DESCONHECIDOS - 96
DESCONHECIDOS – 96
Rangel Alves da Costa*
João pescador estava mais acima do rio jogando sua tarrafa quando começou a perceber uma estranha movimentação. Era realmente muito estranho e não gostava nada do que via. De uma hora pra outra forasteiros, e cada um com a cara mais feia do que a outra, atravessavam para o lado da vila dos pescadores e se embrenhavam nas matas.
Caçador era quem infelizmente fazia isso, noutros tempos onde os animais de caça eram fartos. Mas pelo que via nenhum daqueles tinha jeito de caçador. Ninguém levava espingarda, mochila de mantimentos nem cachorros. Chegou o barco mais pra perto da vila, prendeu a corda bem defronte de sua choupana e foi correndo avisar à sua amada Cristina e à amiga Pureza.
Nem precisou falar muito e a pescadora dos encantados tomou a palavra:
“Tá chegando a hora, tá chegando a hora. Todos vocês se preparem porque tá chegando a hora. Esses homens que você viu certamente tão a mando do covarde do coronel. Mas o tempo dele tá contado, vou cortar-lhe o bico sem nem dó nem piedade. Mas quanto a vocês pouco poderão fazer diante da força e covardia desses capangas de vintém. E não podem fazer mesmo nada porque o destino já tá traçado e a gente não pode mudar um tiquinho assim do que tem de ser e será. Eles não vão matar ninguém não, disso tenham certeza, mas farão algum mal, isso sim. Por isso mesmo é que João vá avisar aos outros pescadores e Cristina corra lá pra casa das meninas pra alertar todo mundo. Mas diga que se acalmem, não procurem reagir nem mostrar valentia desnecessária. Tem que ser valente mais tarde, no momento certo que há de chegar. E mais de perto diga a Soniele que o momento mais importante da vida dela já tá chegando e que por isso mesmo nada de tão ruim assim acontecerá antes que tudo se cumpra...”.
“E você Dona Pureza, que falou em todo mundo, e você o que vai fazer?”, perguntou João. E ela continuou:
“Eu vou ficar aqui esperando pra ver o que é que esses bandido quer. Vou zanzar a vida deles e fazer de tudo pra que se enraiveçam e me leve de castigo à presença do coronel, pois preciso muito olhar na cara daquele safado e dizer uma coisa. Eu bem que poderia chegar lá de outro jeito, até voando se eu quisesse, mas prefiro que ele não desconfie ainda...”.
Então foi a vez de Cristina perguntar preocupada: “Dona Pureza, a senhora tem certeza que está bem? Eu não estou maluca e sei que ouvi muito bem a senhora dizer que bem poderia chegar lá voando. E que história é essa?”.
“Oh, minha filha, um dia vocês saberão, mas agora é impossível que eu fale qualquer coisa. Mas tenho asas, saiba. Todo mundo também tem asa, mas as minha são diferente e ainda tão separando o vento bom e o ruim pra voar. Não quero voar num vento ruim, é muito perigoso”.
Ninguém ficou entendendo nada. As explicações da amiga deixaram os dois apaixonados de beira de rio ainda mais perturbados. Mesmo assim, com a cabeça cheia de interrogações cada um foi pro seu lado, ainda que depois desse breve encontro tivessem ficado com uma vontade danada de ficar juntinhos o dia inteiro. Essa vontade era bem maior em João, que pressentia muito próximo o momento de se separarem.
No casebre das mocinhas, mesmo que muitas coisas importantes tivessem que ser conversado, Yula e Carlinhos não falavam noutra coisa senão sobre Dona Doranice. Queriam voltar até lá para ao menos resgatá-la junto com as demais, porém sabiam que isso era impossível naquele momento. Mas se soubessem o que estava acontecendo no outro lado do rio, na casa do coronel, certamente que iriam até lá mesmo nadando.
