apenas nós dois, eu queria que você me respondesse uma pergunta...
– Só nós dois, não. Eu, você e a Teresa.
– Teresa? Quem é Teresa? – perguntou-me, espantado.
– Deixe pra lá e vamos ao que interessa.
– Mozaniel, não estranhe a pergunta não, mas você já participou de quebra de milho?
Pra mim, aquilo foi como um choque que assimilei sem demonstrar reação negativa. Pelo menos, eu pensei assim e respondi, demonstrando bom humor.
– Já quebrei três...
– O quê? É verdade?
Notei que ele enrubescera repentinamente. Naquela região do país, “quebra de milho” era serviço de pistolagem, assassinato por encomenda. Usava-se essa expressão numa forma dissimulada, para que ninguém entendesse, embora fosse do conhecimento de todos.
– Sim. Um açougueiro, um quitandeiro e um dono de farmácia. Comprei fiado até que eles quebraram pela cepa.
Claro que ele sorriu pela brincadeira, contudo, me pareceu não ter engolido a resposta e prosseguiu:
– Você já trabalhou no Ceará?
Respondi que sim, introspecto, mas emendei:
– Doutor, diga logo onde o senhor pretende chegar, pois essa conversa não me parece nada agradável. O Sr. não me trouxe aqui sem um propósito, portanto, seja claro. Antes, quero que o senhor saiba que, lá na vila dos funcionários, pelo menos três pessoas sabem que eu vim até aqui para uma missão um pouco estranha. Caso eu não retorne até o anoitecer, eles saberão como agir.
– Meu irmão foi assassinado no Ceará – disse ele – por um elemento cujo nome terminava em NIEL e que se parecia muito com você, segundo as informações que tivemos. Por coincidência ou não, também era topógrafo. O cabra fez um buraco no chão e sumiu, sem deixar rastros nem sombras. Ele tem uma dívida comigo. Espero não morrer sem encontrá-lo.
Não era a primeira vez que alguém, muito parecido comigo, fazia das suas e a fatura vinha parar em minha conta. Pelo menos, das vezes anteriores não tiveram as consequências que, naquele momento, ameaçavam me prejudicar.
O engenheiro falava com a voz um pouco embargada e eu suava sem parar, nem tanto pelo calor, enquanto limpava o rosto com a flanela. E quanto mais o cabra olhava nos meus olhos, como um tigre diante de sua presa, mais eu rezava, para que ele não fizesse nenhum movimento que eu julgasse indevido.
– Doutor, o senhor poderia ter de mim todas as informações que pretendesse, lá no Canteiro de obras, com todas as testemunhas possíveis, sem necessidade de me emboscar nesse fim de mundo. Lamento pelo assassinato de seu irmão, mas não fui eu. Eu trabalhei uma só vez no Ceará, em 1980, fazendo o projeto de campo da estrada CE-153, que vai de Cedro até Mangabeira, na confluência com a BR-230. E tem mais, nesse tempo, eu trabalhava no Exército e não estava só. Eu era o chefe da equipe de topografia e só saí de lá, com os trabalhos concluídos. Daquela região, o lugar mais distante que eu fui, foi Lavras de Mangabeiras. Mas também não fui só. Conheci quase metade do Brasil trabalhando e não tenho uma só falha no meu currículo. Eu nunca matei ninguém, mas não tenha dúvidas de que a minha vida é mais preciosa que a de qualquer outra pessoa, inclusive a sua. Antes de vir para cá – continuei –, trabalhei dez anos no Exército Brasileiro e de lá posso lhe fornecer uma lista infindável de nomes que o senhor poderá examinar sobre minha vida. Também na S.S.P.PI., não existe nada contra minha pessoa.
Depois de uns longos quarenta ou cinquenta segundos, ele retomou a palavra:
– Ok, peço-lhe mil desculpas. Acabo de ver que não agi certo com você, mas a propósito, quem é Teresa?
Nós estávamos a três metros um do outro. Afastei-me mais um pouco e, abrindo completamente a flanela, deixei à mostra uma pistola Beretta 950, calibre 6,35mm, que logo tratei de destravar.
– Tereza é minha pistola. Tem o nome de minha mulher, porque ela me quer vivo.
Ele sorriu, desconfiado, me pediu desculpas mais uma vez e, antes de retornarmos, estendeu-me a mão, ao que eu retruquei:
– Doutor, eu não irei apertar sua mão aqui. Poderei fazê-lo na segunda feira, às vistas de todos. Neste momento, tenho muitos motivos para desconfiar do senhor. E tem mais, desculpe-me, mas irei retornar no banco traseiro. De mim, não tenha receios, sou um homem temente a Deus, mas não posso me fazer de desentendido.
Na segunda-feira, antes de me encontrar com ele, contei tudo aos meus superiores que, lamentavelmente, abafaram o fato. Mas se fosse ao contrário, duvido que eles tivessem deixado passar esse caso...
Ainda bem que ele não levou essa história adiante e todas as vezes em que nos encontrávamos, ele se dirigia a mim, cantando uma música do Jorge Ben:
– Cadê Teresa?
– Teresa foi ao samba lá no morro... – respondia eu, no mesmo tom.
Na hora do pega pra capar, qualquer um afina o cangote. Não é pena alguma ser honesto e ter uma vida exemplar. Um homem de bem não precisaria, pelo menos em tese, andar armado. No entanto, estamos no meio de uma guerra declarada, onde apenas um dos lados precisa, constantemente, da sorte, e a sorte não costuma ser amiga dos desavisados.
Naquele mesmo ano, vendi a pistola ao Chaparral, muito a contragosto, pois se é para morrer, o bom soldado morre lutando pela sua vida e pela dos outros.
São coisas que só acontecem comigo – XLII.
* Cariolano é nome fictício para uma pessoa real.
*Por sugestão de minha revisora, Prof. Lilian Rocha, mudei o nome de Pega pra capar, para Cadê Teresa.