A ESCOLHA DE AQUILES

Daniel era um jovem policial militar, esforçado, diligente, conhecido por sua coragem e dedicação. Também possuía um caráter excepcional, e era do tipo que não só recusa um suborno como dá voz de prisão ao corruptor. Os criminosos daquela cidade de porte médio já o viam como um inimigo bastante importuno.

Naquela tarde, Daniel acabara de cumprir seu turno e voltava para casa modesta, para junto de sua esposa grávida e do filhinho de um ano. Quando estava chegando, ouviu uma tosse e olhou para a calçada em frente à sua casa. Havia um homem sentado junto ao muro. Era um mendigo. Cobria a calva com um gorro e tinha uma longa barba, suja e desgrenhada. Vestia-se com trapos e cheirava mal.

– Dá um dinheiro aí – pediu ele.

Daniel teve pena do homem. Sabia que, se lhe desse algum dinheiro, provavelmente ele seria transformado em cachaça ou coisa pior, mas a fisionomia magra e sofrida do sujeito o comoveu. Enfiou a mão no bolso e tirou uma nota de dez reais. Era uma esmola grande demais para que pudesse dá-la, mas, como não tinha menos, entregou-a ao mendigo.

– Mas é para comprar comida, está bem?

Para seu espanto, o homem levantou-se e o encarou. Cravou-lhe os olhos negros e penetrantes. Avançou para Daniel e colocou a mão em seu ombro.

– Você vai ter de fazer a escolha de Aquiles – disse-lhe, com voz grave.

Daniel franziu a testa.

– O quê? perguntou.

– Preste atenção. Você vai ter de fazer a escolha de Aquiles. Uma vida longa e tranqüila ou uma vida breve, mas intensa. Tudo depende de você.

O mendigo deu-lhe as costas e se foi, deixando-o perplexo. Daniel ainda ficou alguns instantes parado, olhando-o, até que resolveu entrar em seu prédio. Só então se deu conta de que a nota de dez reais permanecia em sua mão.

Um calafrio percorreu-lhe a espinha. Quem era aquele homem? O que cargas d’água havia acabado de lhe acontecer?...

Não disse nada à esposa, embora ela tivesse perguntado o porquê de sua expressão inquietante. No dia seguinte, perguntou a um sargento, seu amigo, conhecido por sua cultura e por sua avidez em devorar livros e mais livros, quem era Aquiles. O sargento lhe explicou que Aquiles era um personagem da mitologia grega que havia lutado na famosa Guerra de Tróia, e começou a lhe contar tudo o que sabia a respeito. Daniel sentia-se cada vez mais impressionado. Como raios um mendigo de rua podia saber sobre um personagem mitológico? No momento em que o sargento lhe relatou que um oráculo dissera a Aquiles que ele deveria fazer uma escolha entre morrer na guerra de Tróia, coberto de fama, ou ter uma vida longa e tranqüila, mas sem honrarias, se não lutasse aquela guerra, Daniel sentiu seu coração disparar. A escolha de Aquiles. Caramba, mas o que aquele infeliz daquele mendigo estivera tentando lhe dizer, e por quê?...

Alguns dias se passaram, e Daniel acabou por se esquecer da história do mendigo. Porém, numa certa noite, estava cumprindo seu turno quando recebeu uma chamada anônima. Ele pegou a viatura, sozinho, e se deslocou até o lugar de onde viera a denúncia. Tratava-se de uma casa de tolerância pertencente ao homem mais rico da cidade, o que todo mundo sabia, embora a polícia fingisse não saber. Quando Daniel quis entrar no local, os seguranças tentaram barrá-lo. Mas o jovem se impôs e entrou, corajosamente.

Chegou num dos quartos, que estava com a porta aberta, e espantou-se com a cena que viu. Caído ao chão, enrolado em lençóis banhados de sangue, jazia o corpo de uma moça. Num canto, uma das outras meretrizes chorava. Sentado numa cadeira, com os olhos esbugalhados, havia um homem. Daniel sentiu o sangue gelar ao reconhecê-lo.

– Comandante!... murmurou, num fio de voz.

O comandante se levantou. Súbito, ao reconhecer o subordinado, parecia ter readquirido o auto-controle. De repente, voltou-se para a outra meretriz e esbofeteou-a com selvageria. Então, encarou o jovem soldado.

– Você não viu nada disso aqui – disse, com voz firme.

Daniel estava profundamente pálido e mal conseguia respirar.

– Senhor... – gemeu.

– Dê o fora daqui, soldado, senão vou mandar prendê-lo por desobediência!...

Daniel ainda hesitou alguns instantes, e então saiu, em silêncio. Parecia-lhe que sua mente estava distante, que aquilo tudo não passava de um pesadelo...

No dia seguinte, o corpo da jovem foi encontrado no outro lado da cidade. A moça era nada menos do que a filha do prefeito, que aparentemente fora estuprada e assassinada. Logo, a polícia prendeu alguém como sendo o suposto autor do crime. O prefeito era muito popular, e havia grande possibilidade de que acontecesse o linchamento do suspeito... Durante todo o dia, Daniel sentiu a angústia crescer dentro de si.

