DESCONHECIDOS - 97
DESCONHECIDOS – 97
Rangel Alves da Costa*
Por mais que os capangas do coronel vasculhassem aquela margem de cima a baixo jamais iriam encontrar o profeta. O esfarrapado, malcuidado e tido como louco Aristeu não se encontrava mais na vila dos pescadores.
Ao menos por instantes ou dias ele estaria ausente. Com um propósito que somente ele sabia, com imperiosa obstinação, entrou nas águas e foi nadando cuidadosamente até a outra margem. Não se sabe o local exato, mas agora ele estava no outro lado, escondido nas proximidades da casa do coronel e da montanha da igrejinha.
Já com Soniele foi diferente, pois se procurassem com mais atenção a teriam encontrado facilmente, pois ela estava o tempo todo dentro do rio, por trás de umas pedras. Foi Carlinhos quem pensou numa maneira dela não ser encontrada e teve a ideia daquele banho forçadamente mais demorado.
Se Soniele fosse encontrada e levada para o outro lado e entregue nas mãos do ensandecido casal, sorte alguma lhe restaria. Agora era capricho e geniosidade do coronel recebê-la como escrava amarrada diante de seus pés. Foi o que imediatamente concluiu Carlinhos quando ela o chamou apressadamente no quintal e revelou o grande segredo.
Cada palavra que ela dizia, molhando em lágrimas cada passo do passado, era como se a maior parte de sua vida não tivesse sido vivida. E desabafou para o pequeno amigo, palavras que ele também sofreria para guardá-las até que ela mesma as revelasse ao mundo.
Tinha caminhado pela vida mentindo a si mesma e a seu corpo, sendo inimiga da sua paz e da sua honra, rejeitando toda a esperança e felicidade. Mas por quê? Carlinhos não perguntou assim, mas quis saber o motivo de tudo aquilo que ela dizia com outra pergunta: “Valeu a pena nunca ter revelado nada?”.
“Agora eu posso, mas antes eu não podia revelar nada!”, concluiu Soniele, com a face marcada pela dor da revelação. E disse ainda que se acontecesse alguma coisa com ela, ao amigo caberia revelar perante todo mundo esse segredo. Isso teria que ser feito ainda naquele dia, mas se algum acaso a impedisse ele tinha o dever de contar toda a verdade, doesse a quem doesse.
Depois dessa rápida conversa ele passou a compreender ainda mais aqueles gestos de ódio e vingança perpetrados pelo casal. Assim, as outras pessoas, inclusive ele e Yula, apenas serviam de isca para os planos do agora reconhecidamente tenebroso homem.
Matar qualquer um, desde que fosse para colocar as mãos nela, seria coisa absolutamente normal naquela mente perversa. Por isso precisavam ainda mais redobrar os cuidados, vez que não valiam realmente nada. Ademais, tinha que se observar que era uma mente perversa sendo manipulada por uma mente doentia, revoltada pelos erros do passado e totalmente enlouquecida pelos tais pecados acumulados, que era Sofie.
Sabendo que poderiam ser vítimas da vingança do coronel, desejaram boa sorte a amiga e ficaram observando enquanto ela corria abaixada rumo ao rio. Já estava com roupa apropriada e por lá era só se encontrar um lugar onde não fosse avistada. E foi por entre as pedras e boa parte do corpo mergulhado que ela ouviu quando os amigos foram sendo trazidos para a margem ali pertinho.
Quando o chefe da investida achou que o grupo dos verdadeiros prisioneiros já estava completo, sem faltar realmente ninguém, ordenou que fosse dividido em dois para a subida nas canoas e rápida travessia. Deveras curta demais a travessia, pois em cerca de quinze minutos já aportavam na margem diante da casa do coronel.
