MUTAÇÃO

Ela esquisita? Não vejo esse lado que você esta dizendo sobre ela. Sempre a noto como uma pessoa pacata, prendada trabalhando em prol de seus objetivos, de ultimamente se dedicando à religião; enfim é isto. Vou além em dizer-te, que se comparados as mulheres dos dias de hoje, ela está em outro nível moral. Para mim, exemplar, mas porque você diz tais coisas sobre ela?

- Talvez seja impressão minha, mas ela tem umas nuances que não me parecem ser normais de conduta para uma moça de sua idade. Vejo-a com poderes sobrenaturais e como disse, muito além das moças que conheço. É verdade que não a conheço como você, que sempre conviveu com ela. Talvez seja por isto.

- Concordo que ela tem seu lado meio exótico de vida. Atualmente esta engajada nessas histórias de RPG, passa os dias em frente ao computador jogando certos jogos de matar ou morrer, coisa que não me agrada; com aquelas vestes meio estrambólica, fundamenta seu imaginário nas coisas sagradas e góticas e outra coisa que chama atenção, é o fato dela tingir o cabelo de várias cores. Claro que para os nossos padrões de vida interioranos e provincianos, qualquer hábito que fuja à regra é um absurdo; mas para os padrões dos grandes centros, onde a miscelânea de cores externa é o sinônimo de liberdade, é coisa normal. Seria esses detalhes o motivo de sua versão formada sobre ela?

- Pode ser que seja. É que sabe, se para você que é daqui, embora como dissestes, cidade pequena soa algo insosso, imagina para mim que venho do meio do mato; do grotão? Se apareço na casa de meus pais com ela de um dia para o outro, eles trituram-me em desconjuras. Talvez seja expulso de casa. Estou receoso.

- Você está gostando dela, né? Se é isto, vai aos poucos. Conheça primeiramente o território e depois, implante a casa. Entendi o que falo?

- Entendo, claro! Também acho que é a saída. Sou novo e inexperiente na arte de mapear uma mulher e daí, seguir em frente ou retirar o exercito do campo de batalha.

- Como pessoa é isso que tenho a dizer sobre ela; agora, pormenores somente saberá quando conviver mais intimamente com ela. Espero que seja você. Para ser sincero, se isto vier acontecer, serás o primeiro aqui da cidade. Nunca vi essa menina com ninguém daqui. Faça o seguinte, mantenha-se entre nós e comente com mais alguns o que estamos falando, depois tire as suas conclusões. Uma ideia apenas. Quem teve maior proximidade com ela é o Nestor. Especule, fale com ele, quem sabe...não satisfaz sua curiosidade.

- Bem pensado. Boa ideia. Legal!

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- Não. Eles enchem o saco dizendo isto; mas não chegamos a namorar, não. Ficamos apenas uma vez ou outra, nada mais que isto. O tal namorico de interior. Na época, ela curtia falar sobre jogos de computador, de planos de fazer faculdade de Psicanálise; de vez em quando convidava para reverenciar umas coisas esquisitas que comprou quando foi à capital; não vestia como veste hoje. É isto o que sei...

- Nada mais do que sabia.

- Ah, esqueci! Certa feita, parecia ser ela saindo do cemitério e quando me viu, disfarçou e transfigurou-se na pessoa que é, ou seja, normal. Fiquei com aquela imagem dela um bocado de tempo na cabeça; razão a qual nossa relação acabou. Muito esquisito.

- Como assim: “acabou”, não entendi?

- Sabe quando vemos vampiro, parecia um. Arrepio de falar isto. Contei

para a turma não deram ouvidos; numa outra ocasião, a mesma coisa. Parecia peluda, feito um grande urso; dentes grandes numa bocarra enorme; as unhas, tanto dos pés quanto das mãos, grandes e pontudas, parecendo aguilhões. Prefiro nem continuar...

- Sério?