Novamente revestida de madame de cabaré, de cafetina gerente de prostitutas, com echarpe aveludada envolta ao pescoço, estola de tecido francês descendo pelos ombros e circundando um sedoso longo, de rosto pintado disformemente, com batom vermelho indo muito além dos lábios e um insuportável cheiro forte de perfume misturado com uísque, Sofie apareceu assim espalhafatosa, soltando terríveis gargalhadas diante de suas visitas. Estava de arma em punho e apontada em direção a Dona Doranice.
Num misto de susto e desespero, sendo ameaçada por aquela mulher novamente enlouquecida, quase não encontrou palavras. Gritaria facilmente se a prudência não lhe recordasse que não se deve despertar repentinamente a fúria dos loucos. Buscou forças para permanecer calma, chamou por seu Deus em pensamento e falou serenamente:
“Oh, Sofie me dê essa arma e sente aqui. Venha, temos que conversar minha boa amiga...”. “Boa amiga o que, sua velha imprestável, sua quenga velha, sua desmancha prazeres. Por causa daqueles infames e nojentos que lhe chamam de avó é que ainda não podemos dar um fim nessa situação toda e acabar com a vida daquela Soniele. Se você anda com eles, então a culpa é sua velha nojenta!”.
E partiu pra cima da viúva e deu-lhe dois enormes bofetões que esta caiu sobre umas cadeiras. Quando a insana já estava segurando nos cabelos brancos da velha senhora surgiu o coronel dizendo que por enquanto bastava, que o destino dela e dos demais já estava selado e que a morte logo os calaria de vez.
Ali jogada por cima da madeira, com o corpo afetado pelas agressões, ainda assim a única coisa que veio imediatamente à mente de Dona Doranice foi dizer: Meu Deus, meu Deus, perdoai, ela não sabe o que faz! Meu Deus, meu Deus, perdoai, ela não sabe o que faz! E em seguida ouviu como se uma voz conhecida soprasse no seu ouvido: “Você é muito boa aos olhos do Senhor e Ele te protegerá. Eis o sal da vida. Nesse paraíso, eis o sal da vida”. Era a voz do falecido, não havia que duvidar.
As duas assessoras a todo instante pensavam em reagir, tomar a arma, contra-atacar, mas com dois capangas protegendo os patrões seria muito difícil. Tiveram apenas de suportar terem as mãos amarradas e levadas aos empurrões até as escadarias na rocha que faziam caminho para a igrejinha.
Ainda na casa, pelas frestas de uma das janelas, o velho padre observou todo o desenrolar desses acontecimentos sem poder acreditar no que via. Correu para o quarto e pegou a maleta para fugir imediatamente de lugar tão diabólico. Mas assim que botou o pé na porta dos fundos tropeçou numa botina suja de lama. Caiu e começou a chorar com a arma apontada na sua cabeça. Então teve que jurar que celebraria a missa mais bonita do mundo. E em seguida foi levado também amarrado para o templo da montanha.
Do lado da vila dos pescadores, não demorou muito e os homens do coronel começaram a fechar o cerco. Surgiam dos quatro cantos, vindo do fundo e dos lados, numa circunferência que não deixava opção de fuga para ninguém, a não ser tentando escapar pelas águas. De repente e todas as casas já estavam invadidas, os barcos eram rebocados com seus pescadores, as armas impunham o silêncio no vexame e no susto.
Em seguida todos tiveram as mãos amarradas e foram conduzidos aos empurrões e zombarias para a beirada do rio, formando um verdadeiro círculo de prisioneiros. Antes que as duas canoas chegassem para transportá-los ao outro lado, o chefe dos capangas mandou três homens fazerem a busca novamente pelos barracos para ter a certeza de que ninguém havia ficado escondido. Voltaram dizendo que reviraram tudo e nem sombra de pessoa.
Não sabiam ainda, mas duas pessoas não estavam entre os prisioneiros: o profeta Aristeu e a mocinha Soniele.
continua...
Poeta e cronista
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