DESCONHECIDOS - 98

DESCONHECIDOS – 98

Rangel Alves da Costa*

Pureza fez um bom blefe, havia trapaceado. Impôs características de quase morte ao coronel para ver se este caía no seu intento. O homem estava debilitado mesmo, mas do corpo completamente tomado pelo ódio, e não porque a compleição física estivesse assim se deteriorando de um momento para outro. Agora que ele havia mordido a isca, só restava prosseguir no seu objetivo, de modo a que o velho tubarão caísse de vez na armadilha.

Então a pescadora respondeu: “O pássaro da maldição não vai entrar completamente no seu corpo se a sua mente, que seria a guia para fazer o que quiser com a maldita ave, está dividida entre o seu presente e o seu passado. Se o coronel quiser se livrar do passado que tanta aflição lhe traz, então vai ter que tentar reparar os erros cometidos. Como não se pode voltar no tempo e refazer as coisas de um modo diferente, então só cabe dizer a verdade e pedir perdão”.

Nesse momento o coronel deu um chute numa banquinha que ela foi se estraçalhar na parede. “Perdão, perdão, essa palavra não existe saindo da minha boca, mas apenas entrando nos meus ouvidos. Não cometi nenhum erro assim tão grave que tenha de pedir perdão a quem quer que seja. Essa desgraça do passado morreu, como vai morrer essa desgraça que veio do passado chamada Soniele”.

E completou, arremessando outro objeto na parede: “Prendam essa mulher no quartinho dos fundos e tranquem a porta bem trancada. Quando der fome e sede ela vai mandar me chamar para trazer de volta esse pássaro que me pertence, ainda que por maldição”.

Perguntou onde andava sua cúmplice Sofie e foi informado que ela estava trancada no quarto cantando umas cantigas pra menino dormir e não queria sair de jeito nenhum. Coisa mais esquisita, achou o coronel. Não quis incomodar a mulher e saiu de casa em direção à subida na rocha que levava à igrejinha.

Precisava passar o olho naqueles prisioneiros e ele mesmo ter a certeza que a maldita da Soniele estava lá toda mansinha e fragilizada. Do mesmo modo ia puxar o linguarudo do maluco pelo braço e entregá-lo a um dos capangas, presenteando-o para que este mesmo escolhesse a melhor forma de matá-lo.

Já era começo da tarde, e do outro lado do rio, na vila dos pescadores, Soniele fazia repetidas preces e orações. Com o peito tomado de aflição, a cada instante chorava e temia pelo destino dos seus amigos. No seu pensamento o martírio de como encontrar um jeito de atravessar para o outro lado. Tinha que fazer isso logo, sob pena de a noite chegar e não conseguir se apresentar de surpresa para desmascarar o infame casal diante de todos.

Contudo, sempre ao lado do retrato de Gegeu, cada vez mais se sentia entristecida por não ter correspondido o seu imenso amor. Para satisfazer os outros, mentiu pra si mesma e para o mundo, deu de si e perdeu parte do coração, daquilo que era verdadeira paixão. E naqueles momentos de angústia e desespero sentia cada vez mais a presença dele, como se realmente estivesse ao seu lado, querendo tocar, querendo falar.

E estava mesmo. O falecido Gegeu estava ali. O prazo que lhe fora dado para viver um pouco mais daquele amor que não pôde usufruir em vida estava se esgotando, e a cada momento chegavam dois anjos, um de asas de sublime alvura e outro em tons enegrecidos, para lembrar que as portas já estavam prestes a se fechar. E isso lhe causava enorme tristeza, uma agonia infinda de ter de partir de vez e deixá-la ali sem que os problemas dela estivessem resolvidos.

Então, num momento maior de desespero ele decidiu contrapor-se às ordens superiores e firmou decisão de que somente se desprenderia de vez das forças que ainda o uniam ao mundo dos vivos se levasse sua amada consigo. Assim, sem saber, Soniele estava fadada a morrer para satisfazer seu amado.

