Herança Deprimente
Asno foi meu pai que labutou a vida toda, emoldurou o esqueleto com uma fina camada de pele cheia de dobras, perdeu os dentes, por conta disto, só toma sopa, para me dar dois pares de dentaduras.
À noite, embebidas em um copo com água, graciosamente elas sorriem para mim. Dentarias fúnebres que conseguem reunir agradecimento, austeridade e ira numa esfuziante e barulhenta batedeira só. No dia seguinte, a água está viscosa, talhada e de cor escarlate. Vou ao espelho, quando a claridade está disponível às minhas vistas, e noto que não sou mais o mesmo, pois me falta um pedaço.
Olho no piso do quarto e lá está um dente, que era postiço; vejo também uma mancha de sangue na parede despejada pelos pernilongos atormentadores na madruga. Insanamente, gargalho destas bestialidades rotineiras.
Mas por favor, porque foi lembrar-me daquilo que sorrio para não lembrar. E saber que os meus segundos estão escasseando, é morte precoce e silenciosa. Maldito presente herdado de família. Todos os meus irmãos morreram possuídas por essas pragas.