XEQUE-MATE
Completamente alheios à Guerra que se desenvolvia em três continentes, alguns aristocratas se haviam reunido naquele clube, em Londres, para beber, jogar cartas e conversar sobre amenidades. Um deles, porém, que trouxera no rosto uma expressão tão sombria quanto o clima daquela tarde, permanecia calado o tempo todo. Já tomara várias doses de brandy, encostado no balcão do bar. Até que se dirigiu para o salão de jogos, vagarosamente, e sentou-se diante de uma mesa onde havia um tabuleiro de xadrez.
Todos à sua volta o olhavam com indisfarçável piedade. John continuava sendo um homem bastante respeitado, embora suas finanças estivessem em situação deplorável. Ninguém se aproximava para desafiá-lo. Até que um homem se sentou do outro lado da mesa. John encarou-o. Era Peter. Alguns dos circunstantes se aproximaram, curiosos.
John e Peter eram dois homens de origem nobre, tão notória quanto a inimizade que se estabelecera entre ambos, embora houvessem sido grandes amigos na juventude. John cravou os olhos no desafiante e seus músculos se enrijeceram. Um clima tenso se instalou. Alguns dos cavalheiros à volta de ambos também prenderam a respiração. O único que parecia à vontade era Peter, que apresentava um sorriso zombeteiro.
John ergueu a mão, e, após hesitar por alguns instantes, fez o clássico movimento de saída: peão na casa quatro do rei. Peter sorriu, com desdém, e fez a mesma jogada. John engoliu em seco. Os circunstantes estremeceram.
O desafio estava lançado e aceito. Agora, não tinha mais como voltarem atrás.
O jogo continuou, lento, estudado, vagaroso. De vez em quando, John apertava os maxilares e olhava com raiva para o adversário. Peter apenas sorria, de leve, e rebatia-lhe as investidas. De repente, numa distração de John, Peter, com um cavalo, tomou-lhe um dos bispos.
John fechou os olhos por um momento.
Viera-lhe à mente. Não havia como evitar.
Muitos anos antes, John e Peter eram jovens amigos. Mas seus pais, dois lordes, estavam enveredando por opiniões políticas divergentes. Embora não se houvessem tornado abertamente contendores, seria inevitável que, mais cedo ou mais tarde, eles se tornassem – e a posição do pai de John o estava colocando em destaque na política nacional, de uma forma que obscurecia as intervenções do pai de Peter.
Então, numa caçada, o jovem Peter havia ferido mortalmente o pai de John.
John se defendeu com o outro bispo e conseguiu debelar o ataque de Peter. Mas sua cabeça pesava. Sentia os efeitos do brandy e da raiva aquecerem-lhe o sangue, embotarem-lhe o raciocínio.
Peter fez o roque.
Quando a polícia fora investigar a morte do pai de John, Peter se defendera afirmando que haviam sido três de seus empregados que haviam desferido os tiros mortais. De certa forma, escondera-se atrás de seus peões...
John lançou-se ao ataque, agressivo, quase imprudente. Peter continuava sorrindo, com desprezo, e defendia-se com calma. John jogava depressa, sem pensar muito. Peter tomou-lhe uma das torres. John sentiu-se a ponto de desistir, mas manteve o ataque. Peter tomou-lhe a outra torre.
Durante muito tempo, John lutara para provar a culpa de Peter naquele crime. Embora, de início, estivesse clara a intenção dos tribunais em absolvê-lo, Peter notara que o prestígio, inclusive econômico, da família de John poderia reverter a situação. Então, Peter procurara aniquilar aquele tipo de influência. Arranjara aliados e espiões. Conseguira, através de intrigas e sabotagens, fazer com que a fortuna da família de John fosse minguando, afetada por maus negócios, a ponto de torná-lo absolutamente inexpressivo em termos financeiros.
Súbito, Peter tomou a dama de John.
Susan. A bela e jovem aristocrata por quem John estivera apaixonado. Para desestabilizar seu inimigo, Peter utilizara todo seu poder de sedução, e, com o auxílio de mentiras e de tramas maquiavélicas, conseguira arrebatar o coração da jovem. Casara-se com ela.
John olhou para o tabuleiro e para a face do oponente, onde se via uma terrível expressão de escárnio. Sentiu-se completamente perdido...
De repente, ouviu-se um estrondo. Todos se apavoraram. Logo, veio outro estrondo, e outro, e outro, cada qual mais terrível. O cheiro de fumaça empestou o ar. Homens em desespero saíram correndo para a rua, enquanto outros se escondiam embaixo das mesas do clube.
Londres estava sofrendo um bombardeio.
O primeiro pensamento de John foi em pôr-se a salvo. Mas o teto do clube desabou sobre ele e sobre Peter. John conseguiu livrar-se dos escombros e olhou para seu inimigo, que permanecia preso sobre uma grande quantidade de madeira, ferro e concreto. Percebeu, com horror, que parte do corpo de Peter estava esmagado, e que ele inevitavelmente morreria. Olhou em volta. Todos estavam em pânico. Ninguém prestava atenção aos dois. Ninguém veria qualquer coisa que se passasse entre ambos.
Peter ergueu-lhe o rosto cheio de dor e de medo, mas não disse nada. John ajoelhou-se ao lado dele e olhou-o nos olhos. A expressão de John era tão fria que Peter sentiu como se aquele olhar lhe gelasse a alma. John puxou um punhal. Antes que Peter tivesse tempo ou condições de dizer qualquer coisa, John cravou-lhe a lâmina no coração. Peter soltou um gemido ininteligível. John aproximou o rosto do dele e lhe sussurrou ao ouvido:
– Xeque-mate.
Levantou-se e saiu, caminhando lentamente, sem se importar com os destroços que desabavam a sua volta...
JUNHO DE 2007
Nota: esta é uma obra de ficção, que não retrata necessariamente minhas crenças, idéias e opiniões. Qualquer semelhança com nomes, pessoas ou fatos reais terá sido mera coincidência.