E depois o grito avisando do trabalho primorosamente realizado, do dever cumprido com a prisão de todos e sem qualquer resistência. Da frente da casa mesmo, porém sem se aproximar das embarcações, o coronel gritou: “Trouxeram todo mundo mesmo, principalmente aquelas três pessoas que eu disse como eram?”. E o capanga respondeu: “Sim, coronel, todo mundo. Antes de partir mandei revirar tudo novamente e não ficou nem sombra por lá”. Então o coronel mandou que os levassem para cima da montanha, para serem, juntamente com Dona Doranice e os outros, trancados na igrejinha.
Desembarcaram e seguiram em medonha procissão, todos com as mãos amarradas por trás, à moda dos prisioneiros, dos escravizados, dos encaminhados aos locais de castigos e campos de concentração. A jornalista Cristina, seu amado João, o menino Carlinhos, os recém apaixonados Yula e Carol, a encantada Pureza, os pescadores Tonico, Siribá, Clotilde, Gerúsia, Queró, Calazans, Hedera, Tiziu, a jovem Gabi e os meninos Santinho e Merinha, dentre outros.
Ao colocar os pés no chão, Pureza olhou na direção da casa do coronel e gritou bem alto dizendo que tinha um recado de um pássaro para lhe dar. Diante do barulho o coronel saiu à porta, porém só viu quando a pescadora recebia um bofetão por trás e depois era empurrada até rolar pela terra. Mesmo caída, recebendo pontapés para calar, gritou ainda mais alto: “Coronel, o pássaro preto mandou lhe entregar de volta a maldição. Venha buscar coronel!”. E disse isso com um esforço tremendo para não deixar sair de dentro de si o pássaro raivoso que queria voar.
De onde estava, Demundo Apogeu não pôde ouvir a frase completa, mas não duvidava que tinha escutado alguma coisa relacionada à pássaro preto e maldição. Pensou rapidamente sobre o significado dessas palavras, sua importância para ele naquele momento, e olhou novamente para ver da boca de quem havia partido. Contudo, a mulher ainda estava caída no chão, sem possibilidade de ser identificada naquele instante.
Deu alguns passos naquela direção e berrou novamente para que levantassem aquela pessoa e a trouxesse à sua presença, imediatamente. E assim foi feito. Sob os olhos ao mesmo tempo curiosos e preocupados dos amigos, Pureza foi erguida e levada à presença do temível homem. De tão suja e desfigurada que estava, quase irreconhecível nas suas vestes molambentas, com arranhões pelos cotovelos e pernas e cabelos de todo o vento, o coronel mandou que antes jogassem um balde de água por cima.
A água do rio caiu sobre o rosto da mulher do tempo ribeirinho, seus olhos voltaram a brilhar com mais intensidade, fez com que o pássaro interno continuasse no seu ninho, a feição se afigurou novamente como a mais indestrutível das rochas. Mas sem poder e sem pretender mostrar qualquer sinal de sua imensa força e poder, preferiu ser apenas mulher, ser apenas a pescadora, ser apenas a ribeirinha. Mas não deixava também de ser a senhora dos encantados.
Deixou que os olhos comandassem tudo e fixou o olhar verdadeiro e penetrante no rosto misteriosamente alterado do coronel. Não tinha mais as marcas fortes de antes, mas apenas uma feição de sofrimento carregando um olhar que parecia já sem força e sem brilho. O ódio, o rancor, o arrependimento escondido, a raiz de tanta maldade agora querendo brotar na própria pele enrugada, tudo isso tornava o coronel num ser estranho e por isso mesmo talvez muito mais perigoso.
Juntando forças, Pureza nem esperou ouvir nada e foi logo dizendo: “Coronel, agora estou percebendo que a maldição lhe fazia bem. A sede de sangue do pássaro preto, que era uma parte importante de sua pessoa, lhe fazia bem e parecer sempre forte. Você está sentindo falta da ave maldita coronel, pra estar assim tão debilitado? Quer ter ela de volta e pra fazer com ela o que você quiser coronel?”.
Os dizeres da pescadora foram como flechas atingindo o alvo. O coronel se abalou e quase não sabia nem o que dizer. Num relampejo lhe vieram as palavras possíveis: “O que você quer para me trazer de volta o pássaro da maldição?”.
continua...
Poeta e cronista
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