Profana imposição silenciosa
03-05-2016
Despertei-me hoje com os raios de sol, que sorrateiramente entravam pelas frestas da cortina. Atrevidos e sem pedir licença, tafuiavam quart´adentro, indo de encontro aos meus belos olhos cor de mel. Sinistros raios solares que cegavam-os e a falta deles, torna o brilho das íris, trevas; e opacos os cristalinos. Insensatos raios que zombavam das minhas fraquezas óticas. Inoportunos raios que ironizavam a noite mal dormida e expunham à ira colerizada a paz soberana dos meus aposentos. Pareciam saber do meu dilacerado sofrimento, pareciam querer participar da minha solene depressão, pois ao virar-me na cama na tentativa de livrar-me de alguns pontos luminosos, outros irrompiam do falso escuro, o qual mentia para a minha consciência, dizendo a ela que não estavam presentes no quarto, castigantes e impiedosos raios batiam de frente às minhas vistas. Miseráveis raios de sol que atormentavam a minha paciência. Como paliativo, puxava o edredon sobre a cabeça, mas rapidamente a descobria e o motivo são as altas temperaturas, o fogo ardente que permeia o meu corpo, das unhas dos pés aos escassos fios de cabelos, advindo da menopausa despropositada.
Devia passar das nove horas, quando olhei no criado mudo e não vi os vasos de sucos, os bules de café com leite, as frutas e os pães integrais que minha adorável mãe servia-me todas as manhãs. Sorte de quem tem uma mãe, como é a que eu possuo; porém, imperdoavelmente, ela havia cometido o lapso do esquecimento. O Alzeimer, além de algoz do belo, é o inexorável tempo destruindo a inteligência. Aliás, o tempo se comparado aos olhos que apreciam apenas o externo, sacia o apetite da carne. Porém, a sábia inteligência mira o interior, despertando a leveza da alma. Insana e ambígua visão de quem pensa a realidade humana.
Infernizada pela falta de explicação e acometida por inesperado silêncio visceral, levantei-me e corri os ambientes da casa. Embora a manhã estivesse prestes a morrer nos braços da tarde, na cozinha as louças alternavam entre a sujeira das que estavam sobre o fogão e a pia; e os utensílios enfileirados e acomodados disciplinadamente uma após o outro na prateleira. Tanto lá, quanto nos demais ambientes, nem sinal de minha mãe. Onde teria ido, o que estaria fazendo tão cedo, se tudo que necessita lhe é fornecido apenas num toque de dedo. Ela sempre fora autossuficiente, mas tem se rendido a certos modernismos e ultimamente, aboliu até o compromisso de ir ao banco receber a aposentadoria. Embora tardiamente, ela também foi descoberta pela, bem ou mal dita máquina.
Incontinenti fui à lavanderia. O gato Bilu dormia enroscado em cima do cão Ludovico e ambos abriram um olho preguiçoso apenas, não fazendo caso de minha presença. Deveras, com aquele olhar de peixe morto, foi o melhor que fizeram. Usadas no dia anterior, as máquinas davam a impressão de que estavam paradas a muitos anos. Silêncio e estranheza eram tudo que não esperava encontrar, de forma alguma queria saber, mas era unicamente o que havia em todos os ambientes da casa. Um cheiro acre hibridado a formol invadia minhas narinas. Fui achacada por um misto de pânico e terror. Para quem sofre de profunda depressão, o que mais mete medo é o sintomático silêncio. A inesperada sensação de não ter com quem falar do bem ou mal sucedidos anseios, desabafar as agruras cotidianas e a falta de alguém para dividir as incertezas do futuro devassavam-me. Comecei a sentir-me pressa no fosso de um elevador. E a cada segundo que passava, essa profusão de sentimentos elucubravam-me com perniciosas visões, assaltavam as minhas imaginações e quanto mais embaralhava meus pensamentos nessa rede de pesca, mais chafurdava o meu eu num inexplicável precipício abismal.
Ganhei a suposta liberdade das ruas. Pelo menos vendo gente, apreciando o que acontecia nos arredores, cheirando flores, espiando o rebuliço dos pardais, mirando os semblantes e através de um e outro, podia refletir sobre a solidão súbita a qual definhava minhas glórias. Aquilo parecia o vazio; o dia do vazio absoluto. Do sombrio transformado em caos. Nas ruas, as aparências dos transeuntes aparentavam serem gases propagados no vácuo; os via desnudos de compreensão e embora materializados, sumidos em devassas alucinações. Não passavam de mentecaptos tentando passar por obstinados executivos. Em cada semblante uma loucura. E em cada loucura, um atentado à morte. E em cada morte, um silêncio profano.
Contudo, notei que quando lhes faltava voz, chamavam os berros da loucura para consolá-los. Quando sentiam-se sós, chamavam todo mundo para dar umas voltas em volta das imensuráveis belezas de um mundo sem volta; sobretudo, porque quem se considera humilde e pede socorro, nunca se senti sozinho no vazio do silêncio. Porém, nem tudo estava perdido, pois, o profundo silêncio da madrugada é testemunha dos ruídos abafados de dois corpos que, inebriados pelo medo, se descobrem às furtivas no voo nupcial. E de suposição em suposição, ainda que funesto, silenciar é preciso!
