Página Inicial

I

Sentado em sua poltrona, José olhava o livro que repousava entre as suas mãos sem saber por onde começar. Poderia ser simples a resposta (a primeira página, é claro), porém nos últimos dias que se passaram uma certeza lhe corria a mente, era tudo culpa da primeira página.

Havia lido no último ano exatamente dez livros e dez era exatamente a quantidade de tragédias que haviam lhe ocorrido ao longo daquela sombria primavera. Primeiro Voltaire. Mal tinha começado a ler, estava na página 3 ainda, foi descansar e fazer um café e triiiim, foi despedido. Corte de gastos eles disseram, José ficou confuso na hora, puto, um pimentão. Agora já sabia: primeira página. Assim foi com a morte de sua mãe - Colin Wilson - ; com o sequestro da irmã - Shakespeare - ; com o assassinato de seu pai - Hemingway -; com o acidente de carro que o deixou paralítico - Saramago -; com o diagnóstico de câncer nos testículos que o deixou estéril e impotente - Platão -; com a decisão de sua ex-esposa de lhe contar o caso que mantinha com o segurança da rua e larga-lo em seguida - Sartre -; com o incêndio causado por um dos cigarros que ele jogou indiscriminadamente no lixo ainda aceso e que destruiu todo o trabalho de uma vida, assim como o seu apartamento - Pessoa -; com a súbita descoberta que seu filho havia se prostituído e agora era Eva Charlotte o(a) travesti mais famoso(a) do país ( e o mais requisitado(a) por ricassos cansados de suas mesmisses sexuais) - Schopenhauer -; e, por fim, com a notícia de que sua irmã havia, enfim, sido encontrada, morta e violada, em uma floresta no entorno de uma favela - Allan Poe.

Diante do vazio incomensurável que o assolava, pôs-se a pensar o por quê de tudo aquilo ter acontecido assim, de repente, justo com ele. Era isso, ou o suicídio. Recobrou na memória tudo o que havia feito, palavras que havia dito, profanações e maldizeres, as pessoas que haviam passado por ele, suas rotinas, todo e qualquer coisa que pudesse emprestar algum significado simbólico à sua infinita tragédia, de forma que ele pudesse se proteger no futuro de sofrimento equivalente. Foi então que lembrou dos livros que abriu para ler. Um, dois, três.. dez! Dez foram os livros que tinha aberto pra ler e dez eram as desgraças que desabaram sobre ele, só podia ser isso. Processou então tudo que sabia sobre os livros a procura de algum padrão, algo que pudesse dar sentido àquela lógica que vinha desenvolvendo e, sim! Em todos havia começado do início, da primeira página, era a página inicial!

Desde então nunca mais tocou em um livro. Até hoje.

Fazia quase quatro meses que José não tocava numa obra literária. Nervoso, suas mãos tremiam em contato com aquele monte de celulose imprensada, os dedos tateando a superfície áspera e fria daquele objeto, senhor de toda a sua desgraça. Se seu devaneio lógico estivesse correto, bastaria abrir em qualquer outra página que não a primeira e a maldição enfim passaria. Mas e se não passasse? E se o responsável não fosse a primeira página e sim o simples ato de abrir o livro? Não conseguia mais conviver com a dúvida, não aguentava mais a aflição de ter certeza de algo que não se pode confirmar. Tornou a olhar para o livro. Ele repousava quieto, indefeso. Era um Machado de Assis já velho, uma edição de quase duas décadas, guardada desde o seu tempo de escola.

Era a hora.

José olhou para o livro, seu coração palpitando, sua testa suando, seus dedos tremendo, a cabeça a mil, a pupila dilatada, um impulso elétrico, o dedo se movendo levando junto consigo algumas folhas. Enfim aberto, página 66. começou a ler, uma, duas, dez e assim foi até o fim. Nada.

Nada, era isso que ele via. Nada. Não sentia mais nada, tudo era branco, tudo infinito. Não enxergava nem letra, nem folha, nem livro, nem dedo, nem corpo, nem nada. Nem tinha dúvidas, nem tinha tristeza, nem tinha lembranças.

Tornara-se um nada, no infinito do nada, sem sentir nada.

II

O sol já lançava seus raios, preenchendo o vazio deixado pela escuridão nas esquinas quando um rapaz mulato vestido num jaleco branco entrou pela porta de um quarto do hospício municipal de São Tomé de Aquino. Sentado na cama jazia inerte um senhor de cabelos ralos já grisalhos um pouco acima do peso vestido numa roupa de paciente azul bebê com um livro apoiado ao colo. Seu olhar estava vazio, contemplando o nada com a ausência que seria esperada.

- Diretor, preciso de ajuda aqui - Disse o negro ao rádio

Do lado da cama, numa mesinha de madeira, repousavam uma centena de folhas com textos escritos a mão. Olhando-as com curiosidade, o mulato se inclinou e pegou a primeira do bolo semicerrando os olhos para tentar entender a caligrafia daquele lunático. Quando os símbolos começaram a virar letras o enfermeiro pôde enfim ler: "Páginal Inicial: uma tragédia metafísica por José de Almeida".