DESCONHECIDOS - 86

DESCONHECIDOS – 86

Rangel Alves da Costa*

Talvez o coronel tivesse esquecido de entregar as chaves da igrejinha à companheira, de modo que Sofie pudesse apreciar a construção antes mesmo que ele chegasse. Mas a verdade é que não entregou, e se os rapazinhos a encontraram aberta e remexida e agora ela, não se sabe como, estava novamente trancada, só restava esperar por sua chegada.

Mesmo contrariadas, as duas senhoras não perderam tempo na subida da montanha, pois de lá, bem ao lado do cruzeiro também erguido, todos se puseram a olhar para as vastidões ao redor, nas proximidades e até onde as vistas alcançavam.

E foi quando Carlinhos apontou em direção à casinha onde morava Soniele e Carol e simplesmente disse: “Ela mora ali”. E tantos as duas senhoras como Yula ficaram sem saber do que ele estava falando, sobre quem ele dizia que morava ali. Então Dona Doranice perguntou quem morava ali, ao que o menino falou, sem mover os olhos um só instante e sem deixar de mirar naquela direção:

“Ela mora ali, só sei que ela mora ali. Não sei ainda o nome dela, mas tenho certeza que ela mora ali. E já sei também que ela não é daqui, mas é a pessoa mais importante desse lugar e que se alguma coisa ruim acontecer somente ela para salvar tudo isso aqui...”.

E Yula adentrou na conversa para perguntar se ele tinha andado lendo histórias de mocinhas virgens que, por estarem ainda na pureza, somente elas podiam salvar o mundo da destruição. Mas Sofie interrompeu para dizer que aquilo que ele dizia era muito mais sério do que se poderia imaginar. Nada poderia ser ignorado e precisavam urgentemente comprovar se naquele local indicado por ele realmente havia alguma mulher. E perguntou se sabia as características dela.

“Quem me falou não disse tudo sobre ela não, mas apenas que ele é jovem, muito bonita e que já foi de cabaré. Será que queria me dizer que ela era puta?”. Disse Carlinhos, se surpreendendo com a própria interrogação. Mas ao ouvir as últimas características, Sofie quase tem um ataque, por pouco não fraqueja e desaba no chão, e apenas disse, com os olhos querendo sair e a mão tapando a boca: “Mas meu Deus? Será que?...”.

Dona Doranice teve que intervir para colocar ordem nas coisas, que já estavam ficando incompreensíveis. “Todos precisam ter calma, então todos tenham calma, senão essa tão importante descoberta se tornará incompreensível. Em primeiro lugar, Carlinhos, quem lhe disse essas coisas?”.

“Se eu disser a senhora não vai acreditar Dona Doranice. Lembra daquele senhor que falou comigo no seu jardim lá em Nova Paulo, que me disse umas coisas e a senhora disse que não seria possível porque ele já estava morto, lembra? Pois foi ele, o seu falecido marido Dona Doranice, que segue a senhora onde quer que vá. Ele sempre conversa comigo e diz um monte de coisas, pois isso foi ele também que me disse...”.

E tanto Yula como o próprio Carlinhos precisaram segurar urgentemente a viúva que estava sofrendo um desmaio. Colocaram a senhora cuidadosamente num banquinho ao redor do cruzeiro e começaram a abaná-la para ver se melhorava do mal-estar. Somente uns dois minutos depois é que ela começou a abrir os olhos e a respirar normalmente.

Sofie disse aos rapazinhos que por enquanto não se falava mais sobre aquela história e que era melhor que descessem para cuidar um pouco mais de Dona Doranice. Desceram cuidadosamente, porém sem que a viúva quisesse qualquer ajuda, pois dizia que já estava bem e dali a alguns instantes precisava conversar a sós com Carlinhos.

