Rua LaVey

Eu vislumbro a escuridão, o vácuo, o nada e... De repente um raio, ou uma explosão que vejo se romper em vários fragmentos, dando origem aos planetas, o sistema solar, a via-láctea e o indefinido... Levantei-me assustado, estava na cama, no meu quarto inacabado, sonolento olho para o relógio, ele marcava 3h da madrugada. Eu sonhara novamente. Três! Já era a terceira noite que eu tinha esse mesmo sonho. O que é isso? Parecia-me uma espécie de mau agouro ou um presságio. Três. Aparentemente havia algo de cabalístico nesse número, talvez, mas o quê? Posso supor tudo aquilo que não consigo compreender. Presumivelmente, era uma daquelas perguntas sem respostas do universo... Eu jamais me preocupei com tais assuntos, mas parece que eu mudei, pelo menos aparentemente; ou será que há algo realmente em atrito com o Cosmos? Deixando o universo num caos? O sonho me lembrava alguns vídeos que já assisti acerca do Big-bang; a criação do universo, mas, muito real, real o suficiente para assustar-me. Será algum resquício de memória subconsciente? Talvez, só possuo conjecturas, eu só carrego isso, porém tudo bem, eu vivo bem com isso. Revirei-me na cama um pouco com os meus pensamentos, mas enfim voltei a dormir e, por volta das 6h acordei para ir à faculdade.

Eu saíra da faculdade por volta das 11h40, meu campus ficava no Madureira Shopping e, eu estava num bar na Rua da Portela, ainda no mesmo bairro suburbano. Bebia uma cerveja, debruçado no balcão, sentia-me meio angustiado, não conseguia mensurar “o porquê”? Nunca fui de sentir-me assim. Revolvi a minha memória e fiz uma rápida análise da minha vida: eu tenho vinte e três anos, estou no quarto período da faculdade no curso de Letras, bem, as minhas notas estão boas, faço um estágio remunerado (muito mal por sinal) na secretária municipal de educação, mas que dá para eu sobreviver até o fim do curso, e depois de formado tudo ficará, por conseguinte envolto em trevas; a situação de muitos jovens formados que não conseguem espaço no mercado de trabalho e se veem obrigados a voltar a trabalharem em subempregos, e, esta é a minha vida, melhor do que isto não fica! Eu não fantasio a realidade, que quase sempre é cruel, este é o “The Diogo Show”. Falando um pouco sobre a minha vida pessoal, esta está à mesma merda de sempre, tudo em harmonia com os meus pais e minha irmã e... Estou sozinho, como sempre, e como sempre ouço piadinhas dos meus parentes... Mas, a solidão não é o pretexto para tudo que eu estou sentindo, isso não é o bastante para eu ficar desse jeito, precisamente: vazio. A todo custo tentava relembrar o sonho à noite. “Uma explosão que se rompe em vários fragmentos”; que diabos isso significava? Eu não sabia, não podia saber.

Levantei os meus olhos para dentro do balcão, acima das prateleiras, onde havia vários tipos de bebidas, encontrava-se uma enorme imagem de Jesus Cristo crucificado. Eu semente de uma mãe evangélica, que, instruiu-me veementemente contra a idolatria; “Não farás para ti imagem de ídolos, nem os adorarás, lembre-se que só Javé é Deus”, não obstante; eu sentia-me impelido a questioná-lo, esse a qual todos os cristãos denominam como: o Messias. Onde você está Jesus? Nesse mundo há crianças que nascem mongolóides, psicopatas que circunda-nos e, há diversas formas de se morrer: desde um simples atropelamento até ser queimado numa fornalha ardente por ordem de Nabucodonosor. Seria o Rabino Jesus, realmente Deus? E se Deus realmente existe, onde estariam as provas? Quem seria esse ser invisível que recorremos em nossas preces? Por que ele deixa o mal agir dessa forma cruelíssimo neste mundo? Seria ele um ser de poder espantoso, porém limitado? Seria ele alheio e cruel? São apenas perguntas retóricas, não há ninguém para respondê-las, Nietzche possivelmente estava certo ao dizer que Deus está morto.

Acabei de beber a cerveja, e deixei os três reais no balcão, levantei, sai. Na rua de volta para casa, caminhando olhei para o céu e, percebi que o dia ensolarado deu lugar a um céu nublado, triste, melancólico e por que não dizer, tenebroso. Alguma coisa havia dado errado com o plano da criação divina, eu sentia o mau-augúrio, o sonho, era um presságio, mas eu não conseguia discernir, não estava atento.

Eu cheguei à minha casa, sentei-me no sofá e fiquei em silêncio por alguns instantes, em pensar; que todos os dias, nós levantamo-nos prontos para conquistar o mundo, pois é isso que a televisão faz-nos crer: “que nós iremos conquistar o mundo”, e todos aqueles enlatados estadunidenses com a sua torpe filosofia: American Way Life e, porventura, percebemos que o mundo não é belo, na verdade ele é feio, é opaco, e cruel. Diz-se que “todo homem nasce bom e a sociedade o corrompe”, isto não passa de um pensamento otimista em relação ao ser humano, pois é notório que percebemos que há iniqüidade no coração de uma criança, que bate na outra para roubar-lhe o brinquedo. O ser humano é mal por natureza, sendo uma característica inerente à sua alma. Esta é a minha mais nova teoria.

Semi-ergo do sofá e tomo um banho, almoço e depois me deito no chão como um papel de bala jogado fora, e, fico estirado no chão como algo qualquer, como um cão tolerado por seu dono e, decido ficar por ali. Sinto-me derrotado. O que eu sou? Estudo para tornar-me professor e, para quê? Não há nada a ensinar e, também não há nada a aprender. Os meus alunos não conseguem ficar por mais de um minuto sentados prestando atenção a minha aula, majoritariamente, eles são oriundos de comunidades pobres, o que uma análise sintática irá implicar em melhoria nas suas vidas miseráveis na prática? Nada, e se isso não lhes oferece uma função prática em suas vidas, eles simplesmente descartam-na. E, eu que não sou nem melhor nem pior do que eles, qual é a serventia disso para mim? E, ainda tenho a audácia de pretender ganhar a vida com isso. Não, definitivamente não, meus alunos e eu continuaremos na mesma situação; servindo aos outros. O que tu buscas nesta vida, senão futilidades? Tudo é vão, tudo é nada.

