NAS BRUMAS DO TEMPO O SILÊNCIO DE BOCAS SENSATAS

No passeio cheio de luz e energia pueril, as crianças se esbaldam, na piscina natural, rasa e de águas límpidas, formada pela queda da pequena cachoeira, os pais tranquilos, refastelados como lagartos ao Sol, observam os filhos em suas alegres brincadeiras. A formação rochosa que serpenteia a borda da cachoeira, não permite que nenhum perigo possa atingir as crianças, por esse motivo, os pais estão serenos e aproveitando, tanto quanto os pequenos, daquela bela manhã iluminada e fresca.

A água que cai da cachoeira, é de temperatura amena e muito agradável, ao toque nos corpos saltitantes risonhos e inocentes. Algumas outras famílias, também, fazem o mesmo, não são muitas e há espaço de sobra para a convivência, dois pares de namorados, também aproveitam o dia maravilhoso, para curtir uns beijinhos suaves e furtivos, tudo em plena harmonia.

 O dia transcorre perfeito, até que um peso estranho cai do alto da cachoeira e com o seu tchibum! Ao cair na pequena piscina natural, cria uma pequena onda que derruba uma das crianças, todas gargalham com o fato, mas, logo que observam o que causara a pequena onda, correm em direção aos pais gritando de pavor, todas as famílias, correm para acudir as crianças e verificar, o que causara tamanho pânico aos pequenos.

A cena com que se deparam, é horrenda, uma cabeça meio carcomida já em decomposição, parecendo ser de um homem, mas, não dá para se afirmar isso, não há sangue à vista, como se já estivesse rolando pelo rio há algum tempo, todos saem da água e se acalmando como foi possível, trataram de sair da área da cachoeira e com os celulares nas mãos, correram para seus carros, tentando contato com a polícia local, logo que atenderam, denunciaram o fato e aguardaram que a polícia chegasse, mantendo as crianças dentro dos carros.

A cidade, não era longe e logo uma viatura com quatro policiais chegou, acompanhada de um carro dos bombeiros e um perito criminal. Ânimos serenados, as pessoas ouvidas e dispensadas, a área foi cercada, para que ninguém utilizasse a piscina natural até que os investigadores dessem um parecer, pois a cabeça poderia de vindo de muito longe pelo rio. O perito recolheu aquela massa disforme para análise e seguiu para o laboratório, só ficando mesmo por lá, os investigadores e os bombeiros, seguindo o curso do rio e vistoriando suas imediações, sempre perguntando por onde passavam, se alguém do local estava desaparecido. Já haviam ligado para a central da polícia e naquela região, não havia nenhum boletim de ocorrência, relatando o desaparecimento de quem quer que fosse, naquela cidade, vamos ver no que vai dar ou não, essa busca sem um parâmetro para ser seguido.

Quase chegando à nascente do rio, que não era muito grande, nem tinha muito volume água naquela estação, não era uma época de cheias, tão pouco, de muitas chuvas no momento e a água era cristalina. Um dos policiais avistou na margem esquerda do rio, um corpo sem cabeça, meio decomposto, mas, que facilmente podia se observar, que era do sexo masculino, pois as roupas em farrapos permitiam a visão de sua genitália, estava escondido por algumas plantas aquáticas que cresciam em profusão, próximo à margem daquele ponto do rio.

Os bombeiros, recolheram o corpo sem cabeça, colocaram num saco apropriado e depois de todas fotos terem sido tiradas, levaram o corpo para o perito que já estava no laboratório. Os policiais, foram fazendo perguntas pela região, e nada que pudesse indicar que o homem fosse daquele lugar, o mais provável, é que alguém o tivesse jogado no rio como descarte de um crime, mas, isso seria uma outra etapa da investigação, teriam que procurar ajuda em outras delegacias, para verificar quem, com a as características do indivíduo, pudesse estar desaparecido. Retornaram à cachoeira, liberaram a área para visitação, e voltaram para a delegacia.

Algumas semanas se passaram, sem sequer alguém procurar pelo morto sem cabeça, parecia que ele não pertencia a ninguém, mesmo que muito se tivesse noticiado, ninguém apareceu dando falta de um parente ou conhecido, com aquelas características. Quem seria o finado sem cabeça?

Passaram-se três meses, quase quatro, na verdade, quando então, num dia calmo e tranquilo naquela cidadezinha no interior de Minas Gerais, uma moça pequenina de olhos bem verdes e que aparentava ter seus trinta anos, muito tímida de voz suave e baixa, com muitas cicatrizes finas e algumas marcas claras roxo amareladas, pelo corpo e rosto, com uma pequena mochila  jeans, cinzenta nos ombros e um pálido vestido florido, já bem gasto pelo uso, pediu para falar com o delegado sobre o corpo sem cabeça que fora encontrado alguns meses atrás naquela região. O policial de plantão, a acomodou em uma cadeira e foi chamar o delegado e pegar a documentação do caso, para que ele relembrasse o fato.

Nada poderia espantar mais, os policiais que estavam de serviço naquele momento, quando ela serena e francamente falou, que tinha cortado a cabeça de seu marido, com o máximo de forças que conseguira, o colocou na mala do furgão deles, dirigija por quilômetros e o jogara no rio daquela cidadezinha, eles eram de uma outra cidade distante dali uns quarenta quilômetros, bem mais ao interior de Minas Gerais. Ela não aguentava mais tantos maus tratos, por parte do marido, bem mais velho do que ela e num dia de total fúria, decepou sua cabeça, com um só golpe de facão, colocou os poucos pertences deles no furgão, tocou fogo no pequeno casebre,  onde moravam e partiu para uma casa pequenina que pertencia aos seus pais já há muito falecidos, próximo a um ribeirão a uns trinta quilômetros de sua casa e que por herança e escritura, pertencia a ela, empurrou o furgão para dentro do ribeirão e deixou que ele afundasse. Ninguém na região deu falta deles, viviam do que plantavam e dos peixes de um rio que cruzava seu terreno, nunca iam até a cidade.

