DESCONHECIDOS - 85
DESCONHECIDOS – 85
Rangel Alves da Costa*
Três canoas aportaram nas beiradas do São Pedrito, bem defronte a casa nova de Sofie, entupidas de pessoas, malas, sacos, sacolas e meio mundo de objetos. Até mesmo os medrosos de viajar pelas águas estavam como entorpecidos pela beleza do rio, seus cânions, serras, montanhas, matarias e pequenas construções ao longo do curso.
O coronel ia chegar depois, vez que ainda em Mormaço esperando a chegada de um padre encomendado para a missa de inauguração da igrejinha. Desde a morte do sacerdote da paróquia ninguém havia ainda sido indicado, então o jeito era pagar por fora a um padre um pouco desocupado.
Durante toda a viagem, de Jacaré ao outro lado da vila dos pescadores, Sofie e Doranice pouco tiveram tempo de conversar. Ficavam o tempo todo olhando para os lados, apontando, se surpreendendo, pronunciando palavras de admiração e contentamento. O menino Carlinhos, de vez em quando molhando as mãos nas águas, não via a hora de mergulhar e tomar um banho até a pele engelhar. Daí que de que de minuto a minuto perguntava ao canoeiro se já estavam chegando.
Yula, com seus instrumentos de viajante profissional, não parava de tirar fotografias e fazer filmagens. O que mais lhe impressionava era o rio que em certos lugares parecia que ia passando por debaixo de imensos paredões de pedras. E se perguntava como a natureza podia ter tido aquele cuidado todo de fazer com que tudo lindamente existisse e cada coisa no seu devido lugar.
Quem teria cortado aquelas rochas para que o rio corresse bem lá em baixo, se indagava enquanto olhava pra cima para ver cactos parecendo pregados na pedra nua, passarinhos que voavam procurando os seus ninhos, bromélias que cintilavam suas cores ali e acolá.
E quando avistou uma pedra grande em meio às águas perguntou ao ajudante do canoeiro se era dali que o nego d’água pulava. Já tinha lido ou ouvido falar sobre isso em algum lugar. O homem perguntou onde ele tinha escutado essa história e depois se danou a gargalhar, pitando um cigarrinho de palha.
Em seguida, contudo, chamou Yula e Carlinhos num canto e, agora com expressão séria, começou a falar:
“Moro nessas beirada de rio já se vai mais de trinta ano e nunca vi nego d’água não, nunca vi ele dando batim das pedras e cair fazendo barulho nas água. Mas conheço beiradeiro, gente muito mais velha, que certamente não é de mentir, que diz e jura que já viu nego d’água sim e muitas vez. Dizem que os pescador vão passando de barco já perto de anoitecer e começam a enxergar aquele vultinho, uma coisinha do tamanho de um meninote, que num é só preto como o povo diz, sentado em cima da pedra por riba da água ou bem na beirada. Dizem que se o barqueiro ver ele e fizer que não viu nada, apenas ele se encanta e desaparece até que a pessoa siga adiante, mas se avistar e fizer menção de alguma coisa ele dá um batim que as água se espalha toda...”.
“Mas por que ele fica em cima da pedra depois do entardecer?”, perguntou Carlinhos. E o homem tentou explicar ao seu modo, pelo que tinha ouvido dizer:
“Essa pergunta é engenhosa, mas vou ver se respondo. Segundo o finado Paixão, que era o mais famoso canoeiro da região, todo nego d’água é apaixonado por uma linda moça que mora nas profundeza das águas. Então ele vai pra riba da pedra toda boquinha da noite que é pra ver se ela aparece e fica lá todo triste olhando o movimento da correnteza que é pra ver se vai aparecendo qualquer coisa diferente. E quanto mais o tempo passa mais ele vai ficando entristecido e até começa a chorar esperando o seu amor que nunca aparece. Chorando, não quer que ninguém veja ele naquele estado, então dá um batim quando sente que pessoas estão olhando pra pedra onde ele tá...”.