Na manhã seguinte, quando se olhou no espelho, Daniel pensou no infeliz preso injustamente. Mas pensou em sua juventude, em sua esposa, no filho que tinha e no filho que estava por nascer. Pensou no poder econômico do dono do bordel. Pensou na fúria de seu comandante, que já havia matado pelo menos duas pessoas, que se soubesse. Pensou que, naquela cidade não tão grande assim, poderia trabalhar tranqüilamente até se aposentar, viver até ver seus netos. Pensou que seria a sua palavra contra a do comandante e contra a do rico dono do lupanar. Pensou que o prefeito provavelmente iria persegui-lo se revelasse a história da vida dupla de sua filha morta. Pensou na escolha de Aquiles...

Durante os dias que se sucederam, trabalhou como se nada houvesse acontecido. Seus colegas suspeitaram de umas saídas que ele deu durante o expediente, mas o jovem parecia tão tranqüilo e alegre que imaginaram que não fosse nada de importante.

Algumas noites depois, o comandante voltou discretamente à casa de prostituição. Encantou-se com uma mulher e levou-a para o melhor quarto do lugar. Quando entrou, porém, teve um sobressalto. Daniel estava sentado na cama redonda, vestido à paisana, segurando na mão um copo de uísque.

– O que é isso? perguntou. – Como deixaram você entrar aqui?

– Ora, o lugar é público, não é, comandante? Eu paguei e entrei.

– Mas e nesse quarto?

Daniel sorriu.

– Tenho um acordo com o dono do lugar – disse. – Pensei que ele havia lhe contado. Eu continuo fingindo que não sei o que aconteceu aqui há algumas noites, e recebo um tratamento VIP sempre que estiver a fim de me divertir um pouco. – Levantou-se e olhou para o chefe. – Aliás, quero lhe fazer uma proposta, comandante. Nós dois e mais algumas garotas poderíamos fazer uma festinha nesta noite.

– Você está louco? perguntou o homem. – Eu, misturar-me com um reles soldado?

– Ora, comandante, relaxe e goze!

O comandante cerrou os maxilares, com raiva.

– Você está pedindo para morrer, rapaz. Não sabe com quem está se metendo.

– Eu sei muito bem com quem estou me metendo, comandante. Não se esqueça de que eu vi o que aconteceu neste bordel há alguns dias. Aliás, por que o senhor fez aquilo?

– Não é de sua conta.

– Ah, mas eu estou curioso, comandante. O senhor tinha nos braços uma linda jovem, fina, requintada, culta, e poderia ter feito tanta coisa interessante com ela... Por que resolveu matá-la?

– Porque ela me desobedeceu, e eu não tolero ser desobedecido! Aliás, se você não sair deste quarto agora mesmo, vai ter o mesmo fim que ela!

– Como assim desobedeceu, comandante? Deixe-me adivinhar. O senhor quis transar com duas mulheres ao mesmo tempo, e ela não topou. Daí, o senhor, que já estava bêbado e provavelmente drogado, acabou por matá-la. Não foi?

Súbito, o comandante puxou o revólver e apontou-o para o rosto de Daniel.

– Dê o fora daqui agora mesmo, soldado!

Daniel respirou fundo.

– Pois para mim chega, comandante. Já o tenho visto cometer os maiores desmandos nesta cidade. Já o vi prender pessoas inocentes e aceitar todo tipo de suborno. Já o vi assassinar a filha do prefeito só porque ela era prostituta, mas não a ponto de se submeter a todos os seus caprichos. E agora, o senhor está me ameaçando. É porque eu estou sabendo demais?

O comandante o encarou com ódio e puxou o cão do revólver.

– Sim, garoto. Mas tudo o que você sabe vai morrer com você.

– Ah, mas não vai mesmo – interrompeu uma voz masculina.

O comandante voltou-se. Havia meia dúzia de policiais militares saindo de dentro do banheiro e apontando-lhe suas armas. O corregedor-geral da polícia entrou pela porta do quarto. Atrás dele, o dono do bordel, já algemado, vinha arrastado por mais alguns guardas.

Desesperado, o comandante atirou.

Daniel desviou-se da primeira bala. A segunda o atingiu num braço, de raspão. Imaginava que não conseguiria evitar que a terceira o atingisse mortalmente, mas nesse instante ouviu vários tiros e o comandante tombou, morto. Daniel se levantou devagar, absolutamente surpreso por ainda estar vivo. Fizera a escolha de Aquiles. Não deveria ter morrido em combate?...

O corregedor aproximou-se dele.

– Você será promovido, meu jovem – disse ele. – Mas eu gostaria de levá-lo para trabalhar na capital. Aqui, nesta cidadezinha, você não tem futuro.

Daniel levou uma das mãos à cabeça. Subitamente, compreendera.

– Não, senhor corregedor – respondeu. – A capital está além da minha capacidade. Se eu me meter por lá, não vou durar muito. Acho que prefiro ficar por aqui mesmo, cuidando de minha família. Tenho um filhinho de um ano e minha mulher está grávida. A guerra da capital não é para mim, senhor...

– Está bem, você é quem sabe. É uma pena desperdiçá-lo neste fim de mundo, mas eu também tenho família, e compreendo as suas razões.

Daniel fechou os olhos e agradeceu mentalmente a Deus, por ter escapado com vida e pelo conselho do mendigo, profeta, anjo ou fosse lá o que fosse...

JUNHO DE 2007

Nota: esta é uma obra de ficção, que não retrata necessariamente minhas crenças, idéias e opiniões. Qualquer semelhança com nomes, pessoas ou fatos reais terá sido mera coincidência.

Mauren Guedes Müller
Enviado por Mauren Guedes Müller em 22/06/2007
Reeditado em 29/06/2007
Código do texto: T536678