Sua Santidade
Pousou os cotovelos sobre o batente da janela; contemplou a brisa minuana que soprava suave contra seu rosto; expôs a imaginação aos devaneios; e a saudade fez-lhe recordar amores profanos. A maioria sumidos de sua memória; outros, impingia-o ao arrependimento. Nesses raros instantes de contato íntimo, arrepiava-se em saber que a frieza de sentimentos aquecem os corações dos brutos.
Sob o domínio, os mandos impositivos da escuridão, luz e mistério a noite seguia. Apertando-lhe o peito, amargurando-lhe os sentidos, devido a sensação de que um torniquete estrangulava-lhe a jugular, uma dúvida o acompanhou pelo resto da madrugada, a qual era benzida de segundo em segundo pelo tic-tac do relógio, e assombrosa, equivalia a eternidade. Divagando ao acaso, uma voz roçou-lhe os ouvidos: "Valeu a pena ou não? Vamos, diga! Alguém precisa de sua resposta urgente.
Manhã. Por volta das 6 horas, ao acordar sorriu uma gargalhada sarcástica e estrondosa para seu espelho, que não tinha nada a ver com o que se passava. Em seguida confabulou com a imagem: "nenhuma aventura, nenhum perigo é tão fugaz que não mereça repeti-lo novamente. Ousado, destemido. Vim ao mundo com essas chancelas, para ser o que sou".
No decorrer do dia, guardando energia para algo compraz, não teve disposição para nada. E nem bem a tarde caiu, saiu ansioso pelas ruas, tagarelando consigo, imaginando que a madrugada que ficava muitas esquinas de onde estava, fosse mais profícua que as anteriores. Nos últimos tempos, seus dias foram marcados pela paz e sossego; porém, voltando a ser o que era, fatalmente os próximos seriam marcados pela sordidez e caçada policial.
Aprendera desde pequeno conviver e sentir prazer em ouvir as sirenes implorando passagem entre os carros. Deleitava-se em dirigir em alta velocidade. Ziguezaguear, tirar racha nas vias arteriais na hora do rush. Sempre fora exímio motorista, e realmente nascera para liderar e por onde andava, não havia uma só alma que não lhe respeitava; oxalá quando não o pedia a benção.
Os sinos bateram 12 badaladas surdas e secas, anunciando que não era mais noite. Anunciando que a cidade deveria acordar.
Passado uma semana, a comoção tomou conta da cidade. Velas, lágrimas, flores foram postas em frente à igreja central, à qual o senhor mais rico das redondezas frequentava. A polícia está apurando os fatos, mas estima-se que tenha sido latrocínio: roubo, seguido de morte.
Se de um lado a cidade está comovida, chocada com o ocorrido, do outro, a paz e o sossego voltaram a dormir juntos na mesma cama. Ambos estão silenciosos, quietos, e os espelhos das casas das comunidades locais e cidades vizinhas desconhecem totalmente o caso. Em todas elas, o poder da investigação não entra sem ser convidado; sem que os ferrolhos dos portões se rompam.
Sem o movimento intenso de fiéis à importuná-lo, sua Santidade, o Papa, pode trocar as vestes demoradamente, fazer a barba na pia banhada a ouro, fumar um charuto cubano em sua cadeira reclinável, rezar longas e ininterruptas missas e tranquilamente, com a consciência leve feito pluma, desfrutar de bons banquetes e requintadas orgias no Vaticano; seu ambiente predileto para os momentos de lazer em veraneios.
Porém, logo-logo seu dom de dedicado religioso o contagia para novas devassidões noturnas; mesmo porque, sabe que durante a noite, todos os Papas vestem-se de hábitos semelhantes; motivo dos amigos do mal e o diabo, nunca lhes condenarem. Esses Papas são perspicazes e merecem receber os galardões, merecem receber o sangue pedido nas orações; aliás, presente merecidíssimo.