Pesadelo
“Há mais coisas entre o céu e a terra, Horácio, do que pode supor nossa vã filosofia”.
Shakespeare
Nunca fui de acreditar no sobrenatural, mas o que vi hoje no jornal mudou muitas das minhas concepções sobre isso. Não costumo dar atenção ao obituário. Não consigo começar meu dia com coisas tristes. Ele já está tão difícil, para que agravar ainda mais a situação?
Foi tudo tão inesperado, eu ainda não sei se foi real ou se é só meu cérebro me pregando uma peça. Nesses últimos messes, tenho dormido pouco por causa do trabalho e do meu curso de direito. Sempre levei as coisas meio ao pé da letra, não costumava atentar para o que as entrelinhas estavam querendo me dizer. Eu tinha – e ainda tenho, acho – meu raciocínio á frente da minha visão de mundo. Porém, sempre que lembro do rosto daquela jovem, constato que deve haver algo mais do que o que somos capazes de enxergar.
Não consigo mais guardar isso só para mim, talvez contar o que aconteceu acabe me ajudando a esquecer a impressão tenebrosa que tudo me causou.
Já faz quase um mês. Cochilei numa aula de lógica – grande ironia dos acontecimentos – pois estivera na farra na noite anterior... Nesse pequeno intervalo, tive um sonho desses que parecem os que as pessoas têm nas histórias de terror. Eu estava andando pela alameda que dava na biblioteca da Universidade. Quando comecei a subir as escadas para entrar no prédio, encontrai um rapaz. Ele estava vestindo uma camisa branca e uma calça social preta, sapatos pretos e tudo. Com certeza não era comum ver pessoas trajadas assim no campus. Ele parecia assustado, como quem procura desesperadamente por ajuda, mas não encontra ninguém.
Assim que me viu, veio correndo ao meu encontro, estava muito nervoso. Havia algo de indefinido naquela figura que, eu não sabia por que, me inspirava confiança. Pondo a mão no meu ombro, ele foi me acompanhando, entrou comigo no prédio.
- Por favor, avise a ela que logo estaremos juntos de novo... – disse o rapaz. Uma lágrima cortava seu rosto, caindo como uma gota brilhante em suas roupas.
Depois que ele disse isso, virou-se e olhou para um determinado ponto do saguão de entrada. Pude perceber que, no lugar para o qual ele olhava, havia um quadro de avisos. Olhei em volta, mas estava tudo tão estranhamente deserto, que eu comecei a me sobressaltar. Quando virei o rosto, o rapaz havia misteriosamente sumido.
O barulho de conversas e de pessoas se movimentando me acordou. A aula tinha terminado sem que eu ouvisse um rumor qualquer sobre o que se passou à minha volta. Saí da sala e tomei o caminho do ponto de ônibus me repreendendo por tamanha falta de responsabilidade. Um deslize, uma DP sequer, e meu diploma demoraria mais meio ano para sair, e tempo é dinheiro...
Era nisso que eu vinha pensando quando passei pela biblioteca. Ela ficava no caminho, não havia como não passar por ela e, pra dizer bem a verdade, eu nem queria desviar. No que um sonho sem sentido algum iria mudar minha rotina? Que coisa idiota...
Por algum motivo, que até hoje não descobri qual foi, acabei entrando no prédio. Como no sonho, não tinha ninguém por ali. E nem poderia mesmo, já passava bastante do horário de funcionamento da biblioteca. Não pude conter minha curiosidade e olhei para o tal quadro de avisos no canto direito, ao lado da porta do prédio. É... Ele realmente existia... Eu fui me afastando, distraído, pensando em como nunca tinha reparado nele antes.
Dando alguns passos para trás, sem ver direito para onde ia, só percebi em quem esbarrei depois de virar para a direção dela. Pude ver seu rosto depois de ajudá-la a recolher os livros que se espalharam pelo chão.
- Nossa, me desculpe. Eu estava distraído, não tive a intenção de...