Os noticiários davam conta que éramos 200 milhões de bêbados embriagados pela desilusão. Chafurdados na desesperança. Mortos não anunciados; aliás, nem sabíamos em quais cemitérios fomos sepultados. E assim sendo, como anunciar o que não se sabe!? Carrancudos, nós não sorríamos. Também, sorrir de quê! Onde encontrar graça no silêncio de morte? Que graça há no monte de cinzas frias? Se estivessem aquecidas, fumegantes, denotariam fogo; o que não era o caso. Éramos apenas vidas apagadas. Gélidas cinzas espalhadas em cinzeiros ambulantes! Naquele dia, as pessoas foram literalmente tragadas pelo escuro da noite e embora o sol estivesse irradiante, nada conspirava em favor da luz que nos iluminava.
Perdendo os sentidos, eu não preciso ouvir ou pensar em nada quando estou a mapear com os olhos a minha espécie; pois apenas vejo e sinto. Neste levitar incessante, meus olhos assumem total e irrestrita autonomia sobre o meu ser.
Caminhei léguas na tentativa de reestabelecer a conexão com o Cosmos; porém decididamente faltava algo que me tirasse dos evasivos monólogos. O que seria esse algo? Buscava explicação para o inexplicável e apesar de meus problemas pessoais, notava que as imensas crateras do mundo também abriam-se para aqueles que caminhavam ao meu lado. No fundo, no fundo o sofrimento faz parte do cotidiano das pessoas. Mas o que e quem poderia explicar tamanha perdição, tamanha insensatez a qual a sociedade fora acometida de um momento ao outro? Um apocalipse repentino, talvez! Cita a filosofia do precipício que tudo é originário do nada e para o nada, retornará. Será que chegara o momento e a vez do apocalipse do precipício?
Minha mãe, por onde andaria minha mãe? Seu dia está chegando e ela, inesperadamente sumiu do alvo de meus olhos. O que estará fazendo? Caminhei de volta para casa, podia ser que a encontrasse, e ela, como sempre fizera, pudesse me fazer sorrir. Para surpreendê-la, adentrei a casa pisando em ovos. Pé-ante-pé. Não queria importunar ninguém. Escancarei as portas e janelas, rondei os quartos e demais ambientes e somente o silêncio fazia-se ouvir. Para bom entendedor, um leve toque do dedo indicador nos lábios basta. Fui à área de serviço e os animais estavam como os deixei: merecidamente dormiam enroscados, um sobre o outro. Se dependesse deles, ladrões carregavam a casa. Obviamente que nesse dia, ladrões não dispostos ao roubo ou assalto. Diligente e respeitosos com o ato, guardariam o dia cidadania plena, como virtualmente chamariam a data.
Com passos apressados, fui ao quarto onde o celular carregava. Peguei-o na mão. Apertei uma tecla ao acaso e apareceu a mensagem no Whatsapp: “quem quiser se comunicar, que use a boca e as palavras verbalizadas através da fala, porque os dedos foram projetados para outras finalidades, que em respeito à anatomia humana, é melhor não citá-las. Ass.: Juiz Nostradamus da Comarca de Lagartos, Sergipe; Brasil”.
Qual a semelhança do profano toque silencioso imposto por esse cidadão, com Abelardo Barbosa, o folclórico Chacrinha que cansou de vociferar aos brasileiros que “quem não se comunica, se estrumbica?” Ambos fazem crer, que nem todo jardim é composto por flores de plásticos; assim como nem todo dizer, são feitos de palavras mortas!
Até que enfim tomei conhecimento porque o mundo havia chegado ao fim e com ele, as minhas e as esperanças de muitos brasileiros. Afinal, a dependência tecnológica a qual estamos submetidos, é importante demais para que não falemos seriamente a respeito dela. E que meus amigos saibam que enquanto o aplicativo Whatsapp não voltar a operar regularmente, permanecerei arrasada para eles, bem como para o mundo.
Toda vez que lhe faltar voz, chame os berros da loucura para consolá-lo. Quando se sentir só, chame todo mundo para dar umas voltas em volta das belezas de um mundo sem volta; sobretudo, porque quem se considera humilde e pede socorro, nunca se senti sozinho no vazio do silêncio. Todavia, o profundo silêncio da madrugada é testemunha dos ruídos abafados de dois corpos que, inebriados pelo medo, se descobrem às furtivas no voo nupcial. E ainda que funesto, silenciar é preciso! Afinal, embora tenham ouvidos, meus amigos não ouvem as minhas súplicas, desconhecem o descontrole de açúcar no meu sangue, o descompasso do meu coração, a pressão sanguínea que sobe e desce descontrolada, feito carrossel enferrujado.