Enquanto eu delirava na minha “triste alegria”, o telefone tocou e, eu não me sentia muito atraído em atender o tal aparelho. Alguns anos trabalhando como telemarketing já fora o suficiente para eu nutrir um desdenho exacerbado pela maravilha da telecomunicação. Miseravelmente, o telefone continuava a soar incisivamente, observei que provavelmente era algo importante, sem direito a escolha fui atender. O telefone ficava próximo à janela da sala, assim que tirei o fone do gancho, olhei para ela e, fitei um corvo, que porventura pousou em cima do muro que ficava no quintal de casa, o animal ficou me encarando pelo vidro da janela por alguns segundos com os seus olhos vermelhos como “chamas incandescentes”, e, depois tornou a voar, ganhando a imensidão do céu ou talvez tenha se lançado de volta aos infernos? Um corvo! Agora mais essa! É uma ave de mau agouro. Seria mais um sinal?

- Alô, Diogo é você? – respondera a pessoa do outro lado da linha. “Diogo? Sim sou eu”, pensei, em parte e até quando? Segundo o filósofo Heráclito de Éfeso: uma mesma pessoa não pode adentrar no mesmo rio por mais de uma vez, por que a pessoa não seria mais a mesma, nem o rio seria mais o mesmo. O filósofo era um dos precursores do estudo de atomismo. Nossos átomos estão em constante mudança, então por que toda vez, que eu acordo, eu continuo sendo o mesmo Diogo de outrora, seria eu mesmo, ou seria outro? O mistério da realidade é tão estulto e tão banal quanto o mistério da natureza das coisas.

- Sou eu cara. – respondi finalmente.

- É a Vanessa, tenho algo horrível para contar-lhe! – assustado perguntei:

- O que é? O que houve?

Mesmo por telefone, podia perceber a sua hesitação, talvez ele estivesse escolhendo as palavras certas, isso ou qualquer outra coisa.

- O nosso aluno William, que estava desaparecido reapareceu, aqui em Irajá...

Ela demorou alguns minutos para continuar a falar, minutos estes que demoraram toda a eternidade. Tentei dialogar:

- Que bom, acharam o pobre coitado do William e... – ela cortou-me dizendo enfim:

- Acharam o William, Diogo, numa casa... tudo indica que ele assassinou uma garota, só que ele não sai de lá por nada, está com outra garota de refém, e, ele quer falar com você de qualquer jeito e tem mais uma coisa...

- O quê?

- Ele diz não ser William e, sim; um demônio!

- Por Deus! Mais essa! Dê-me o endereço, então!

- O endereço é na Rua LaVey nº 666.

William é um dos alunos dos quais dei aula de reforço no estágio na Escola Municipal A..., porventura, ele era até um bom garoto, porém, como muitos, ele possuía um intelecto simplório, a qual não conseguia visualizar a ideia lógica que; quanto mais estudo, mais oportunidade de obter um bom emprego e, conseguintemente um bom salário, apesar de acreditar nessa lógica, às vezes olho ao meu redor e vejo pessoas inteligentes passando necessidade e pessoas de QI mais baixo bem de vida, então acho que não há correlação, então por conclusão; William está certo e eu estou errado. A minha amiga Vanessa, também faz estágio comigo, dando aulas de matemática, por isso, também o conhecia. O que eu não conseguia discernir; é por que diabos, William queria falar comigo? E, esse absurdo que a Vanessa falou-me: “ele diz ser um demônio”. Era tudo muito estranho, destarte, eu deveria encarar! É melhor suportar o que quer tenha para ser suportado, como reza a Lei de Murphy: “Se algo tem a probabilidade de dá errado; realmente dará errado”.

Cheguei até a casa onde se encontrava o meu aluno, os policiais faziam o cerco por todo o perímetro do local. A Rua LaVey ficava próximo da Av. Brasil, km... E em frente... A rua era uma homenagem a Anton Szandor LaVey, intitulado por seus seguidores como o “papa negro”, o fundador da Igreja de Satanás em abril de 1966. No local, além dos policiais, estavam ali presentes: a família de William, atônitos sem entenderem o que dera na cabeça do infeliz de cometer tal horrendo absurdo, a família da moça assassinada, com a sua mãe chorando copiosamente, e o resto dos familiares aflitos para que a situação se finde o mais rápido possível, e a família da moça que estava de refém, também estava ali, a mãe da moça, eu a reconheci, já a vi na escola, a moça em questão só poderia ser uma ex-aluna do colégio em que eu estagio e, que possui dois irmãos que ainda estudam por lá, a moça faz o ensino médio normal no Carmela Dutra, para tornar-se professora primária e, eu a conhecia sem ter grandes intimidades, pois, esporadicamente ela ia visitar os seus antigos professores, ela chamava-se: Ana.

Aproximei e avistei a minha amiga Vanessa conversando com os policiais, fui até ela:

- Oi, Diogo – Disse-me.

- Olá, Vanessa. – Apertamo-nos as mãos. Ela estava pálido, temerosa, pude notar sua mão tremendo.

- Diga-me Vanessa, o que está acontecendo aqui?

- Diogo, William ficou louco, ele desapareceu por três semanas, ninguém fazia a mínima ideia onde o infeliz estava. Sem saber como, ele raptou ontem no fim da tarde, duas alunas no Carmela Dutra, uma delas com o nome de Rebeca; ele disse que a matou, e a outra nós a conhecemos e você já deve ter visto a mãe dela ali, a outra garota é a Ana, amiguíssima da Professora Jane de português, aquela menina que brincávamos entre a gente, chamando-a de: “puxa-saco”... – Eu até esbocei um breve sorriso ao pensar nisso e, a maneira como a via bajulando os seus ex-professores, era até um tanto patético, todavia, ela até ganhou uma determinada quantia em dinheiro de uma bolsa do município por ter obtido somente notas azuis, sendo considerada a melhor da turma. Ela era uma boa moça, muito inteligente e simpática, tinha cerca de 1m64, corpo elegante, olhos castanhos, cabelos ruivos e... Também era bonita, muito bonita. – então Diogo, essa moça que está de refém lá dentro, - continuou a falar-me Vanessa – William falou que se não falar com o seu professor de reforço chamado Diogo Abreu, ele irá matá-la, por isso eu te chamei!

