Homem Misterioso

Era fascinado por filmes onde os enigmas em volta dos assassinatos percorriam indecifráveis em minha mente. Assistia a tantos desse gênero por semana, que já estava adquirindo o hábito de observar tudo e todos ao meu redor. Antes de sair da casa dos meus pais para morar sozinho, eles sempre diziam que chegava a um nível patológico essa minha necessidade de investigar pessoas, monitorar seu comportamento. Nunca liguei para as críticas, sempre gostei de me sentir como o Jeffries de “Janela indiscreta”. Da fresta de minha pequena janela marrom, eu observava atentamente os movimentos sistemáticos que os moradores do edifício ao lado faziam todas as noites. Entre eles, o que mais me chamava atenção era um homem alto e muito robusto, vestido sempre com o mesmo sobretudo escuro, uma grande bolsa preta em mãos, e um enorme chapéu acinzentado que cobria praticamente toda a sua enigmática face. Esse sim era um indivíduo misterioso, que me fazia perder muitas horas na fria madrugada desse inverno rigoroso. Quase sempre deixava seu apartamento às onze e meia pontualmente, e retornava lá pelas quatro da manhã, com seus passos cadenciados, e de vez em quando com um grande charuto entre os dedos. As cenas dos filmes policiais, os assassinatos, os suspeitos, martelavam em minha cabeça vinte e quatro horas por dia. Não me concentrava mais no trabalho, nos amigos, não estava conseguindo ter uma vida normal. Alimentava aquele desejo mortal de enveredar-me pelos caminhos investigativos! Aquele cara com certeza fazia parte de alguma atividade ilegal!

Um dia decidi ir mais a fundo na vida do homem misterioso. Estava preparado para segui-lo assim que saísse: em minha velha mochila pus algo para comer, água, guarda-chuva e mais alguns utensílios que poderiam ser úteis. Era grande a probabilidade de ter de montar campana, a noite poderia ser bem longa. A chuva caía fina sobre os pés de ipês que enfeitavam a avenida, e eu olhava absolutamente tenso para o antigo relógio de parede fixado em minha sala. Estava quase na hora dele sair novamente dos seus domínios, mas os poucos minutos que faltavam, pareciam longos e longos anos... Pronto! Em uma olhada muito rápida, pude observá-lo indo em direção à portaria do prédio, e com a ansiedade estampada no rosto, peguei as minhas chaves em cima da mesa, abri a porta em poucos segundos e desci como uma flecha pelas escadas. A chuva aumentou e o guarda-chuva também me auxiliou no anonimato que precisava, enquanto estava no encalço do vizinho. Os carros passavam por mim em alta velocidade e alguns trechos da avenida estavam completamente alagados, mas nada disso me impedia de seguir com passos largos bem atrás dele.

Eu estava com muito frio e minhas pernas tremiam tanto, que já estavam descoordenando os meus pesados passos. Avistei um bar movimentado, com pessoas muito bem vestidas, felizes e entusiasmadas, música eletrônica. Ele adentrou de imediato o local, e sentou-se em uma mesa no canto do estabelecimento, onde uma mulher já o esperava. Por sorte, pude acompanhar tudo pelas laterais de vidro, apesar da chuva que atrapalhava um pouco minha observação. Eu fingia esperar alguém na calçada, para não levantar suspeitas. Molhado, com muita fome, dei uns cinco passos para ver melhor a companheira de bebida do homem. Era uma mulher oriental, aparentando no máximo trinta anos de idade, bastante sorridente. Parecia rolar uma boa química entre os dois, pois os olhares se encontravam, as mãos se tocavam. O tempo passava e eu já começava a pensar em ir embora, deixando de lado essa maluquice de investigação, poderia estar em minha cama, tomando chocolate quente, vendo um bom filme na televisão... Decidi permanecer quando o vi pedir a conta.

