DESCONHECIDOS - 39
DESCONHECIDOS – 39
Rangel Alves da Costa*
A senhora da igreja, talvez da mesma idade de Dona Doranice, mas demonstrando muito mais envelhecimento pelas rugas na pele estragada pelo tempo e tostada de sol, vestia roupas remendadas, chinelos reforçados com pedaços de pano e um velho xale descendo sobre os ombros. Quem a olhasse diria que estava diante da pobreza.
Então ela se aproximou um pouco mais e falou: “Desculpe minha boa senhora, mas é que me enganei. Logo que lhe avistei pensei ter visto uma prima minha que não vejo há mais de sessenta anos. Depois de tanto tempo, como é que eu me alembrar de Nicinha aquela espevitada que saiu de casa chorando porque os pais arribaram pro sul fugindo da seca? Acho que é minha idade e meus olhos que já estão anuviados, mas é besteira lembrar de Nicinha uma hora dessas. Mas é que a senhora tem um sinal que jurava que só tinha ela, e são essas pintinhas no rosto que parecem formar um coraçãozinho. Eu caçoava muito com ela por causa disso, dizendo que o coração dela era na cara. Ela me esconjurava, até jogava praga de brincadeira, mas depois a gente ia tomar banho na cacimba do riachinho que tinha perto da casa da gente. Mas adesculpe, senhora, me adesculpe por ter lhe olhado assim e tomado o seu tempo...”.
Doranice quase não se segurava em pé de tanta emoção. Calada, nervosa, trêmula, apenas ouviu a outra falar, sentindo que logo cairia uma lágrima. Ora, a mulher havia falado precisamente da marca de nascença que muito lhe orgulhava e que sempre que se olhava no espelho passava a recordar momentos do passado, e precisamente por causa desse sinal em forma de coração. Enfim, tomou forças para falar e perguntou:
“Como é o seu nome mesmo senhora?”. E a outra de pronto respondeu: “Cordélia, mas muitas pessoas só me chamam de Codé”. “Mas será a mesma Codé que eu conheço, aquela que tem um olho preto e outro azul? Olha que os olhos apagados ainda não fizeram sumir as cores. Ainda vejo, um olho preto e outro azul, por isso esse meu espanto todo. Pois sou eu mesma, Doranice, a sua prima Nicinha. Venha cá, me dê um longo abraço e depois sente aqui”.
Carlinhos e Yula não sabiam o que dizer diante do acontecimento. Deixaram as duas sentadas e foram observar a noite da porta da igreja. Lá dentro as primas se perguntavam tentando ora recordar o passado ora colocar os assuntos em dia.
“Mas e você prima Codé, pelo jeito a vida tem lhe maltratado muito, vejo em você uma aparência triste, empobrecida, como se estivesse passando muitas dificuldades na vida. Conte-me agora sobre sua você, onde está morando e como faz para sobreviver”, perguntou a prima sulista.
“Tenho nada não prima. Moro aqui pra essas banda desde aquela mesma época que você arribou. Meus pais também saíram de lá e vieram tentar a sorte numa cidade maior. E deu pior, e pior ainda porque a gente não teve mais como voltar. Acabei casando e ficando por aqui e hoje sou viúva e mãe de um rapaz que nasceu com um probleminha de cabeça, meio amalucado, que não pode trabalhar e só tem eu pra sustentar. Ganho um salarinho de uma aposentadoria de velho e pronto. Tudo que recebo é pra panela e pra pagar umas continha de água e luz. De resto num sobra nem um tostão nem pra um remédio nem pra um corte de pano. Mas é assim mesmo prima e dou graças a Deus por ainda estar viva. Só fico pensando quando eu morrer o que vai ser do meu maluquinho. Mas agora fale sobre você lá no sul”.
E Dona Doranice contou toda a verdade sobre sua vida. E a cada palavra de conquista a prima pobre dizia “Que graça de Deus”, “Que benção divina”, “Deus sempre faz justiça minha filha”, e tudo com uma simplicidade e humildade de causar comoção. Sentia-se realmente encantada pelas realizações e riqueza da outra, como se a felicidade da prima fosse para o seu regozijo também.
Demoraram mais uns instantes conversando até que a prima milionária se aproximou mais e falou alguma coisa mais próxima ao ouvido, de modo que a seguir Cordélia começou a chorar e juntar as mãos em agradecimento. Antecipadamente, Doranice tirou de uma bolsinha algumas notas e disse que na manhã seguinte ela fosse até a pensão procurá-la.
Já iam saindo da igreja quando entrou um senhor apressado, passando pelas duas e dando boa noite. “Boa noite padre”, disse Cordélia, ao que Doranice ajuntou perguntando: “É este o padre desta igreja?”. Com a confirmação, então se ouviu: “Padre, por favor, podemos conversar um pouquinho?”.
Sem conhecer a senhora e nem imaginar o que a mesma proporia, foi dizendo que estava muito cansado e que precisava fechar a igreja e se retirar para os seus aposentos na sacristia. Contudo, bastou ouvir a outra dizendo que aquela ara uma prima milionária que o reverendo ficou numa esperta só. Chegou a tropeçar com a pressa de saudar a caridosa senhora, segundo logo imaginou.
Depois de falar sobre o estado precário do templo, segundo podia constatar pelo breve olhar, Dona Doranice sugeriu uma reforma que ela mesma promoveria, ao que o padre afirmou entristecido:
“Realmente, minha boa senhora, precisamos muito e urgentemente fazer melhorias por aqui. Ocorre que sinto que no momento seria mais útil se a senhora pudesse construir uma igrejinha, uma construção simples mesmo, lá pelas bandas do rio. É que não consigo dormir que me vem um sonho insistente para que a cruz divina seja colocada ali nas margens do Rio São Pedrito, pois algo muito estranho está em vias de ocorrer naquelas redondezas molhadas”.
continua....
Poeta e cronista
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