- Entendi.

Bem, se é que dá para compreender alguma coisa. A barbárie humana é algo imarcescível que segundo ouvi, certa vez de um Rabino, ocorre desde que Javé criou o mundo e, não consegui ainda desde que nasci assimilar esse princípio, princípio este, que me parece empiricamente inato a todo ser humano.

- Quantos anos a Ana tem? – Perguntei.

- Sei lá, uns dezesseis, talvez, dezessete.

- Ela é muito jovem.

- Sim, muito jovem. – Confirmou.

Retirei-me da presença da minha amiga e, fui até onde os policiais estavam. Um oficial da polícia chamado Oscar estava à frente da negociação, que até agora não avançara. De sobressalto fitei William passando na sala, dentro da casa, pude visualizá-lo graças à janela que ficava à fronte na casa, ele estava com uma pistola mirando na cabeça da pobre Ana, ele passou rapidamente, e a maneira como segurava a vítima, não dava oportunidade para os atiradores de elite acertá-lo com um tiro, mas, percebi que os seus olhos pareciam vermelhos, vermelhos como: “chamas incandescentes”. Ele passou rápido, estranhamente, parecia não preocupar-se com os atiradores de elite que ficavam em cima dos prédios vizinhos à residência, tinha um sorriso perturbador, realmente parecia estar possuído.

Tentei conversar com o oficial chamado Oscar, que estava à frente da operação, perguntando-lhe em quê, eu poderia lhe ajudar, e fui tratado com a corriqueira aspereza da força policial, ou seja, nada diferente do habitual:

- O que você está fazendo aqui? Eu sou um policial que possuo mais de vinte anos de experiência em casos de refém! Não preciso da ajuda de um borra-calças como você!

- Mas... mas... é que o meu amigo ligou para mim e... ele disse... que o meu aluno exige falar co... migo e tal...

- Sim, ele disse isso, mas acha que eu, um policial experiente, vou deixá-lo ir lá falar com ele, e para quê? Provavelmente, ele irá matá-lo também ou será que você se julga um fodão que irá desarmar aquele psicopata e salvar a moça? Héin, responda-me Silvester Stallone?

- Eu... eu... pensei...

- Pensou o caralho! E, deixe-me trabalhar, ok? Agora saia daqui! – ordenou.

Antes que eu pudesse retirar-me da infame presença do Oficial Oscar, veio outro tira e trouxe-lhe um aparelho celular, informando-o que o “sequestrador” queria negociar. O oficial Oscar colocou o telefone celular em viva-voz, e começou a tentativa de negociar a rendição de William:

- William, boa tarde! – Iniciava a conversa o oficial.

Não houve resposta. Apenas podia-se ouvir um gemido abafado, presumivelmente era de Ana.

- William?

Uma risada baixa pôde ser ouvida, e depois um grito estridente... Era a Ana! O grito foi tão alto e tão aterrorizador que todos que faziam o cerco a casa na Rua Lavey deve ter ouvido. Aquilo me deixou assombrado, o que poderia ter ocorrido a ela?

- William? – Voltou a perguntar o oficial, demonstrando preocupação na voz.

Após alguns segundos, e uma tétrica risada, William respondeu pomposamente:

- SIM! – Sua voz era grossa, não parecia mais a voz de um guri de apenas treze anos.

- William, tudo bem aí? – Quis saber o Oficial Oscar.

- Pra mim está... – Ele respondeu.

- E, a moça... A Ana ela está bem?

Houve mais alguns minutos de silêncio.

- Está – Respondeu enfim, mas completou – a vadia pode ser toda sua, se você trouxer o que eu quero!

- E, o que você quer?

Houve mais um silêncio, que dessa vez fora quebrado por um uivo que foi ouvido pelo aparelho telefônico, podendo ser de um cachorro, porém, aparentava mais ser de um lobo, assustadoramente extraordinário, já que estávamos em plena área urbana, subúrbio da cidade. Presumi que só poderia haver um cachorro com eles lá dentro, seria a única explicação plausível. Após o uivo, William riu-se de foram diabólica e respondeu:

- Eu quero o meu nobre professor Diogo Abreu aqui comigo!

O Oficial Oscar olhou enfezado para mim.

- O seu professor ainda não está aqui... – Antes que ele pudesse terminar de argumentar, algo foi arremessado pela janela quebrando-a, com uma força extraordinariamente sobre-humana, o objeto bateu no vidro traseiro de uma das viaturas que estavam no cerco da casa e, parou quase no meio da rua. Os policiais pediram que os familiares e os curiosos se afastassem do objeto, afinal, poder-se-ia ser algo perigoso. Dois policiais aproximaram-se do tal objeto que estava em volto de um pano carmesim manchado de sangue escarlate, eles hesitaram um pouco, porém, com cuidados desfizeram o nó no pano e, revelaram o que havia guardado ali; causando um torpor de horror e desespero. A comoção tomou conta de todos; pois, era a cabeça decapitada de Rebeca, que estava ali. Os familiares dela ao perceber que se tratava da cabeça da pobre moça, ficaram em desespero, pois ainda aguardavam alguma esperança dela ainda estar viva; a mãe dela teve um colapso nervoso, sem comentar a família da Ana, e do próprio William que estavam num frenesi desesperador.