A chuva já havia parado quando eles finalmente saíram de mãos dadas como um casal apaixonado, andando distraídos pelas ruas pouco movimentadas da cidadezinha. Eu acompanhava a uma boa distância, procurando permanecer nas sombras, devorando um sanduíche que acabara de tirar da minha mochila. Eles foram cortando quarteirões, aos beijos. Depois de uns trinta minutos de caminhada, os dois viraram à esquerda e entraram em uma rua de chão bastante íngreme. Eu conseguia ver apenas vultos indistintos na escuridão, mas isso me ajudava a permanecer oculto. Continuei a caminhar com demasiado receio e cautela. Os barulhos da mata fechada rangiam os meus dentes, e congelavam os meus ossos. Por que será que esse cara veio trazer essa menina nesse fim de mundo? Alguma coisa ruim estava por vir. Ouvi o barulho de porteira rangendo timidamente, e pude enxergar bem longe, a claridade de uma espécie de galpão. Estava a metros da porteira nesse momento, e fui adentrando com o coração acelerado, pela propriedade cheia de árvores e plantações. Cheguei o mais perto que pude, e fiquei atrás de uma grande figueira. O homem foi logo abrindo a porta, ela continuava muito sorridente, cantarolando alguma música que não conhecia, e assim os dois entraram. Eu não conseguia observar nenhuma janela. Dei uma volta rápida pela casa, e também não vi mais nenhuma porta. Esperei sentado por no máximo trinta minutos, e nesse tempo não ouvi mais nenhum ruído, risadas, gemidos, ou gritos dentro da casa. Esse clima misterioso e sombrio estava me deixando com os nervos à flor da pele! A porta se abriu bem lentamente, e ele com aquele semblante frio e habitual, olhou para o breu noturno e a encostou. Mas, em suas mãos, não estava mais a grande bolsa preta de costume, e sim uma enorme sacola cinza, que ele levava com um pouco de dificuldade. Minha nossa! Não pode ser o corpo daquela garota! Minhas mãos estavam suadas e gélidas, minhas pernas tremiam assustadoramente, e eu imóvel, o vi sumindo por entre as obscuras árvores... Fiquei estático apenas por alguns segundos, mas logo voltei ao meu estado normal. Com ímpeto e muita coragem, prossegui com firmeza. Respirei fundo, e subi correndo pelos poucos degraus que davam acesso à entrada do imóvel. Pus a mão na porta e fui abrindo com bastante cuidado. Ela rangeu um pouco, e ao entrar me deparei com um grande cômodo, onde havia um sofá no centro, uma velha vitrola ao canto e um quadro assimétrico na parede descascada e repleta de traças. Fui avançando com cautela, chegando a uma outra sala, pequena e suja. Vi algumas ferramentas dispersas em uma mesa metálica com algumas manchas de sangue. O medo foi entrando pelos meus poros, e tentando paralisar-me por completo. Mais ao lado, percebi uma caixa térmica, não muito grande e vermelha. Afoito, levantei a tampa e quase caí para trás com a visão macabra: um coração humano que parecia agonizar, perdido entre as pedras de gelo; com ele, rins e córneas abraçados à espera de um incerto destino. Quantas vítimas esse monstro já não fizera? Eu estava certo quanto a esse crápula, e sabia que algo não estava cheirando bem!

Eu me preparava para fugir dali quando, sobressaltado, dei de cara com o homem na porta do cômodo. Com um sorriso malévolo nos lábios, veio em passos decididos ao meu encontro. Eu não tinha saída. Aos prantos e soluços, pedi que me deixasse ir embora, mas, sem proferir qualquer palavra, me pegou pelo pescoço com as suas mãos truculentas e me jogou sobre a mesa. No instante em que tentava amarrar as minhas trêmulas mãos, num ato de pura sobrevivência, alcancei uma faca, e perfurei o seu abdômen. Sua compleição se transformou em pura dor! Aproveitei o momento e corri como louco, buscando forças onde não existem, para ludibriar a morte! Em segundos cheguei à porta de saída. Trancada! Mal tive tempo de lamentar, e já senti a potência do solavanco que me derrubou no chão, zonzo. O assassino sangrava bastante, mas ainda representava um enorme perigo! Ao me levantar, uma das minhas mãos esbarrou em uma barra de ferro abandonada em um canto, e imediatamente agarrei-a, como minha última chance de salvação. Trôpego, demonstrando sentir muita dor, ele avançou. Com uma força que desconhecia, acertei-o na lateral da cabeça, derrubando-o. Sem dar chance de reação, golpeei loucamente mais algumas vezes. Com a mente nublada, só percebi que tinha matado uma pessoa quando ouvi a voz atrás de mim:

- Levante as mãos e vire-se devagar!

Ao me virar, a surpresa: a voz com tom de autoridade era da mulher oriental, que eu imaginava morta! Empunhava uma pistola 9mm (que eu conhecia muito bem de meus filmes!) e usava luvas pretas. Vestia uma roupa diferente da que eu havia visto no bar, uma espécie de macacão escuro.

- Você vai terminar o serviço do meu funcionário que acabou de matar – disse ela, muito nervosa. – Continue a andar bem devagar, vá até o outro cômodo e pegue a caixa térmica. Qualquer movimento suspeito, eu estouro sua cabeça.

Tremendo muito, fiz exatamente o que me mandou. Peguei a caixa e segui por uma porta dos fundos do galpão, que não tinha visto antes e que com certeza era de onde havia saído a mulher antes de me surpreender. Lá fora, uma van estava estacionada sob uma cobertura de telhas. Sempre sob a mira da pistola, carreguei o veículo com as caixas (outras estavam empilhadas ao lado). Terminada essa atividade, fui novamente conduzido ao interior da propriedade.

- Fique de joelhos e abra a boca!

- P.. por quê...?

- Sua curiosidade vai servir aos meus interesses. Homem mata o comparsa e se suicida. Vai atrapalhar as investigações por tempo suficiente para permitir minha fuga. Obrigado pela ajuda, imbecil.

Quando ela colocou o cano da pistola na minha boca, percebi que não conseguiria escapar do trágico destino. Uma sensação de arrependimento surgiu, mas foi ofuscada por outra ainda mais forte: a satisfação de ter descoberto o segredo do homem misterioso, e a confirmação de que eu estava certo o tempo todo: ele fazia algo ilegal! E foi com esse êxtase investigativo que ouvi o último som da minha vida: o estampido da arma.