DESCONHECIDOS - 43

DESCONHECIDOS – 43

Rangel Alves da Costa*

O coronel mandou providenciar um cafezinho e licor de jabuticaba, laranja e café. Que trouxessem as garrafas mesmo, pois ali mesmo escolheriam qual sorver como experimento e animação para abrir o dia, como se dizia por lá.

Para os meninos mandou providenciar suco de mangaba feito ainda naquela manhã. Com razão, o coronel dizia não haver suco melhor, ao lado de outros de manga e de pinha. Mas tendo-se o cuidado e a higiene necessários para fazê-los, pois envolvia muito pegar e amassar as frutas e a polpa. E de resto trouxeram queijos, bolos, macasado, beiju molhado e manopa.

Já perto das onze horas da manhã, o coronel preferiu mesmo tomar uma bicada de aguardente pura de um dos seus engenhos. Dona Doranice viu o homem lamber os beiços depois de levar o copo de pinga à boca e não conseguiu se conter, para desespero de Carlinhos e Yula e risada do casal. Mas tomou uma talagada de avermelhar as bochechas.

“Sim, Dona Sofie, nunca desacredite nos mistérios, mas não vejo nada demais contrariá-los um pouquinho de vez em quando. Então nos conte porque já estava sabendo que pretendo mesmo erguer uma igrejinha lá nas margens do São Pedrito, atendendo talvez o último pedido do falecido padre”.

“Na verdade, não sei se antes dele partir pro outro mundo ou não, já que morreu entre o deitar e o acordar, mas o padre Marchelort me apareceu em sonho e disse que iria fazer uma longa vigem. Porém estava preocupado porque tinha que construir uma igrejinha na beira do rio e não tinha como acompanhar essa construção. Mas disse-me, de uma forma muito clara, que uma senhora que eu nunca tinha visto me procuraria para falar sobre a igreja e pedir para que acompanhasse a construção...”.

“Mas como as coisas se interligam meu Deus...”. Falou a viúva, de tão absorvida pela revelação que não piscava o olho de jeito nenhum. “Se interligam mesmo minha senhora, pois o que contei foi apenas uma parte do que me ocorreu na noite passada que, como se vê, quase não dormi. Como numa sequência, era como estivesse ouvindo a voz de Gegeu, nosso falecido filho, bem ao meu lado e dizendo que ajudasse na urgente construção da igreja por aquelas bandas do rio, vez que não duraria muito para que os desconhecidos chegassem ao lugar e se juntassem aos que já estão por lá para viverem como se fosse o juízo final. E nesse confronto do bem e o mal, da coragem e a covardia, da mentira e a verdade, até os que já faleceram estariam correndo perigo. Os mortos não poderão interceder vivamente, mas também estarão por lá, pois quando vivos estavam ligados, de um modo ou de outro, àquelas pessoas. E até falou sobre o seu grande amor, sobre a necessidade de protegê-la. E esta só pode ser a menina Soniele, não tenho dúvidas. Daí que a igreja será como que um grande leque que se abrirá sobre o rio e redondezas, possibilitando que o mal não triunfe sobre o bem”.

“Meu Deus do céu, quantos mistérios nos cercam que não podemos deixar de ouvir essa voz do desconhecido. Quem sou eu, Dona Sofie, para não acreditar em tudo o que disse, principalmente quando já sou parte dessa história toda, vez que esse assunto da igrejinha foi assunto reservado entre a minha pessoa e o padre Marchelort. De sua parte, o que pensa em fazer agora, diante de tal incumbência?”. Foram as observações feitas pela viúva.

“Ora, minha amiga, sei que posso chamá-la assim, o que achar melhor que eu faça. Quais deverão ser os meus procedimentos então?”, indagou Sofie. Doranice de pronto respondeu: “Até fico acanhada em dizer isso, principalmente diante do coronel tão afortunado como sei que é, mas cabe a mim, que havia prometido ao padre, financiar toda a construção da igrejinha. Como tenho de viajar, e creio que ainda hoje, vou deixar um cheque com uma quantia suficiente para erguer o pequeno templo. O seu trabalho, minha boa senhora, será somente administrar a construção, comprando os materiais, contratando pessoas e não deixando que falte nada...”.

Mas foi interrompida pelo coronel, que acabava de levantar e acender um cachimbo: “Me desculpe Dona Doranice, mas será uma grande desfeita para nossa família que a senhora arque com todas as despesas sozinhas. Com mil perdões diante de sua bondade, mas não poderia aceitar a proposta nesses termos de jeito nenhum. Vamos dividir os gastos, o prazer de homenagear o padre e a satisfação em ter nessas terras mais um templo dedicado à fé cristã. Vamos dividir tudo e não se preocupe que onde estiver será avisada do dia da inauguração. Está bem assim?”.

A viúva acabou tendo de aceitar a proposta e passaram a conversar sobre outras coisas. Logicamente que ela teve de fazer uma breve exposição sobre sua vida e os motivos de estar viajando por aquela região. E nesse passo o coronel comentou:

“Esse povo realmente merece ajuda, contudo não é toda gente não. Tem gente que realmente precisa, porém tem outra parte preguiçosa, aproveitadora, que se souber que vai ter o pão de amanhã não vai querer pegar numa enxada ou capinar uma roça. É muito complicado por isso, daí que a senhora faz bem em pensar em não ajudar individualmente, mas através de obras que proporcionem melhor qualidade de vida. Se eu fosse falar num negócio assim iam logo dizer que estou enlouquecendo ou que estou querendo pagar meus pecados em vida e outras coisas mais”.

“Mas é sempre tempo de ajudar, coronel. É sempre tempo de fazer alguma coisa”, disse sorrindo a viúva, e prosseguiu: “Mas parece que eu tinha ouvido alguma coisa sobre uma tal de Soniele, o grande amor da vida de seu filho Gegeu, foi isso mesmo? Eles eram casados?”.

continua...

Poeta e cronista

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