O oficial Oscar estava horrorizado e, por alguma força inelutável, ele aparentemente perdeu o seu ar pomposo e o seu ímpeto de policial, parecia ter perdido a sua coragem como por encantamento, não só ele, como todos os outros agentes da lei. Teria alguma espécie de feitiçaria quando William atirou pela janela a cabeça decapitada da infeliz? O oficial sem exprimir nenhuma palavra, ouviu William realizar a sua derradeira ameaça:

- Preste bem atenção – a voz de William estava totalmente alterada, era uma voz grave, parecia até que havia mais de uma pessoa, falando em uníssono – seu policial pedófilo, ou você acha que eu não sei dos seus tempos de guardinha na FEBEM, eu sei de tudo! Eu sei também, que Diogo Abreu está aí bem ao seu lado, tenho assuntos pendentes com ele, e, quero falar-lhe, ouviu? Caso ele não entre aqui agora, a cabeça da Ana vai ser a próxima a ser atirada por essa janela, e depois, Oscar, eu irei atormentá-lo por toda a eternidade, você sabe no seu íntimo, que eu posso fazer isso, não sabe? Você sentirá dor, sofrimento e ranger de dente, inimaginável! Crer que pode suportar? Não brinque comigo, eu quero o Diogo aqui agora, entendeu?

O oficial estava em estado de choque, parecia não ter mais o controle de si mesmo:

- Sim... tudo... tudo bem, ele vai entrar.

Os policiais estavam ajudando-me a pôr o colete à prova de balas e, eu tentava em vão crer que isso realmente me ajudaria a sobreviver à demência, ao estranho e fantástico, àquilo que não pertence a este mundo. Os tiras tentavam também, em vão, dar-me dicas de como dialogar com um psicopata assassino e, procurar convencê-lo a soltar a vítima e a entregar-se, obviamente, tais dicas não serviriam de absolutamente nada, já que os policiais estavam agindo de uma forma que eu nunca vira antes, todos pareciam temerosos diante dos acontecimentos, eu convivi com os homens de farda desde que eu conheço-me por gente e nunca os vi portarem-se dessa forma. Ouvi um policial mais velho comentar: “em vinte e dois anos de polícia, eu nunca vi isso”.

Nessa hora já começava o período entre o entardecer e o anoitecer, conhecido como: crepúsculo, o céu desanuviou, dando lugar a um céu limpo, onde até dava para vislumbrar a estrela d’alva, que na verdade é o planeta Vênus, e, até então; eu não sei o que me deu, para naquele momento crucial e horripilante, parar por alguns instantes e admirar o planeta Vênus; em parar e simplesmente admirar o Belo, no mundo capitalista movimentado como o nosso, nós não temos tempo para uma coisa tão banal como essa. Olhei ao meu redor e notei que a Rua LaVey estava repleta de equipes jornalísticas, e o fato estava sendo coberto por algumas emissoras de televisão, será que eu ficarei famoso? Pensei, ridiculamente.

O oficial Oscar veio surpreendentemente falar comigo:

- Diogo!

- Sim oficial! O senhor veio me dá alguma dica também?

- Não, nada que eu fale ajudará muito. – Ele disse ainda com o semblante estranhamente temeroso, totalmente diferente de alguns minutos atrás.

- É! Eu receava que sim. – Disse-lhe.

- Em mais de vinte anos na polícia, tratando de negociações de reféns, e, isso nunca me ocorrera, ou melhor; agora isso, aquele jovem parece está possuído! Até parece que é o meu primeiro caso de negociação, eu não consigo conter-me, pareço está apav... bem, deixa pra lá! – novamente ouço a palavra: “possuído”, mas, de uma forma diferente daquela professado na Universal, a qual eu não tive uma experiência lá muito boa anos atrás.

- É parece possuído mesmo – Confirmei-lhe a ideia ao lembrar-me da cabeça decapitada da moça chamada Rebeca. Porquanto, naquela altura, achei conveniente perguntá-lo:

- Oficial Oscar, eu posso fazer-lhe uma pergunta pessoal?

Ele mensurou um pouco, mas, deve ter analisado; “se esse jovem está arriscando a sua vida, talvez, valha à pena responder a sua inquietação”.

- Sim pode fazer, mas veja bem o que você vai me perguntar.

- O senhor crer em Deus?

- Em Deus?

- Sim em Deus! O senhor acredita?

Prontamente respondeu:

- Depois de todos esses anos de trabalho na polícia, acho que eu já vi quase de tudo; a minha razão diz o óbvio: Deus não existe, mas, se ele realmente existe, eu digo-lhe que “há algo de muito errado entre nós e Ele”.

Sem pestanejar atravessei o quintal que dá acesso à “casa dos horrores” escoltado por um policial, no qual me acompanhou até a porta, bateu e avisou a William que era eu. O policial deixou-me sozinho em frente à porta, deixando claro que a partir dali eu assumiria, saiu de lá a passos ligeiros. Ironicamente lembrei-me de uma frase emblemática de Jesus Cristo: “batei, e abrir-se-vos-á”.

William ordenou que eu entrasse. Sem delongas, e sem opção alguma; abri a porta, que rangeu de maneira perturbadora e entrei e, obrigatoriamente fechei-a, não adiantaria arriscar, por maior que fosse o tempo que a porta ficasse aberta, os policiais por alguma decisão do Além, não iriam ter coragem suficiente de atirar nele, havia algo de errado àquele dia; o universo deixou de ser um cosmos e voltou a ser um caos, ou porventura seja a ordem natural das coisas; “tudo flui como um rio”, como dissera Heráclito de Éfeso; muitos concordam em dizer que o universo foi gerado; tudo bem, mas, uma vez gerado, alguns afirmam que é eterno e outros que é perecível, como qualquer outra coisa que por natureza se forma. Já outros afirmam, ainda, que, destruindo-se, alternadamente, o universo ora é assim, ora é de outro modo. Presumi que estivesse acontecendo isso; o mundo está acabando para ser formado outro, renascido; a raça humana será varrida do universo e, uma nova geração, talvez, nos redima no universo, fazendo-o novamente um cosmos, ou seja; harmonia.

Notei logo assim que adentrei no recinto um odor fétido que estava estagnado no local, além disso, o ambiente estava um frio de ranger os dentes! A casa estava caindo aos pedaços, e não aparentando ter nenhuma espécie de ar condicionado lá dentro, esse frio contrastava com o calor quase insuportável de início de noite no Rio de Janeiro. Seria uma espécie de frio sobrenatural? Não sei, mas posso dizer que William estava no fundo da sala com Ana a sua frente sob a mira de sua arma, que era uma pistola automática, possivelmente um calibre 45. Nada que eu escreva com o meu limitadíssimo vocabulário será uma boa descrição daquele sórdido lugar, mas vou dizer que a sala possuía apenas uma estante de madeira podre, que ficava próxima à janela à minha direita com uma televisão e um rádio muito antigos, e havia apenas um sofá velho à esquerda, cheio de retalhos, e havia também um quadro um tanto sombrio na parede, acima do sofá, era um retrato de um corvo de olhos vermelhos. Não obstante, a característica mais ignóbil, era com certeza; as diversas pichações: desenhos de demônios, e, o mais incrível: havia um desenho de um pentagrama enorme no chão, e sem comentar as manchas de sangue por todo lado.

