A prova de que Deus (não) existe

Eduardo caminhava no domingo vazio, em busca de inspirações para suas novas histórias. Fazia um tempo que andava sem ideias. Um bloqueio criativo que não dava trégua nem para escrever um bilhete. Passando pela casa de um senhor muito conhecido no bairro, por colecionar relíquias excêntricas, viu que aquilo que fazia do sujeito conhecido, estava à venda. Algumas mesas de plástico foram colocadas juntas em frente a casa do homem e ele montara uma espécie de bazar que, pela peculiaridade de seu acervo, mais parecia um museu a céu aberto. Estavam à venda vasos com desenhos de flores, esculturas nos mais diversos formatos e materiais. Livros com capas de couro e páginas amareladas, visivelmente muito antigos.

Eduardo se aproximou e ficou procurando com curiosidade algo que pudesse comprar para si. Não que se interessasse pela aquela velharia, mas queria ajudar o velho, pois descobrira que ele estaria se mudando dali em breve, por isso queria se livrar de todos os seus "tesouros", fazendo algum dinheiro. Deixando para trás as lembranças de sua esposa e viver o resto dos seus dias viajando pelo mundo.

-O que tem pra mim, seu Jorge? - perguntou Eduardo ao homem que quase cochilava em sua cadeira de balanço. Parecia que os negócios não iam lá essas coisas.

- Tudo bem, Eduardo? Nem o vi chegar.

- Tudo bem. Sabe, estou procurando inspiração e, parece que o senhor tem coisas aqui bem inspiradoras por aqui. – disse passando a mão num totem de coruja- O que tem para mim, seu Jorge?

- Humm... deixe-me ver. Que tal um amuleto da sorte? - falou o homem pegando um colar com um pé de coelho.

- Escrever não é questão de sorte, senhor.

- Não. Não é, respondeu o velho, mas encontrar inspiração talvez seja.

- Pode ser. Mas não acredito em sorte.

Eduardo percebeu, embaixo de uma das mesas, um pequeno baú de madeira escura com alguns desenhos entalhados. O objeto era trancado com um cadeado em formato de caveira com o número 666 na testa. Os entalhes no baú eram rostos apavorados diante de uma representação clássica da morte, com uma foice erguida.

- O que tem nesse baú? - perguntou, levando o objeto para cima da mesa.

- Aah... esse baú. Tem tanta coisa, meu filho.

- Humm...

- Ele Existe há mais de dois séculos. Já pertenceu a pessoas famosas, amadas e odiadas pela igreja e pela ciência. Por muito tempo pareceu apenas um baú comum, sem esses desenhos horríveis, mas seu último dono importante, um Papa, achou que essa representação da morte seria suficiente para afastar os curiosos pelo conteúdo da caixa. O efeito foi o oposto, despertou ainda mais curiosidade, foi quando ordenou que atirassem este baú ao mar, mas, ele acabou sendo roubado no trajeto. Depois de passar por mais quatro ou cinco mãos, acabou vindo parar nas minhas, quase que por acaso.

- Nossa! Que história.

- Inspiradora, não? - disse Jorge.

- Sim. Mas afinal, o que tem neste baú de tão repulsivo, que o Papa não queria que ninguém visse?

- Você acredita em Deus, meu jovem?

- Não. – disse automaticamente.

- Então, neste baú, está a prova da inexistência de Deus. Assim disse o homem que me vendeu-o, há 14 anos.

- Um livro antibíblico, talvez?

- Não, meu amigo Eduardo. - respondeu o velho, sussurrando - Algo muito pior. Uma prova concreta, que chocou todos que já ousaram abrí-lo. Quem me vendeu, conta que dois de seus possuidores se suicidaram depois de descobrirem a verdade sobre Deus.

- Não é possível que exista algo assim...

- Mas há. Essa caixa é famosa. Eu mesmo já tinha ouvido falar muito dela. Meu pai passou toda a vida procurando-a, talvez seja por isso que eu a tenha guardado por tanto tempo. Uma pena que ele não tenha vivido o suficiente para realizar seu desejo. Mas acabo sendo grato por isso, também. Ele poderia suportar, afinal?

- E o que é que tem aqui dentro, perguntou Eduardo segurando o cadeado ridículo.

- A prova de que Deus não existe. Está comigo há 14 anos. - respondeu o velho.

- Você não sabe, não é? – perguntou Eduardo.

Jorge balançou a cabeça, com um sorriso sincero no canto dos lábios.

