*A Casa Mal-Assombrada
A casa Mal-Assombrada
Morei em Balsas, cidade do sul maranhense, quando ainda era uma localidade sem muitos atrativos. Isso não implica dizer que não fui feliz, fui sim. Lá fiz amizades eternas.
Balsas não era, propriamente, uma cidade aparatada para receber grandes empresas, devido ao baixíssimo número de imóveis para locação. Encontrar uma boa casa para alugar era tão fácil, quanto achar sorvete no Saara.
Por esse tempo, eu morava no bairro Trizidela (no Maranhão, Trizidela são todos os bairros que ficam separados do centro por um rio) com quatro dos seis filhos, sendo uma já mocinha. Minha mulher tinha retornado de Aracaju com nossa filha de dois meses de vida.
A casa onde morávamos era alugada para a firma na qual eu trabalhava, mas o contrato estava encerrado há, pelo menos, dois meses, e o locador, por pura birra, recusara-se a renovar o contrato, porque ele não gostava de alugar casa para família que tivesse crianças. Para complicar ainda mais, essa casa já estava apalavrada com um casal que estava chegando de São Paulo. Foram-me dias de desassossego, principalmente por uma possível ação de despejo. Claro que eu poderia fincar pé e resolver essa pendenga justiça, só que eu também não queria isso.
Na cidade, havia, sim, uma casa desocupada há anos, na Praça Getúlio Vargas, no lado oposto à Matriz de Santo Antônio, prolongamento da Rua Benedito Leite. Era uma casa antiga com entrada lateral, três janelões na frente de 1,00m x 2,50m, bem aos moldes de seu tempo. Toda pintada de verde, inclusive o telhado, devido à grande quantidade de musgos. Possuía assoalho de madeira e sob este, havia um porão de 1,60m de altura.
Era uma casa sombria, de aspecto incomodativo. Sabia-se que ninguém queria morar lá, por mais vexatória que lhe fosse a situação. Por se encontrar desocupada há bastante tempo, a casa devia estar mofada por dentro, a julgar pelas janelas resinosas. Para tornar aquilo habitável, seria uma mão de obra e tanto.
Os vizinhos falavam coisas sinistras a respeito dela. Sabia-se que o primeiro dono fora encontrado, misteriosamente, dependurado numa corda, tendo cometido suicídio no porão. Mas pela altura do porão, nenhum delegado principiante, por mais ingênuo que quisesse ser, admitiria a hipótese de suicídio. Comentava-se que esse senhor fizera fortuna de forma inexplicável, graças a um pacto com o demo e, por não ter cumprido o trato, acabou pagando com a vida.
Por aquele tempo, o comércio usava uma máquina registradora de caixa, composta de teclas, uma alavanca mecânica e uma sineta alarmante que anunciava a operação. Pois bem, os vizinhos diziam que, após as 22 horas, o barulho produzido por uma dessas máquinas no porão era inimaginável. A sineta feria os tímpanos, em meio a um intenso bodejar de caprinos. Era como se dois oponentes embrenhados numa terrível contenda contábil quisessem se matar. Isso acontecia, invariavelmente, todas as sextas-feiras do ano, exceto na primeira quinzena de junho, quando dos festejos de Santo Antônio de Pádua.
Na iminência do despejo, sofrendo uma angústia cancerosa, minha única saída seria alugar a casa assombrada. Reuni a família pra lhe falar sobre o assunto.
- Gente, por muitos motivos, nós teremos que desocupar esta casa até amanhã à noite. Vocês estão cientes disso. Nosso prazo já está esgotado e o locador não aceitou renovar, exatamente porque ele não gosta de crianças.
- E nós iremos morar onde pai? Perguntaram todos a uma só voz.
Essa era a pergunta que eu não desejava que fosse feita, porque eu não estava preparado para responder. Eu tremia por dentro. Quando garoto, eu tinha medo de lobisomem, de alma penada, de defunto. Depois de adulto, passei a ter mais pavor ainda. Eu já havia presenciado alguns fenômenos ininteligíveis e fatos inexplicáveis, como daquela vez, durante uma aula de Inglês no Yázigi, em Teresina. Logo eu, que tantas vezes improvisei tendas, usando os lenções da nossa cama e depois colocar as meninas ali debaixo, ficava contando estórias de fantasmas e vampiros para elas...
Lentamente, tomei fôlego e respondi:
- Iremos morar numa casa ali do outro lado do rio, no centro, na Praça da Matriz, mais perto do colégio de vocês. Vocês irão gostar, pois na praça têm muitos pés de amêndoa e muita sombra...
De olhos esbugalhados, todos se entreolharam aflitos. Eles sabiam das coisas ocorridas naquela casa, pois já haviam me contado algumas estórias que tinham ouvido na escola, e também sabiam que, fora aquela, não havia nenhuma outra casa desocupada naquela região.
- PAAAI...! O senhor tá doooooido? Na casa mal-assombrada NÃÃÃÃÃO! Vamos morar debaixo da ponte, mas naquela casa eu não entro nem morto!
Naquele dia, fui para o trabalho como se fosse para a forca e eles foram para a escola sem desejarem voltar. Foi o dia mais curto de minha vida e ali eu pude sentir que o tempo não é o mesmo para dois pugilistas que se enfrentam num ringue. Por mais que meu cérebro rodasse em sentido anti-horário, mais a terra aumentava a velocidade em sua rota, fazendo o sol mais ligeiro. Para piorar - se é que era possível piorar alguma coisa - estávamos numa quinta-feira, o que significava que, no dia seguinte, iríamos testemunhar literalmente uma briga dos diabos.
A Bíblia (Josué 10,12) narra uma batalha do povo israelita contra os amorreus no vale de Gabaon, quando o sol permaneceu no zênite por quase um dia inteiro, até que o povo Deus vencesse a guerra. Nunca desejei tanto que o sol se atrasasse em seu curso. Era visível minha perturbação, suando tanto numa sala climatizada.
Às 17h, assim que terminou o expediente e eu já estava de saída para meu holocausto, o telefone tocou. Era alguém da empresa me informando que havia uma casa à nossa espera na Av. Catulo, próximo ao mercado.
Fomos salvos pelo gongo no último segundo, do último minuto, do último round. Deus existe!
PS.: Essa casa não mais existe. Fora demolida e hoje, no local, tem uma clínica de medicina do trabalho.