- Não tem problema, eu também não via muito bem por onde andava - ela levantou a cabeça e agora olhava paira mim. Tinha olhos castanhos muito profundos.
Eu ia perguntar o nome dela, mas logo que a garota equilibrou os livros novamente, disse “Boa Noite” e se foi. Como ela praticamente me deixou falando sizinho e eu não tinha mesmo nada para fazer ali, resolvi ir embora. Olhei ainda uma vez para o quadro e fui para a escada. Ao descer o primeiro lance de degraus, notei que havia um papel caído no chão, entre os dois lances de escadas que subiam para a entrada do prédio.
Quando eu o recolhi, tive uma surpresa. Pude ver que era um retrato. Presumi que era da garota da biblioteca. Poderia ter caído de algum lugar, dos livros, de um bolso, sei lá. Examinei a foto com mais atenção quando cheguei ao ponto de ônibus: se tratava de um casal sorridente, estavam abraçados, os dois voltados para frente, ele trás dela, envolvendo-a com os braços.
Meu maior susto foi ver quem era o casal feliz: a garota era, como deduzi, a mesma do encontrão em frente á biblioteca. Até aí tudo normal. Mas, não consegui acreditar! O rapaz que a abraçava era aquele do sonho! Como isso podia ser possível? Eu nunca tinha visto nenhum dos dois antes! Estava tão assustado, que nem percebi que tinha passado do ponto no qual eu sempre descia.
No outro dia, com a foto na mão, tentei encontrar a garota, mas não a achei. Quanto antes devolvesse a ela, melhor seria. Com aquilo no bolso, não era possível me concentrar em nada. Outro motivo pelo qual eu queria me livrar logo daquilo, era o fato de não ter idéia de como tudo estava me perturbando de um modo tão intenso. Procurei quase o dia todo, ela praticamente tinha evaporado!
Cansado e conformado com a perspectiva de que esse tormento não iria acabar tão cedo, sentei debaixo de uma árvore para organizar meus pensamentos. Depois de meia hora, não me lembro bem, resolvi observar a biblioteca despretensiosamente.
Quando dei por mim, lá estava ela, exatamente a garota do dia anterior, saindo de novo do prédio. Sem pensar duas vezes, corri para ela, pedindo para que me esperasse. Ela parou de andar e se virou para me esperar, o vento despenteava seus cabelos ruivos e cumpridos.
Cheguei perto dela e percebi de cara uma sombra no olhar profundo da garota, será que era por causa de uma fotografia perdida apenas?
- Oi! Tudo bem? Meu nome é Fábio – disse simpaticamente. – Ontem a gente estava com pressa, não deu nem pra eu dizer o meu nome.
- Prazer em conhecê-lo, Fábio, eu me chamo Carolina. Tudo bem? - deu para notar que ela estava mesmo muito triste, mas tentava disfarçar. O sorriso que ela tinha no rosto era carregado de melancolia.
- Comigo? Tudo bem, sim. Mas, parece que com você não está... Tem alguma coisa que eu possa fazer por você? – ela era ainda mais bonita do que eu pude perceber no dia anterior. Com certeza, a última coisa que ela parecia querer era um cara-de-pau dando em cima dela. Como a situação pedia uma pessoa amiga, foi assim que eu resolvi agir. Eu posso ser meio racional demais, mas não insensível.
- Bom, eu ando meio deprimida, só isso... Não, não é nada de mais... Obrigada pela preocupação. – Era evidente que ela não queria me dizer a verdade. Eu, no lugar dela, teria feito o mesmo. Por um minuto me esqueci de que era só um estranho para ela.
- Procurei você o dia todo – ela me olhou surpresa.
- É mesmo, por quê? – Carolina olhou para mim curiosa, tive a impressão de que sua expressão estava mais leve.
– Quase me esqueci de te entregar isso, acho que você deixou cair ontem à noite.