- Sei lá, de repente foi coisa de minha cabeça. Não andava legal, fazia análise e consultava direto com Psicanalista. Sabe aquela época que agente está meio pinel; pois é, foi essa época. Nem sei o porquê d´eu estar te falando isto, vai firme. Ela é boa moça e merece encontrar alguém que esteja em seu nível. Sorte! Uma coisa te digo: ela é crânio e está muito acima da média da moçada daqui. Pesquisa, lê, escreve e fala praticamente sobre tudo. Aprendi muito com ela; acho que era esse o meu envolvimento com ela, nada mais. É isso. Sorte!

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- Então meu caro, era aquilo que tinha para falar. É o que sei sobre ela. Agora é com você. Vai firme!

- Disseram que ela ama você. Não vou me meter em panela que está tampada. Longe disto, respeito demais meus amigos. Legado de família.

- Nunca revelou nada disto. O pessoal sabe de cada coisa sobre mim, que nem eu sei e consigo saber. Quem é o dono da bola de cristal? Preciso consultar com ele, quem sabe ele me diz o local, dia e horário de minha morte? Sabendo, tento fugir dela. Humm! Temos um bruxo na cidade e ninguém sabia. Quem tem esses traços de querer ser vidente é a sua amada. Seria ela a portadora de mensagens do além? Chega!

- Ok. Desculpa! Foi mal! Sabe com é, agente da grota é assim mesmo quando chega à cidade. Beleza!

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Vocês poderiam colaborar e se respeitar em vez de ficar com esse bate-boca que já dura meses. Aonde vocês querem chegar: ao cemitério? O Nestor disse que não tem nada com ela; por que então desse ciúme descabido? Ela é daquele jeito, sabe: meia aluada. Agora se meteu a pesquisar cartomancia, numerologia e aquelas coisas de exoterismo. Decidam!...o que não falta no mundo é mulher, cacete! Bom, parei...não ganho nada servindo de conselheiro de dois marmanjos. Resolvam-se vocês!

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Mudaram-se para a capital. Estudaram e por lá ficaram por muitos anos. Os amigos e familiares de ambos mudaram da cidade. Raramente, muito raramente a mulher voltava à cidade, cuja finalidade era administrar os bens recebidos como herança. Seu marido nada tinha, portanto, quando muito a acompanhava nas viagens.

Nestor casara e ficara por lá. Era proprietário de um açougue e dedicava-se parte do tempo em purificar a alma no centro de Espírita "Luz para todos". Gozava de boa saúde. Porém, na virada do século, da noite para o dia, apareceu morto. Nestor foi comunicado pela esposa e dirigiu-se imediatamente para lá.

Tomado pela tristeza, desolação e comoção, soubera que Nestor foi encontrado agonizando a morte em frente ao cemitério. Socorrido ao hospital; faleceu. "Grande amigo, pode-se dizer que é o último moicano do grupo que permanecera na cidade. Vá em paz, Nestor". E fez o sinal da cruz.

No entanto, como era cidade pequena e todos conheciam o histórico de todos, generalizadamente um cochicho tomou conta dos ouvidos, querendo saber por que ele estava presente e esposa não. Ao ouvir, o ouvinte torcia o pescoço e cerrava os cenhos. "É mesmo, heim, cadê a mulher dele? Os três eram tão amigos".

- Quando vem, fica quase uma semana zanzando pela cidade. Num vi ela esse dias não, comadre!

- Sangue do cordeiro nos guarde. É cada coisa que acontece no mundo!...

“Era noite de lua cheia. Naquele cemitério aparece cada uma!... foi o que os presentes diziam sobre o fim do único remanescente dos amigos de outrora. Para não causar espanto às vistas, medo e insônia aos presentes, cobriram com um lenço vermelho o pescoço do defunto; pois estava com furos que perpassavam de um lado ao outro. Horroroso de se ver. O enterro foi realizado às 16 horas do mesmo dia; estranhamente, só com a presença do antigo amigo; o restante das pessoas eram de amizades recentes.

Mutável Gambiarreiro
Enviado por Mutável Gambiarreiro em 08/07/2015
Reeditado em 09/07/2015
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