Mais distante dali, subindo lentamente os degraus, o coronel também estava decidido a acabar com aquele tormento todo antes que a lua brilhasse no seu ponto máximo no céu. Sabia que se passasse desse momento as forças e os poderes misteriosos já teriam sido atingidos pela espada de São Jorge. Daí em diante somente no outro dia para que o seu outro ser, o novo e muito mais poderoso coronel, começasse a se espalhar pelo ar e ser reconhecido e aceito pelos enigmas que interferem na vida dos mortais.

Faria tudo para que Pureza, então sua prisioneira, derramasse sobre sua cabeça um simbólico pingo de sangue do pássaro preto e então traria para si, a um só tempo, a plenitude de sua força física e a força da maldição contida na ave. Então bastava que o seu pensamento guiasse o voo da ave maldita rumo ao que quisesse imediatamente destruir.

E quando isso fosse conseguido, dali há instantes, após a celebração da missa e do reencontro da ave com seu amaldiçoado ninho, poderia fazer tudo, estaria em condições de fazer a revelação que quisesse. Ninguém poderia mais ao menos dizer que tinha agido certo ou errado. Qualquer desgosto que lhe fosse causado e a ave levantaria voo com os olhos vermelhos, o bico afiado, sedento.

E se perguntassem ao coronel porque a missa seria tão importante diante de seus nefastos planos, certamente não encontrariam resposta. Mas a verdade é que através da presença da igreja as forças reinantes no lado obscuro da montanha seriam combatidas com a intervenção divina presente no templo, extirpado aquele ar impuro e infecto, afastada a ameaça de mais tarde um mal rebelar-se contra outro mal, e então, proclamando falsamente diante de todos o seu lado de benignidade e reverência religiosa, ele estaria livre para implantar o reinado que tanto desejava: da submissão de todos pela força da sua maldição.

Assim, completamente tomado por ideias de crueldade e perversidade, ele se pôs diante do cruzeiro e deixou que a sombra da cruz ali erguida se estendesse sobre o seu corpo, depois abriu os braços e se sentiu a própria extensão da divindade. Não viu, contudo, que deixou aquele lugar sem que pudesse fazer mais qualquer tipo de sombra e que o sombreado formado pela cruz agora se estendia pelas encostas, pelas águas do rio, pela vila dos pescadores e mais adiante e infinitamente.

Parou diante da porta fechada da igreja, sempre guarnecida por vigilância, e gritou para que trouxessem a prisioneira Pureza e avisassem à companheira Sofie que se apresasse, pois o momento tão esperado começaria dali há instantes. Sempre apontando para o lado onde a montanha descia em verdadeiro precipício, no mesmo local em que o Padre Climério havia se jogado, deu algumas ordens ao chefe do capanga e depois mandou que ele mesmo fosse apressar o que havia ordenado.

Todo contente, com postura imponente à entrada do templo, não demorou muito e mandou que aquela porta principal fosse aberta. Já ia entrando quando ouviu um grito vindo lá de baixo, da casa: “Coronel, a prisioneira fugiu!”, berrou o chefe dos capangas. Atordoado com a notícia, entrou em estado de desespero quando viu o pássaro preto voando ao redor da montanha e se aproximar do cruzeiro.

Entrou apressadamente puxando um dos capangas pelo braço e gritando aflito: “Fechem a porta, fechem a porta. Não matem esse pássaro, mas não deixem ele entrar!”. Mas a porta não foi fechada porque o vigia assustado falou: “Coronel, Dona Sofie vem chegando”.

E a ex-madame surgiu do lado de fora, caminhando em direção à entrada, parecendo uma enlouquecida. Completamente nua, sem nenhum fio de pano sobre o corpo, trazia nos braços, sempre balançando e ninando, um bebê de brinquedo.

continua...

Poeta e cronista

e-mail: rangel_adv1@hotmail.com

blograngel-sertao.blogspot.com