Ana parecia está bem fisicamente, só tinha um pequeno ferimento na cabeça, não era grave, porém, parecia está em transe, talvez estivesse em estado de choque, o seu olhar denotava desespero mortal e, não era por menos, afinal, estava diante de um horror inexplicável, não obstante, parecia alheia à realidade, como se estivesse sob um feitiço. Ao aproximar-me dela e de William, da forma que eu ficava no centro da sala e eles encostados à parede longe da janela, a luz da lâmpada que não estava muito forte, piscou pelo menos três vezes, o que fez o suposto endemoninhado dá uma boa gargalhada, o que me fez suar frio, pois o riso dele, caso eu acreditasse, parecia ser a do próprio Satã! Fitou-me com os olhos vermelhos, cor essa, que eu poderia jurar que não se tratava do uso de algum tipo droga, e sim; olhos como “brasas incandescentes”, como brasas do próprio Inferno!

- Seja bem-vindo às trevas, Diogo!

- O.. oi William... – Disse sem convicção.

Ele riu da minha hesitação.

- Por que William... você está... fazendo isso? Por que você matou aquela garota?

Houve um silêncio.

De repente ele uivou alto e agudo, de forma ensurdecedora, vi-me obrigado a pôr as mãos nas orelhas para abafar o barulho. O uivo não havia nada de imitação, realmente era o uivo de um lobo, sem dúvida.

- Diogo, você ainda acha que eu sou William? – Disse-me.

- Sim, você é William, o meu aluno nas aulas de reforço de português!

- E, desde quando? Afinal de contas, você não possui conclusões empíricas sobre isso?

Fiquei pasmo com a afirmação dele, sobretudo com o uso da palavra “empírico”, destarte; eu pensei rapidamente e conclui que era provável que ele sofresse de alguma patologia, talvez personalidade buliforme, em que o individuo acredita piamente que seu corpo foi tomado por uma inteligência alheia, sendo um espírito, um alienígena ou até mesmo um demônio. Isso finda por gerar uma dupla-personalidade e, a segunda persona sempre possui uma relação destrutiva para com a primeira.

- Você é William! Você não se lembra? – Tentei fazê-lo retornar à realidade.

Ele deu mais uma gargalhada diabólica. Eu estava estupefato, porém, tentei me compor e insistir em conversar com ele:

- Por que você matou aquela moça chamada Rebeca?

- Por que foi divertido. – Ele respondeu prontamente.

- Por que foi divertido?

Olhou-me com olhar perverso, muito diferente do que eu lembrava-me dele, podia ter o rosto de William, o seu cabelo, e até mesmo o seu corpo, mas, apesar disso confrontar a minha lógica; no fundo algo me dizia: não era ele.

- Rebeca – ele começou a falar – Rebeca, a normalista, deixe-me ver; ela tinha quantos anos? Dezesseis anos! Um corpo bonito, inteligente, boa moça e, toda uma vida pela frente! Ah, Rebeca... Eu a matei! Eu a vi com aquele uniforme do Carmela, aquela saiazinha azul, sapatinhos pretos, abaixava a cabeça de tão tímida, quando alguém mexia com ela na rua, era fiel ao seu namoradinho e dizia em seu coração que iria se casar com ele, certamente um doce de criatura! Tive que matá-la, foi inevitável, afinal; a Parca tece o fio do nosso destino e tudo o mais. Fui compelido e, por isso, trouxe-a aqui neste lugar sagrado juntamente com a Ana, decidi matar só a Rebeca, afinal, a Ana você conhece, não seria ético, pelo menos por hora. Então fiz um ritual, uma oferenda em nome de... – ao dizer isso mais uma vez a lâmpada da sala piscou por três vezes e, algo que eu ainda não havia notado deixou-me ainda mais apavorado, notei que havia sangue respingando do teto e, ao olhar para cima, eu constatei que o restante do corpo de Rebeca estava ali pregado no teto da sala.

William ao notar o meu estado de torpor comentou:

- O ritual é extraordinário! Você não acha?

Eu fiquei em silêncio, não conseguia exprimir palavras, estava entorpecido com o horror. O desespero tomou conta de mim de tal forma, que eu me virei e tentei abrir a porta e sair dali o mais rápido possível, mas, quando eu tentei girar a maçaneta da porta para abri-la, foi em vão; estava trancada! William riu e disse-me:

- Você não sairá daqui! Bom, ainda não...

Constatei que era uma tentativa em vão e me conformei, tentei mensurar o que estava acontecendo; eu sempre fui um cético e, ainda não conseguia acreditar, isso deveria ter alguma explicação lógica e racional, mas, o medo se apoderava de mim de tal forma, não me deixando pensar em absolutamente nada. Retornei novamente na direção do William e da Ana, na maneira que eu ficava à frente deles, estranhamente, permaneceram imóveis desde que eu entrei. Fazendo-me crer na ideia religiosa, tornei a perguntá-lo:

- Quem é você?

- A questão aqui não é quem eu sou e sim; quem é você?

Não dei importância ao que ele quis dizer, e tornei a fazer-lhe praticamente a mesma pergunta:

- Você disse que fez o ritual em nome de alguém, que é esta pessoa?

- Acho que você sabe, mas não posso te contar é proibido, mas posso te dizer qual é o meu trabalho.

- E, qual é?

- Eu venho para testar a fidelidade dos homens.

- Fidelidade a você?

- Não.

- A quem, então?

- A Razão Universal, a essência, a verdade de todas as coisas, o Todo.

Que diabos essa criatura está falando? Um diabo adepto do estoicismo?