“E depois do mergulho ele some pra voltar no outro dia?”. Foi a vez de Yula perguntar, bastante interessado. E o moço respondeu:
“Que nada, sua sina de todo dia só termina quando já tá perto do galo cantar. Depois do mergulho e que a embarcação vai passando então ele volta pra pedra. Se o pescador insistir em ficar por ali esperando que ele suba de novo, pode ter certeza que num dura muito pra lhe acontecer uma tragédia, pois o neguinho tem jeito de calmo e triste, mas é tinhoso que só. Sim, e depois que ele sobre de novo nas pedra é que o choro e a lamentação vai aumentando ainda mais. É choro de gritar e de fazer arrepiar, mas ninguém pode ouvir porque a própria natureza se encarrega de esconder o desespero do neguinho. Então é nesses momento que os barulho da noite começa a surgir. Os bicho do mato começa a zuadar, a folhagem e os garranchos fazem aquele barulho que a gente ouve, e os cantos, os pios e as coisas zuadentas da floresta começa tudo a aparecer. E é um barulho que só na mata, sem que ninguém saiba verdadeiramente de onde tá saindo. E tudo por causa do nego d’água, tudo por causa da sua lamentação apaixonada de toda noite...”.
“Mas que história bonita e triste”, disse Yula um pouco também entristecido. E tanto ele como Carlinhos chegaram ao destino ainda pensando nesse relato. Desceram da canoa com o menino dizendo a Yula: “Eu sempre soube que tudo na natureza tem sua explicação. Essa eu nunca tinha ouvido não, mas tenho certeza que foi a mais bonita. Só fiquei com pena do nego d’água. Todo mundo espera, mas um dia encontra a felicidade, e o pobre coitado vive com a eterna sina da solidão e do lamento. E ainda tem pescador que passa atrapalhando sua tristeza. Sei não viu...”.
E nem bem desembarcaram, pessoas da companhia da viúva já mergulhavam nas águas do São Pedrito. Na verdade, diante daquela paisagem, da sensação de paz e tranquilidade, praticamente tão cedo elas não se preocupariam com outros afazeres. Dona Doranice, que não parava um só instante indo e vindo da casa até o rio, nem lembrava a existência de problemas, de metrópole, de outros compromissos. Estava ali era para descansar e faria isso o máximo que pudesse.
Em pé na varanda da casa, sempre olhando ou apontando para uma direção ou outra, as duas amigas ouviram Carlinhos e Yula gritando lá de cima da montanha, bem defronte da igrejinha. E o menino perguntou se já haviam inaugurado a igrejinha, pois parecia que pessoas haviam passado por ali, quebrado a cruz e espatifado velas pelo chão.
Dona Sofie pediu que descessem depressa dali para relatar melhor esse fato. Nem sabia que ela estava de portas abertas e muito menos que pessoas já tinham acesso. Só mesmo o coronel para falar sobre isso, porém ele só ia chegar mais tarde.
Depois que os rapazinhos disseram como encontraram a igrejinha, as duas senhoras resolveram seguir até lá para verificar esse quadro de perto. Cada uma foi subindo as escadas de pedras ajudadas pelos amigos e não durou muito e já estavam lançando os olhares por tudo que se formava adiante.
O rio extenso, largo, fazendo curvas e sumindo por trás de um paredão; a vila dos pescadores singelamente encantadora; as casinhas espalhadas aqui e ali, vultos que cuidavam dos seus afazeres. Tudo perfeitamente belo, disse Dona Doranice. Em seguida Sofie disse que era em uma daquelas casinhas que a jornalista Cristina estava. E marcaram logo uma travessia.
“Vamos lá, vamos ver o que aconteceu aí dentro”, afirmou Sofie, se voltando para a igrejinha. Mas não conseguiram entrar. A porta estava completamente fechada.
continua...
Poeta e cronista
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