Assim que tirei a foto do bolso interno do agasalho, o rosto dela ficou como se fosse feito de cera. Ao ver de novo o retrato, ela não conseguiu conter as lágrimas que corriam doloridas pela expressão desconsolada do rosto dela. Essa mudança foi tão rápida, que me deixou ainda mais preocupado com tudo o que tinha acontecido, ou que estava acontecendo.
- Carolina, não, não chore. Não fique assim... Venha, sente aqui – ela parecia mais calma. – Quer conversar? Pode confiar em mim, se você quiser me contar o que aconteceu... Por que essas lágrimas?
Ela já não estava chorando mais. Penso que poucas vezes alguém foi tão atencioso com ela. Pelo menos era o que se podia perceber na atitude desprotegida da garota. Eu disse a ela que se acalmasse, que tudo ia ficar bem e algumas outras coisas que se costuma dizer em situações como essa. Incrível como elas podem parecer vazias, mas, no entanto, fazer tão bem a nós quando precisamos de um consolo...
Passamos um tempo em silêncio. Ela, com o olhar perdido, em algum ponto distante; eu, tentando achar alguma forma de quebrar o gelo... Mas, para minha surpresa, e até contra as minhas expectativas, foi ela quem deu o primeiro passo.
- Essa fotografia tem um valor sentimental muito grande para mim, é praticamente a única lembrança concreta que eu tenho do meu namorado. Depois que eu te contar o que aconteceu você vai entender a minha reação. – E, olhando para mim, com olhos tristes, mas serenos. – o nome dele era Rafael. Bem, nós nos conhecemos num camping, nesse último fim do ano passado. Foi uma coisa que não tem explicação, nos apaixonamos de cara e, antes mesmo de voltar da viagem, já estávamos namorando. Durante os messes que se passaram, nosso amor só cresceu – ela sorriu, mas foi um sorriso rápido, logo depois seus olhos voltaram a marejar. – Mais ou menos quatro messes atrás, nós dois combinamos uma viagem para comemorar nosso aniversário de um ano de namoro... Tudo era sempre tão perfeito quando eu estava com ele... – enxugou uma lágrima.
Até aí, tudo me parecia corriqueiro, quem sabe eles não tivessem brigado? Para mim, tudo poderia ter acontecido, e isso certamente não fugiria do normal. Eu não imaginava sequer que o quê viria a seguir mudaria muitas das minhas convicções. Mantendo esses pensamentos, continuei a ouvir o que ela tinha a me dizer.
- Planejamos tudo para viajar, o Rafael queria me mostrar um lugar muito bonito no Sul, ele conhecia bem aquela região, nasceu lá. O tempo foi passando rápido e, antes que nos déssemos conta disso, faltavam apenas alguns dias para viajarmos. Eu estudava biblioteconomia, e ele direito. O fato é que, um dia antes de embarcarmos, ele se formava. Foi uma festa linda, eu costumo pensar nela como um desses bailes de contos de fadas, só que não teve um final feliz...
Eu tinha mesmo ouvido falar naquela festa, era a formatura dos alunos do curso de direito. Um baile dos mais concorridos no fim de ano aqui na universidade... No ano que vêm, eu serei um dos formandos, isto é, se não ficar dormindo nas aulas... Como sempre, tentei ir ao baile, mas não pude, fiquei muito mal por causa de alguma coisa que comi no dia anterior. Não me conformo até hoje! Nunca mais como fora do campus!
- Faz uma semana, a pior semana da minha vida... A noite que, eu pensei, fosse ser uma das mais lindas acabou se transformando numa tragédia. Quando saímos do baile para ir embora fomos assaltados. Um cara grandalhão, com um capuz preto cobrindo o rosto, puxou um revolver e apontou para mim. O bandido disse que se ele não entregasse a chave do carro e o dinheiro eu ia morrer. Meu namorado fez o que ele mandou. Tudo aconteceu muito rápido... Depois que o bandido entrou no carro, eu só me lembro de ter ouvido um tiro. Quando dei por mim, eu estava no chão. Tinha muito sangue, mas eu não sentia nenhuma dor. Meu namorado estava encima de mim, como se estivesse tentando me proteger, eu o abracei com medo e comecei a chorar. Escutei o rumor de ambulâncias e gente se aglomerando em volta de nós dois. Eu fiquei muito assustada com aquilo, tremia tanto que não consegui movê-lo, ele era maior e mais alto que eu, devia ter uns vinte quilos a mais. Fiquei abraçada a ele durante uns vinte minutos, no mínimo. Chamei por ele, tentei fazer com que ele me respondesse alguma coisa, mas ele estava imóvel, não disse nada depois do tiro.