- O que você quer comigo? Por que exigiu a minha presença? – tornei a perguntá-lo:

- Eu vim ajudá-lo.

- Em quê?

William grunhiu perturbadoramente como um porco que está prestes a ser abatido e, depois de algum tempo respondeu:

- Ajudar em sua descrença, em sua falta de fé, isso te angustia.

Fiquei abismado, parecia-me ler a alma. Fiz-lhe mais uma pergunta:

- Afinal, o que você é?

- “Eu sou o Todo, o Todo saiu de mim e o Todo voltou a mim; cortai uma madeira e lá estarei, rachai uma pedra e lá me encontrarás”. – Respondeu-me de maneira enigmática.

O “Todo”, o que ele quis dizer? William não era um dos melhores alunos, e, agora possuía conhecimentos filosóficos? A frase emblemática dele deveria ter algum significado oculto, mas qual? Gnosticismo? Sei lá, chegava a ser absurdo!

- Eu não entendi. – Disse.

- Entendeu sim; no fundo você entendeu, pense; você achará a resposta em si mesmo.

Achar a resposta em mim mesmo? O “Todo”, o que será que ele quis dizer com isso? “Eu sou o Todo, o Todo saiu de mim e o Todo Voltou a mim”; isso me lembrava à teoria filosófica do Estoicismo, teoria a qual, afirma; que todo o universo é corpóreo e governado por um Logos divino (noção que os estóicos tomaram de empréstimo de Heráclito de Éfeso e, desenvolveram-na). Lembro-me também, graças as aulas de Filosofia do Prof° Dornelas; que segundo essa teoria; a Alma está identificada com este princípio divino, como parte de um Todo ao qual pertence. Este Logos (ou razão universal) ordena todas as coisas: tudo surge a partir dele e de acordo com ele, graças a ele o mundo é um cosmos (termo que em grego significa "harmonia").

Após essa breve reminiscência, olhei para William e disse:

- Então, você julga ser o Logos, a “Razão Universal”?

Ele olhou-me e, riu-se, e respondeu-me:

- Sim; não só eu como você também faz parte.

Pensei por um momento, e decidi entrar no jogo dele, assim ousei em perguntar:

- Você é um demônio?

- Demônio é uma palavra pejorativa usado hoje em dia para me descrever, mas, originalmente é uma palavra oriunda do grego que significa dentre outras coisas: “sábio”, apesar de existir no universo seres mais sábios do que eu, posso, sim ser considerado um “demônio”. Mas, afirmo que nenhum ser entre a linha tênue do Céu e do Inferno, excetuando o Todo, não conhece o ser humano mais do que eu!

Então, ele confirmou ser realmente um demônio, afinal; não faz diferença se um lunático diz ser Napoleão Bonaparte ou o próprio Lúcifer. Porventura, dizem que não se devem contradizer os loucos, ainda mais os psicopatas, porquanto; procurei permanecer no jogo, comecei a sentir-me um pouco mais a vontade, eu precisava salvar a Ana, tirá-la daqui. Não obstante, tive o impulso de continuar a conversar com ele e, quem sabe; trazê-lo de volta à realidade:

- Se você é realmente um demônio, gostaria que me provasse!

- Eu não o chamei aqui, para isso. – William foi prudente na resposta.

- Veio para quê?

- Para ajudá-lo.

- Ajudar-me em quê? Não preciso de sua ajuda, ainda mais de uma criatura que diz ser um demônio!

- Um demônio nada mais é do que um anjo e, como todo anjo eu tenho uma missão.

- Uma missão? Mas você é um anjo das trevas! – Disse-lhe atônito.

- Eu sou um anjo das trevas, sim, não posso contradizê-lo, este mundo é a treva, é uma caverna mal iluminada que fazem vocês enxergarem sombras e tê-las como reais, mas não são e, por rodear este mundo, isso me faz um anjo das trevas, porém a minha missão é a mais egrégia de todas! Por minha causa, todos os humanos alcançam a graça divina, encontram a verdade.

Pasmo, eu o perguntei:

- E que missão é essa?

- “Eu sou aquele que testa a fé dos homens”!

- E, você me chamou aqui para testar a minha fé? – Disse e, lembrei-me que eu sou um cético, muitos amigos meus me consideram um ateu.

- Não! Apenas vim ajudá-lo. – Respondeu.

- Na minha falta de fé? – Então com muita audácia, eu o desafiei – Então você falhou amigo, pois; eu não acreditava e ainda não acredito em demônios, anjos, em Deus ou sei-lá-mais-o-quê!

Ele ao ouvir isso tirou as suas mãos de cima da Ana e afastou a arma dela, William riu zombeteiramente e me disse enfim:

- O meu trabalho terminou por aqui.

De repente a Ana voltou a si, fitou-me diretamente, como se fosse à primeira vez que me viu desde que eu adentrei na sala, estava desorientada como quem acabava de despertar de um sono profundo:

- Di... Diogo?!

- Sim... Ana sou eu! Você está bem? – Ela estava como refém havia mais de doze horas e, eu faço uma pergunta imbecil dessas.

- Es.. estou sim! – Ela respondeu.

William disse:

- Você pode ir Ana.

Ela veio até mim andando de maneira sôfrega, como se estivesse sob efeito de alguma droga, peguei ela pelo braço e, sem uma explicação plausível, ficamos parados ali, como se precisássemos do poder de William para liberar o feitiço da tranca da porta da casa dos horrores, antes da autorização final de que podia sair dali com a garota, eu teria que ouvir o derradeiro ensinamento daquele que se julgava um ser etéreo:

- Note te ipsum. – Disse-me.

- O que isso significa?

- Note te ipsum – respondeu-me – se você realmente entender a verdade dessa proposição, você não conhecerá a morte, pois; será integrado ao Todo. Você entendeu?

Obviamente, eu não compreendera absolutamente nada o que ele quis dizer! E, era só o que me faltava um demônio filósofo! Mas, o momento era crucial e importante, e eu não deveria de forma alguma contradizê-lo.

- Entendi. – Disse enfim.