Nem bem se sentaram na varanda e começaram a ouvir barulho de voz vindo lá de cima, defronte a igrejinha, de onde haviam saído há instantes:

“Desconhecidos, todos vocês se conhecem. Estão todos aqui porque já se conheciam e não falta mais ninguém, nem o velho pássaro da maldade que já vem pelas águas. Agora não falta muito pra que a profecia seja cumprida, pra que todos sintam na pele a medida de sua dor. Foi preciso que esse paraíso se transformasse em inferno ameaçador para que todos vocês fossem atraídos para conhecer o valor, o preço de erros cometidos. Nem todos são culpados, mas por estarem ao lado de quem errou poderá pagar também pelo erro. O menino estava certo, pois o menino é que sabe mesmo de tudo e é ele, e não aquela que ele diz que é, quem poderá salvar esse lugar e todos vocês da destruição. Ela é apenas o pêndulo que balança ao vento, sem força nenhuma para tomar posição. E não toma uma atitude porque teme a força, a violência, a dor, e teme também o passado. Ela foi a grande vítima e por isso pagou com o sofrimento aquilo que deveria ser de alegria. Não pôde amar porque os outros lhe roubaram o prazer desse amor. E tudo pela mentira, pelo jogo, pela mais deslavada mentira. Se as pessoas fossem verdadeiras e não escondessem tanto seus erros, nada disso estaria acontecendo. Mas quiseram assim e assim vão pagar. Na verdade, quem deveria temer o passado não era ela não, mas quem deu causa a tanta bestialidade. E se não quebrarem o bico do velho pássaro, não cegarem seus olhos de fogo, nada será feito, pois a maldade triunfará e não restará pedra sobre pedra. E se eu fosse vocês, tanto do lado de cá como do lado de lá, ficaria de joelhos e imploraria ao menino pela salvação. Somente ele, estendendo sua mão para aquela que tanto precisa, é que poderá salvar o mundo, ao menos esse mundo ao redor”.

Ouvindo boquiabertos, assustados, preocupados, se perguntavam quem poderia ser aquele homem esquisito, esfarrapado, parecendo mais um misto de errante e louco. Mesmo o profeta já tendo saído de onde estava, ainda assim a maioria das pessoas continuava olhando pra cima e procurando entender qualquer coisa daquelas palavras.

Foi Yula quem percebeu que Sofie, após ouvir as palavras do desconhecido, havia corrido para um dos cantos e começado a chorar copiosamente. Contou esse fato a Dona Sofie e esta se apressou em ir até lá para saber o que estava acontecendo com a amiga. Com o rosto tomado de vermelho e os olhos da mesma cor, já parecendo inflamados, apenas acenou com a cabeça e gesticulou afirmando que estava bem.

Mas a viúva sabia que não estava, que as palavras do homem haviam realmente afetado a amiga. Contudo, não houve jeito de tirar dela qualquer resposta sobre isso. Apenas dizia que tinha sido uma indisposição passageira, uma saudade repentina, e só. E começou a forçar sorrisos e gestos de alegria para tentar mostrar que já estava completamente recuperada. Acabou pedindo que servissem uma garrafa de licor e foi puxando assuntos novos.

Contudo, sem que ninguém esperasse ouvir qualquer palavra de Carlinhos, vez que este já estava de cócoras na beira do rio traçando círculos na água, todo cabisbaixo e pensativo, de repente o menino surgiu dizendo algo bastante instigante:

“Aquele homem que falou lá de cima estava certo. A mulher sobre quem ele falava é a mesma que eu também falei e é aquela que mora ali do outro lado. A pobre coitada é mesma uma sofredora e foi usada pelos outros o tempo todo. Por causa dos erros dos outros é que tinha e tem uma vida de sofrimentos. Há pouco instante mesmo ela estava tentando sorrir beijando um retrato de quem já morreu”.

E o cálice caiu da mão de Sofie e se espatifou pelo chão.

continua...

Poeta e cronista

e-mail: rangel_adv1@hotmail.com

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