Quem trouxe duas VIDAS...
4 horas da manhã. Silenciosamente, as galinhas desciam do poleiro; que é uma grande e esparramada gameleira. Suas raízes saem vorazes da terra e mostram as caras e robustez daquela potência de árvore. Difícil entender como está resistindo o tempo, pois a especulação imobiliária vem empurrando casas e mais casas para as suas bandas. Nas redondezas, suas amigas foram devassadas e no lugar, plantado o concreto. Quase não se via mais um espetáculo frondoso, espetacular sombreiro, onde idosos e crianças divertem-se sem rivalizar por espaço.
A gameleira servia o seu melhor; sem, no entanto, cobrar ou exigir nada de ninguém. Chegou, acomodou a esteira, a mesa com as cadeiras, ou ainda, uma vagabunda rede, recebia a senha e como presente “seja bem vindo sob as minhas sombras. Caso as reentrâncias dos raios de sol, o incomode, puxo as cortinas. Que tenhas um revigorante e restaurador lazer”. Gentileza e consubstancial gentileza daquela frondosa árvore.
As galinhas haviam se dispersado na campina. O sol marcava presença. Com merecimento, acordara meio preguiçoso; isso porque estava tendo muito trabalho de ultimamente. Nem ele se suportava. Aquecia, feito brasas em fornalhas forjadoras. Esbaforido com o calor, encomendou um leque que resista calorias especialmente para abaná-lo. Enquanto o carteiro não chega com o sedex tamanho gigante, vai se suportando aos trancos e barrancos.
Um monte de galinhas para um lado, outros tantos para o outro.
Algumas ficaram por ali, ciscando à espera de pudesse sair algo para comer; sobretudo, para essas, muito esgaravatar pode representar mesa vazia e o riscar das unhas que foram repassadas pela manicure no dia anterior. Essas são as preferidas do galo do terreiro e guardadas à sete chaves. Inúmeras foram as vezes que ele eriçou a crista, afiou as esporas, arrepiou as penas e foi à luta em defesa de seu território. Logicamente que elas sabem que o motivo das brigas, que são em defesa do patrimônio que o pertence, que são elas. Insaciável!
O dia avançava lentamente e levadas pelo automatismo, as galinhas chegavam ao terreiro. Quando isto acontecia, podia conferir o relógio que os ponteiros devem assinalar nove horas da manhã. Em se tratando de horário, são pontuais. Às vezes adiantam e dificilmente atrasam, pois aprenderam com os relógios que àqueles que atrasam, são poucos prestáveis e não adiantam. Pontualidade é sinal de papo de cheio, ou pelo menos alguns bagos de milho sem ter o sacrifício de quebrar as unhas, esgaravatando a terra. Não todas, mas algumas são vaidosas.
O alimentador, com o chamado assobiado e ruídos saídos dos lábios, característico de anos a fio fazendo aquilo, recolheu-as. Espalhou uns bagos de milho e elas, desesperadas com as asas batendo, vieram atender o solicitado. E de pouco em pouco, levou-as ao galinheiro. Prendeu-as e fez a contagem. Faltavam duas. Ficou surpreso, ainda mais que semana passada havia encontrado algumas mortas na campina.
Examinando detidamente, notou que elas haviam sido atacadas no pescoço e apresentavam uma brancura, lívidas como cera. Nem uma gota de sangue. Para sua surpresa, estavam elas ainda com a temperatura do corpo quase que a normal dos galináceos. Levantou uma série de hipóteses. A primeira delas poderia ser as raposas. Preparou uma armadilha para, caso fosse, capturá-la. Ficou dias com a armadilha de prontidão e o que pegava eram as galinhas e outros animais. Aquilo o inquietava. O pedaço de terra batido; umas galinhas, duas cabeças de porco, uma vaca leiteira e nada mais nada, era o tudo que levantara naquele pedaço de terra.
Passava do meio dia e o galo não apareceu. As galinhas sentiam-se incomodadas. Os galos vizinhos se aproximavam. Elas sempre foram fiéis ao mandatário do território. É verdade que ele despertava mais cedo e não ia para a campina; sua refeição vinha separadamente. O alimentador jogou no ombro direito a bacamarte carregada de munição, encheu o embornal com o restante e saiu à caça do possível exterminador de seu quintal. Rondou os arredores e nada viu. De supetão, lembrou-se da armadilha. Rumou para lá. Dito e feito. Encontrou o galo com os olhos revirados e a morte pulsando em seu coração. Verificou a temperatura, encontrava-se ainda quente e branco, pálido, lívido feito cera. Não quis acreditar na realidade que ofuscava-lhe os pensamentos.
Em total desânimo e tomado pelo espanto, retornou para casa. Abriu o portão e viu o cão campeiro caído, agonizando os segundos derradeiros de vida. Empurrou a porta da sala e o vermelho dos pingos de sangue no piso batido de terra o convidava para segui-los. Foi dar-se no fogão, onde incrédulo viu um gamba dentro do tacho. Horrorizado, lamentou a sorte: “acontece cada coisa nesse meu sítio e não consigo desvendar”! Juntou as coisas e partiu.
Ao sair no portão, ouviu uma voz berrada o seguindo: “suma mesmo, porque o que vistes é apenas o inicio. Queremos é você. Se ficares, irás nos recompensar com a vida, o que de nós roubastes. Vida com vida se paga. Se chegastes trazendo uma vida que roubastes de outro lugar; a sua vida deves deixar em pagamento”.
Uma ratazana pulou em seu ombro, saqueando-lhe a trouxa. A ponta de um finco de aço atingiu-lhe uma das vistas. “Era para acertar a aorta, errei; mas prometo para mim mesmo que não erro mais”.
- Espere, deixo as minhas vestes; mas me deixe com vida. Imploro...suplico! Quem nada trouxe; nada deve levar.
- Nada trouxe? E a vida que veio com você? Ela e o resto que fizestes, foi aqui; portanto, deixaras tudo aqui neste exato instante. E não levaras absolutamente nada! Não ouviu o que disse: “vida com vida se paga”. Chega de negociação...
E o eco de uma fincada cega cortou os ares, transpondo vales e pináculos, alojando definitivamente o seu ribombar em lugares distantes. Por ali sobrou somente o perfume do aço em chamas e uma cruzinha florida com inscrição para negar a estória.