Ele porquanto, disse-me mais uma vez que o seu trabalho findara e, apontou a pistola em direção a sua própria cabeça e, durante algumas frações de segundo, eu não acreditei que ele faria isso, tentei esboçar alguma palavra para impedi-lo, foi em vão, ele atirou, matando-se. Os seus miolos espatifaram-se por toda a sala, e ao ouvir o barulho dos tiros, os policiais entraram na sala, pareciam atentos dessa vez; e eu possuía a sensação de ter saído do mundo inteligível e retornado ao mundo concreto. E, para quem acredita nos mistérios do sobrenatural; isso significava que o “demônio” terminara o seu seviço, já que ele retornou aos abismos do Hades.

Fui escoltado até uma ambulância e, por mais que eu dissesse que estava bem; de nada adiantava, pois, eles contra-argumentavam dizendo-me que eu necessitava fazer exames, para certificarem-se de que estou realmente bem. Enquanto uns enfermeiros me colocavam na maca e o médico tirava a minha pressão na calçada da rua onde estava estacionada a ambulância, pude ver a Ana na mesma situação numa ambulância noutro lado da rua, ela viu-me, acenei para ela e ela retribuiu o gesto.

Eles levaram-me ao hospital e depois de alguns exames constataram que eu estava bem tanto fisicamente quanto mentalmente e, fui liberado. Cheguei a dar até uma entrevista ao jornal de uma emissora de televisão, porém, quando mostraram a cobertura do caso na Rua LaVey na TV, não fora para o ar a reportagem, apenas fora citado o meu nome. A minha amiga Vanessa ficou muito irritada com o fato de a emissora ter cancelado a exibição da entrevista, já que ela considerou-me o herói do bairro de Irajá. Herói, eu? Foi à coisa mais ridícula que já fora proferido por ela! Demos boas risadas pensando nisso.

Alguns dias após o horror ocorrido na Rua LaVey; os jornais já não falavam mais do caso, até mesmo, por que outro psicopata que matou toda a família em São Paulo, sordidamente, ocupou o lugar de William nas principais manchetes. Fiquei sabendo posteriormente através de fofocas na escola que eu faço estágio; que William sofria de esquizofrenia, isso explica a mudança de voz e aparência e a força sobre-humana, e sem falar a personalidade dúbia.

Apesar de praticamente nenhum jornal mais comentar o fato, ainda, havia algo que me intrigava; era a última revelação que William me fizera e, senão estou errado era: “Note te ipsum”. Eu ainda estava em casa devido aos “traumas” recorrentes da situação de tensão e perigo, e, como eu já estava entediado, ou seja, de saco-cheio de Jogar vídeo-game, decidi investigar e saber que porra era aquela que William queria me dizer, afinal, ele se matou depois de tal revelação. Revolvi rapidamente a minha psique e, constatei que a frase presumivelmente era da língua latina.

Subi até o meu quarto que ainda estava em obra, acho que em obra eterna, para ser mais exato, mas era lá que estava o meu armário, onde eu guardava os meus livros. Sem procurar muito achei o meu dicionário: português-latim, porquanto; descobri que: Note te ipsum significava: conhece-te a ti mesmo. Eu não necessitava fazer maiores perguntas, afinal, a frase em questão era uma das mais famosas. “Conhece-te a ti mesmo” era o lema do Oráculo de Delfos nos tempos da Grécia antiga, essa máxima tornou-se também parte do método da maiêutica do pai da filosofia: Sócrates. Eu achei aquilo extraordinário, como um aluno simplório como William tomou conhecimento do método maiêutico? Teria ele ouvido esse conhecimento filosófico de algum lugar e, de certa forma, tal conhecimento ficara retido? Ironicamente, lembrei-me que tanto Sócrates quanto o seu ilustre discípulo Platão acreditavam que o conhecimento era inato. Portanto; William já teria esse conhecimento desde que nasceu, porém; encontrava-se adormecido? E, tal conhecimento acordou em seu momento derradeiro de loucura psicótica? Só posso levantar conjecturas, somente isso, porventura; não deixava de ser extraordinário!

Desci as escadas e fui até a sala de estar, o calor era insuportável, deitei-me no chão e, dessa vez não me sentia mais angustiado, já nem um pouco deprimido; ainda havia algo de errado com o mundo e não sei bem o que é, mas há. Eu, ainda não conseguia discernir se William realmente estava possuído por um demônio ou se Deus realmente existe. Talvez eu nunca saiba. Só há duvidas em mim, e, devo-me sentir bem com isso, já que tal sentimento é inato ao ser humano. Um arquivista eu sou, pensei, dos defeitos do mundo, e já não possuo crueldade, mas paciência.

Enquanto eu relaxava deitado no chão da sala, o telefone tocou de forma estridente, extremamente alto e agudo:

Triiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiim!

Insultei o aparelho por todas as blasfêmias conhecidas até então pela humanidade. E, com a minha corriqueira má vontade, eu atendi o vil aparelho:

- Alô? – Falei com certo grau de aspereza.

- Alô, pois não... – A voz no outro lado da linha hesitou um pouco, era voz de mulher.

- Alô, quem é? – Perguntei.

- Quem está falando é a Ana, eu gostaria de falar com o Diogo.

Confesso que o meu coração disparou ao perceber que se tratava da normalista.

- Sou eu mesmo, Ana!

- Ah! Que bom! Diogo, tudo bem com você?

- Sim, claro! E você?

- Estou bem, na verdade não me lembro bem o que aconteceu. Os médicos dizem que eu bloqueei a memória ruim, sei lá.

- Talvez tenha sido melhor assim, mas, por que você está me ligando? Não sabia que você tinha o meu telefone.

Ela riu.

- Na verdade eu peguei o seu telefone lá na escola, e, ainda não tive chance de te agradecer, afinal de contas você convenceu aquele maluco a me soltar, né?

- Se você diz. Poderíamos sair, sei lá; tomar uma cervejinha no bar de Mary Sales? – Após terminar a frase, eu me esbofeteei mentalmente, até mesmo, por que, eu gostaria de saber; o que diabos deu na minha cabeça em convidar uma mocinha tão nova ao bar? É obvio que ela não vai aceitar, pensei.

- Sim, claro. – Ela aceitou, negando todas as minhas expectativas negativas; graças ao Logos que rege o universo! Então, eu passei o endereço e o horário para ela.