- Por que não?

Jorge hesitou um pouco, pensando na resposta -ou tentando lembrá-la - e disse:

- Eu jamais quebraria o encanto da dúvida, meu amigo. Cresci ouvindo de meu pai que Deus não existia e de minha mãe que Deus nos havia dado a vida. Vivi 62 anos sem saber qual dos dois estava certo. Criei minhas próprias opiniões. Há mais de 14 anos tenho a convicção de que não quero ter nenhum dos dois como vencedor. Isso significaria ter o outro como perdedor, por acreditar em algo inexistente ou por ter uma certeza equivocada.

- Entendo.

- Além do mais, desde que o mundo é mundo, vivemos com um Deus no céu. Estando lá ou não. A maioria das pessoas acredita que ele está, então ele acaba estando, mesmo que não esteja. Ter essa certeza quebraria um equilíbrio ancestral que eu não estou disposto a confrontar.

- Sua história é muito interessante. Mas agora quero ver o que tem aqui dentro. Por quanto o senhor vende?

- Não está a venda, meu filho. Trouxe aqui para fora com as outras coisas, por engano.

- Estou interessado nele. Coloque seu preço!

- Você não pode pagar, disse Jorge. Tem um valor sentimental pra mim.

- Dou cem pratas pelo baú e não falamos mais nisso.

- Cem pratas? Por uma relíquia secular que guarda o maior segredo da humanidade? Me desculpe, meu amigo. Mas está nos ofendendo.

- Desculpe-me. Coloque um preço!

- Por que te apetece tanto este objeto agora, meu jovem? Não lhe parece assustador tudo o que eu disse?

- Sua história... Essas histórias, são como os desenhos do baú, foram criados para tentar afastar as pessoas do que tem aí dentro, mas não passam de desenhos. Não podem fazer nada realmente. Mas se o que me diz é verdade, não imagina o prazer que me dará provar a todos que eu estava certo quando duvidei da existência do papai do céu.

- Vejo que não posso mesmo vendê-lo a você.

- Por que não?

- Você não tem noção do que tem aqui dentro, não é mesmo? Muitas vidas foram perdidas por esta caixa, Eduardo. Outras poderão se perder, se ela cair em mãos levianas. Vou levá-la para dentro e, talvez, eu cumpra o destino que o Papa decretou para ela. Quando estiver passando as férias no litoral, talvez eu atire-a ao mar. Onde não poderá causar nenhum mal - disse Jorge, tomando o baú das mãos de Eduardo.

Eduardo, depois de encarar a caixa por alguns segundos, falou:

- Mil pratas!

- O quê? - perguntou Jorge.

- Dou mil pratas pelo seu baú velho.

Jorge não pareceu ofendido. Meio assustado com a oferta, talvez, disse:

- Você ficou realmente curioso, não foi, meu jovem?

- Tenho meus interesses pessoais no que tem aí dentro. Se é que tem algo.

- Se você o quer tanto assim, eu vendo. Mas preciso impor uma única condição.

- Que seria...

- Irei embora próxima semana, vou para o interior. Você não poderá, em hipótese alguma, abrir esta coisa até que eu esteja bem longe daqui, de você e dela. Entendeu?

- Entendi. –disse Eduardo desconfiado – Meio arrependido pela proposta, mas aceitou. Não era homem de voltar atrás.

Eduardo preencheu um cheque, enquanto Jorge colocava o baú numa bolsa de tecido, junto da chave cobreada que abriria o baú.

Jorge recebeu o cheque e não proferiu mais nenhuma palavra ao amigo. Nem um obrigado ou nenhuma outra recomendação. Eduardo saiu satisfeito, agradeceu três vezes e não chegou a ver, quando já ia virando a esquina, que o vendedor rasgou o cheque em quarenta pedacinhos, enquanto algumas lágrimas lhe molhavam os olhos cansados.

Chegando em casa, Eduardo foi logo despindo a caixa escura de sua veste improvisada, segurou-a com ânsia. Só agora se dera conta da chave misteriosa que a acompanhava, nem tinha pensado em como ia abrir a caixa sem a chave. Chegou a colocá-la na fechadura do cadeado, mas se deteve ao lembrar da promessa ao amigo. Mesmo que Jorge nunca soubesse que ele abriria a caixa antes do combinado, ele não quebraria o trato feito ao amigo. Ele tinha a caixa. Guardaria até que passasse uma semana. Embora soubesse que seria devorado aos poucos pela curiosidade pelo objeto.