Ela tinha se juntado ao falecido, depois da morte de seus pais, só para não ficar sozinha, não tinha mais ninguém e ele pareceu a princípio ser uma pessoa rude, mas, lhe tratava com certo cuidado, não poderia se chamar de carinho, mas, era melhor do que ficar abandonada no mundo.

Ela não podia imaginar, que iria ser trancada em casa e apanhar quase todos os dias. E que ele, se embebedado quase todo o tempo daqueles seis anos de relacionamento, com uma cachaça que ele mesmo fazia, em um alambique ordinário que tinha em casa, só fazia lhe surrar e forçar à base de pancadas, relações sexuais dolorosas e brutais. Graças ao bom Deus, ela nunca engravidara do crápula, isso, era a única coisa que tinha para agradecer em sua horrível vida. Quando o dia do basta chegou, ela não pensou, só fez o que seu instinto de sobrevivência implorou, deu fim ao seu martírio.

Não procurou a polícia antes, pois achou que poderia conviver bem, em sua solidão, mas, a culpa lhe estava consumindo e a prisão, seria muito menos dolorosa, do que todo o terror que já passara nos últimos seis anos, então, resolveu se entregar e acabar logo com aquele tormento, que estava regurgitando todo o seu ser.

Tudo o que tinha em sua mochila, uns seiscentos reais embrulhados em um lenço amarelo pálido, algumas moedas miúdas, o facão, com o qual decepara a cabeça do marido, umas duas mudas de roupas completas, um par de chinelas, um velho relógio de pulso antigo e de corda, um pequeno cantil com água, um pedaço de pão, já meio endurecido recheado de peixe seco, sua certidão de nascimento, sua identidade, a certidão de nascimento e a identidade do marido falecido, a escritura do terreno e da casa onde eles viviam e a escritura de sua própria casa e terreno, herança de seus pais.

Após o relato impensável, partido daquele ser pequenino à sua frente, o delegado e seus companheiros de trabalho, estavam estupefatos, com a serenidade e calma, com que ela relatara os fatos e seus percalços, não tinham muito o que falar depois do que ouviram, o falecido nem sequer merecia uma oração, era um traste que teve o fim que merecia. O delegado pediu que ela fosse colocada numa sala fechada e foi conversar com seus colegas, para definir que rumo daria ao caso.  No seu íntimo, ele daria o caso por encerrado e liberaria a pobre coitada, mas, precisava do aval de todos os seus companheiros para que o caso foi abafado e finalizado, sem que constasse nos autos do processo aquele depoimento tão sofrido, precisava que todos pensassem como ele e permitissem que aquela criatura, prosseguisse com a sua vida, com um pouco mais de dignidade, sem essa culpa pesando em seus ombros.

Queimariam os documentos do falecido e a escritura da casa que fora consumida pelas chamas, enterrariam num local ermo o tal facão e ela poderia viver a sua vidinha pacata, na casa que pertencera aos seus pais. O silêncio de todos e uma bela confissão para algum padre resolveria o fato junto ao Todo Poderoso, pois ela, já havia pago sua penitência nos seis anos de sofrimento.

Numa conversa sensata e ordeira, todos os quatro policiais se comprometeram com o delegado em consumar o fato, da forma que o delegado pensava, para eles o assunto estava encerrado e sepultado, tal qual, o falecido que seria enterrado como indigente no tempo que a justiça tem, quando não se procura por algum corpo. Nunca comentariam o fato, nem mesmo com seus familiares, o assunto morria ali, naquele instante.

Restava agora, comunicar o que fora resolvido à viúva do crápula sem cabeça. Com muito jeito, com calma, pois o delegado tinha esposa e filhas e não gostaria que nenhuma delas, passasse por algo semelhante em suas vidas, fez ver a mulher pequenina, que era o melhor a fazer, ela nem acreditou no que estava ouvindo,  se jogou de joelhos aos prantos, chorando todas a sua tragédia pessoal, agradecendo ao delegado e aos seus companheiros por mais aquela chance de vida. Com o pouco dinheiro que tinha, voltaria para a sua cidade e no caminho pararia em alguma igreja e confessaria, pois, achava que era o certo a fazer e só ficaria em paz, dessa maneira.

E no interior de Minas Gerais, à beira de um ribeirão repleto de peixes, numa casinha pequenina de paredes brancas e janelas de madeira clara, hoje já passados muitos e muitos anos, vive feliz em sua solidão, uma velhinha pequenina de olhos verdes, que conversa baixinho com sua voz suave, hoje um pouco rouca, com peixes e pássaros. Segue sua rotina diária, simples, sem lembranças de um passado tão sofrido. Só esperando, sua hora chegar, serena e tranquila. Tendo ficado encerrado, nas brumas do tempo e no silêncio de bocas sensatas, o episódio misterioso, do homem sem cabeça encontrado num rio de cachoeira, límpido e de águas claras, numa cidadezinha do interior mineiro.

 
Cristina Gaspar
Rio de Janeiro, 14 de julho de 2015. 
Cristina Gaspar
Enviado por Cristina Gaspar em 14/07/2015
Reeditado em 14/07/2015
Código do texto: T5310972
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