Eu estava no saudoso bar de Mary Sales, sentado numa das mesas e degustando uma cerveja bem gelada e, eminentemente vislumbrava o pôr-do-sol; mais uma vez entre o entardecer e o anoitecer; era o crepúsculo, e estranhamente estava eu de novo deslumbrando a estrela d’alva, com certeza existia um encantamento por minha parte nessa estrela, ou melhor; planeta.

Enquanto eu encontrava-me no deslumbre, Ana apareceu de sobressalto, tirando-me do mundo paralelo onde eu estava, e retornei à realidade, dessa vez uma realidade muito mais aprazível.

- Oi Diogo!

- Oi Ana!

Beijamo-nos.

Ela estava linda, usava um top verde e uma calça jeans azul justa, o cabelo ruivo solto a deixava estonteante como sempre; Ana era a minha chave de cadeia.

- Você quer beber alguma coisa? – Perguntei.

Ela riu ao ver-me bebendo uma cerveja. “Eu sou um idiota”, pensei.

- Eu quero um refrigerante.

Fiz o pedido à Mary Sales que trouxe o refrigerante até a nossa mesa. Sem que a minha acompanhante adolescente pudesse perceber, Mary Sales fez um gesto para mim do balcão; que eu entendi claramente que ela chamava-me de papa-anjo.

- Diogo, eu queria lhe agradecer por tudo que você fez por mim, – disse-me Ana – afinal; você salvou a minha vida! – É engraçado ela dizer isso, pensei, ironicamente; eu quase sai correndo do lugar onde ela estava de refém, porém algo inacreditável não deixou isso acorrer.

- Eu estou longe de ser um herói Ana...

Ela riu.

- Quantos anos você tem?- Perguntei.

- Eu tenho dezesseis, vou completar dezessete daqui a dois meses! E, você?

Agora fora eu que ri.

- Eu tenho vinte e três anos, estou velho.

- Você ainda é novinho. – Disse-me.

Novinho? Pode até ser, mas, para mim ela era uma pirralha! Em outras palavras, eu era adulto e ela era adolescente; em suma, ela era uma chave de cadeia. Sorvi um gole da minha cerveja ao pensar nisso e, constatei o que me incomodava desde os sonhos com o Big-bang, eu sentia-me vazio, incompleto. O meu semblante de repente descaiu, e Ana acabou percebendo:

- Você está bem Diogo?

- É... estou... – Hesitei. Ela pôs a sua mão na minha por cima da mesa e disse-me:

- Se você quiser desabafar, eu ouço você não precisa passar por isso sozinho.

Eu nunca gostei de desabafar os meus sentimentos para ninguém, nem mesmo com o meu pai. Não obstante; poderia falar pelo menos acerca do que William me “revelara”, porém, não sei em que uma garotinha do segundo ano do ensino médio poderia ajudar-me. Porventura, tentei arriscar, o que eu tinha a perder?

- Sabe Ana, algo me intriga...

- O quê?

Expliquei para a Ana o que William me disse antes de cometer suicídio, a frase socrática: “conhece-te a ti mesmo”, e as questões inerentes ao “Todo” e, disse-lhe também a sua resposta, quando o perguntei sobre quem ele era, a frase: “Eu sou o Todo, o Todo saiu de mim e o Todo voltou a mim; cortai uma madeira e lá estarei, rachai uma pedra e lá me encontrarás”. Ana ouviu atentamente tudo que eu falei, analisou por alguns instantes e, respondeu-me surpreendentemente:

- Bem, a frase “conhece-te a ti mesmo” é referente à máxima socrática do método maiêutico, a concepção de parir uma idéia, ou seja, a verdade que já está dentro de nós. Bem, isso você já sabe, certo, vamos continuar; o Todo como você também disse: refere-se ao Logos divino, que segundo o estoicismo rege o universo fazendo-o um cosmos; ou harmonia em contraposição ao caos; desordem...

- Você é muito inteligente Ana, entendeu precisamente! – Disse sem esconder a minha surpresa.

Ela riu.

- Mas algo você não “pescou” Diogo – ela disse surpreendentemente – a frase que você decorou, eu já li antes, trata-se de um livro apócrifo de Tomé.

- Um livro apócrifo, sim, um livro gnóstico! Considerado herege pela Igreja e caçado nos primeiros séculos da era cristã! – Nossa ela era genial, pensei.

- Exatamente! – Ela confirmou.

Eu encostei-me na cadeira e tudo parecia ter-me sido revelado pelo espírito santo, talvez; Ana era o meu anjo da guarda, com a missão de mostrar-me à luz! O “Todo”; estamos integrados com a divindade mediante as nossas almas; que é a nossa essência divina, “o Reino de Deus está próximo”, é isso que Jesus diz nos evangelhos, pois; nós estamos em sintonia com Deus o tempo todo, pois nós somos divinos e estamos coesos a ele, graças a nossa alma, por que fazemos parte do o Todo. Assim, o universo é Uno no verso, uma explosão que deu origem a todas as coisas. Essa concepção é genial. Isso faz sentido e, talvez Deus realmente exista, mas, se Ele existe, por que um demônio me fizera tal revelação? O demônio, o mal, de certa forma estaria a serviço dos desígnios de Deus? A dúvida ainda persistiria.

- Ana, você acredita em Deus?

- Acredito. – Respondeu-me de imediato.

- Por quê?

- Não sei explicar, apenas acredito.

- Nossa Ana, eu gostaria muito de crer, mas eu não consigo entender! Eu só tenho dúvidas.

Ela riu e fitou-me com o olhar cheio de candura:

- Mas, Diogo no seu íntimo você crer, você apenas está mentindo para você mesmo.

Foi a mesma coisa que um demônio me dissera.

- Eu? Faz mais de dez anos que eu não vou à igreja e, não possuo nenhuma vontade de ir...

- Sim, se você diz. Mas não estou falando de religião estou falando de fé!

- Fé? Eu não entendo isso...

- A fé não é para ser entendida Diogo; a fé é para ser sentida. Apenas isso.

Diogo Abreu
Enviado por Diogo Abreu em 29/06/2012
Código do texto: T3751753
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