A semana do trato foi a mais longa da vida de Eduardo. Aproveitou-a para refletir sobre o que faria se encontrasse ali, realmente, uma prova da inexistência de deus. Talvez mostrasse primeiro aos amigos religiosos, com quem já virara noites discutindo sobre o assunto. Talvez fosse a público revelar à humanidade o segredo escondido por séculos, mistério oculto por milênios. Que impacto tal descoberta teria sobre a humanidade? Como aqueles que vivem em torno de um deus reagiriam? Certamente iriam lhe acusar de ser o anticristo, a besta ou uma farsa. Será que aquela prova era realmente tão concreta a ponto de não deixar dúvidas?

Alguns dias antes do dia em que finalmente abriria a caixa, encontrou-se com uma velhinha na entrada do metrô, pedindo esmolas. Deu uma nota de cinco pratas à senhora que lhe agradeceu com um “Deus te abençoe”. Quem ela iria invocar se soubesse que o deus que ela acredita não existe? Mais tarde, numa reunião do trabalho, todos comemoravam empolgados os novos empreendimentos da empresa, diziam “Se deus quiser, vai dar certo!”. Eduardo nunca percebeu tanto deus como naqueles dias. Ria-se, por se achar possuidor de uma verdade que os demais não enxergavam, mais por sua convicção ateísta do que pela caixa e seu famigerado conteúdo.

Foi na manhã da segunda, um dia depois do longo prazo, que Eduardo decidiu abrir a caixa. Na noite anterior havia tentado, mas se surpreendeu ao se perceber com medo de fazer isso sozinho. Não queria se passar por bobo, por ter dado mil pratas num baú velho, por isso não podia chamar alguém para lhe acompanhar, também era arriscado imaginar o que poderia encontrar ali. Mas, acabou decidindo que abriria a caixa num local público. Caminhou até uma praça, em frente à uma escola, quase meio dia. Sentado num banco, embaixo de uma árvore, com o baú no colo. Aguardava a coragem para abri-lo. Não viu, quando duas meninas, que saiam da escola, se aproximaram e sentaram ao seu lado.

- O que tem nessa caixa, senhor? – perguntou uma das meninas, assustando-o.

- De onde vocês vieram? – perguntou olhando-as de cima a baixo.

- Da escola, respondeu a mais velha. Estamos esperando alguém vir nos buscar. Já deviam ter vindo há uma hora.

- E por que não vieram?

- Nossa mãe está muito ocupada cuidando do nosso pai. Ele está muito doente, há vários dias.

- Que pena - disse o homem – o que ele tem?

- Já fizeram vários exames e não encontraram nada.

- Ele nem consegue andar sozinho. – completou a outra.

- Não é perigoso vocês duas aqui fora? Sozinhas?

- É não. Nossa mãe já está vindo. Ligamos para ela antes de sair. É que o pessoal da escola já estava irritado por que tiveram que ficar com a gente até essa hora, então, fugimos.

- Seu pai está indo ao médico? – perguntou Eduardo, preocupado.

- Está. Passaram um montão de remédios. Nós também estamos rezando todo dia pra ele melhorar.

- Rezando?

- Sim. Deus vai curar ele. Minha mãe disse que logo ele vai ficar bom, se a gente pedir a Deus com fé.

- Deus sempre ouve as crianças – completou a mais nova.

Neste momento, a mãe das meninas se aproximou. Uma jovem senhora, com um aspecto sofrido e a pele queimada pelo sol.

- Desculpe o atraso, moço – disse dirigindo-se à Eduardo, confundindo-o com um funcionário da escola- Meu marido está doen...

- As meninas me contaram. Espero que ele melhore logo.

- Ele vai melhorar, se Deus quiser! – disse a mulher com os olhos úmidos, a esperança e a dor lhe atravessavam o sorriso forçado.

As três despediram-se de Eduardo, a mais nova com um abraço, e partiram sob o sol do meio dia. Eduardo as observou desaparecer e em seguida colocou o baú de volta na mochila. Desistira de abrir. Tinha pagado mil pratas pela prova de que Deus não existia, mas acabara recebendo de graça, naquela praça, a prova de que ele existia. Não importava mais o que tinha ali dentro, ele não poderia tirar o deus daquelas crianças.

Thiago W Flores
Enviado por Thiago W Flores em 18/10/2021
Código do texto: T7366605
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