Eu fiquei sem ação, o cara que eu vi num sonho tinha morrido! Aquilo só poderia ter sido coincidência, uma terrível coincidência! Mas ela ainda não tinha terminado.
- Eu segurei o rosto dele, mas estava tão pálido, tão frio! Nessa hora alguns seguranças chegaram, junto com os para-médicos, eles tiraram o Rafael de cima de mim e colocaram numa maca. Imediatamente, eu levantei e fui ver como ele estava, mas o tiro tinha sido bem no coração... Segundo os enfermeiros, não havia mais nada a ser feito. Percebi que todas as pessoas que estavam nos observando ficaram quietas, como se tivessem perdido a voz... Eu não consegui acreditar, me agarrei a ele para que não pudessem nos separar. Mas alguns deles me seguraram e me deram algum calmante que fez com que eu não pudesse raciocinar direito... Eles o levaram dali... Lembro que acordei no hospital, no dia seguinte, só aí percebi quantos hematomas me deixaram o grandalhão e a queda... Mas o pior ferimento estava no meu coração...
Mesmo prestando muita atenção no que ela dizia, fiquei pensando se contaria ou não o sonho que tive. Mas, sonhos não são exatos, só por que eu tive um sonho, ou qualquer outra pessoa teve um sonho, não quer dizer que isso tenha alguma ligação com a realidade. Não, definitivamente não, a garota já estava sofrendo bastante sem eu encher a cabeça dela com uns sonhos desconexos. Ela ainda estava abalada e, mesmo que não estivesse, não ia ser eu a fazer com que ela ficasse pior...
Eu disse algo como “sinto muito”, e sentia mesmo. Devia ser um sentimento horrível perder alguém que se ama, ainda mais do jeito que foi. Coloquei-me a disposição dela. Tive que isso dizer bem alto por que ela já estava longe. Assim que terminou de falar, a garota saiu correndo, como se tivesse muita pressa. Coitada, uma coisa dessas deixa marcas para o resto da vida...
No caminho até o ponto de ônibus, fui pensando em tudo o que ouvi naquela tarde. Eu ainda estava tentando digerir aquela situação. Olhando bem, as coisas se encaixavam e tudo fazia sentido. Se isso fosse mesmo verdade, digo, o sonho, ele teria acontecido no dia seguinte à morte daquele rapaz. Mas o que ele disse mesmo? Ele disse... Deixe-me ver... Não! O fantasma disse: “Por favor, avise a ela que logo estaremos juntos de novo...” Isso significaria que... Ah não, isso era verdade! Não poderia ser...
Pois bem, durante um tempo eu até consegui ignorar o que tinha acontecido... Como eu queria que nada daquilo fosse verdade... Não vi a grota no dia seguinte, nem nos que vieram depois. Pode ser até que eu tenha me perguntado o motivo, mas nunca imaginei que eu mesmo tivesse essas respostas.
Hoje, ao passar os olhos pelo jornal, vi de novo o rosto daquela jovem. Parei o que estava fazendo para ler a legenda da foto: Carolina de Souza Medeiros, vítima de atropelamento. Não acreditei no que acabava de ler! Era ela, a moça da foto! O jornal dizia mais:
“Carolina da Souza Medeiros, 22, estudante de biblioteconomia, morreu na madrugada de hoje, em decorrência de falência múltipla dos órgãos. A estudante foi vítima de atropelamento no centro da cidade, no início do mês passado e estava no CTI da Santa Casa em estado grave. O suspeito está foragido.”