DESCONHECIDOS - 37
DESCONHECIDOS – 37
Rangel Alves da Costa*
Por ordem da principal passageira, o veículo era conduzido sem pressa pelas estradas agrestes. Dona Doranice não gostava de nada feito apressadamente, principalmente uma viagem por rodovias desconhecidas.
Pedia sempre que ficassem com os olhos atentos para as paisagens, para os cenários lá fora. E dizia que quanto mais prosseguissem mais as realidades e as aparências iam se modificando, passando de uma situação mais vivaz e colorida a um estágio mais densamente sombrio.
Assim, pela rodovia asfaltada passavam por grandes construções, fazendas imensas, rebanhos e mais rebanhos pastando por terras verdejantes, mas também, de certa altura em diante, surgindo pelos lados e adiante um mundo acinzentando, mais quente, mais sufocante, com muito mais aspecto de natureza entristecida.
Apenas uma ou outra propriedade mais imponente, com construções vistosas, currais feitos com madeira de lei, cancelas bonitas nas entradas, mostrando que ali a riqueza foi prevalecente em algum momento. São muitas histórias assim, de grandes latifúndios e seus coronéis em meio a criatórios de pé e cobra.
No restante, a tela descolorida esquecida pelo pintor. Pequenas fazendas, roças, terrenos, casas comuns, casebres, taperas. Animais agora raquíticos, em menor número, quase inexistentes, um boi, uma vaquinha, um cachorro, um papagaio pelado, um chiqueiro de porco abandono, uma galinha ciscando pela malhada. E a ventania quente soprando, levando pra bem longe as folhagens ressequidas.
As cidades, os lugares, os povoados, tudo também ia se modificando à medida que iam entrando no verdadeiro sertão. Da janela do veículo podiam avistar crianças quase sem roupa correndo de um lado para o outro pelas cercanias das propriedaes. Um homem montava um cavalo, outro um jumento, mais adiante um seguia carregando uma enxada no ombro. Uma mulher levava uma lata na cabeça, outra segurava pela mão algumas espigas secas de milho, enquanto outra colocava roupas para enxugar num varal de beira de estrada.
Crianças eram avistadas por todos os lugares, chegando a parecer que por ali existiam muito mais meninos e meninas do que adultos. Elas vendiam quinquilharias em pequenas barracas, tapavam buracos de estrada em troca de qualquer coisa, trabalhavam na terra feito gente grande, se enfumaçavam toxicamente no calor das olarias que eram muitas, apenas erguendo as mãos para os veículos que passavam, pedindo sempre uma esmolinha pelo amor de Deus.
Mas eram poucas, muito poucas, aquelas que eram avistadas mais nutridas, mais rechonchudinhas, correndo felizes, brincando de bola ou de boneca, vivendo suas criancices. Mas também, meu Deus, muitas daquelas criaturinhas praticamente saíam do berço e dos braços da mãe para se tornarem já adultos, velhos, sofridos, infinitamente entristecidos.
Doranice na esquecia de quando era criança, vivendo todas as cruéis circunstancias daquela região. Em época de chuva e colheita, de pequena lavoura, mas de abóbora e melancia, quiabo e maxixe, mandioca e batata, criança ainda tinha o que comer. Ora, os pratos trincavam, o fogareiro era aceso, pelo ar ia subindo aquele cheiro gostoso de qualquer coisa.
Se o pai plantava milho, mais tarde ainda tinha o cuscuz e a canjica. Mas quando nada disso era possível, então a vida era um deus-dará. E o sofrimento se alargava com tudo isso, pois os pais sofriam por não poder alimentar os pequeninos que muitas vezes choravam famintos, e estes sofriam pela idade que pedia alimento e sem ninguém que os satisfizesse.
Ah, tempos, ah, tempos, ficava pensando a viúva, com o olhar marejado se estendendo pelas distâncias sertanejas. Mas o bom é que estava ali novamente, dizia consigo mesma e reconfortando-se. Estava ali novamente, num retorno muito diferente do que alguém poderia imaginar, para pisar outra vez no seu chão, sentir a poeira de sua terra e o cheiro de sua gente. O cheiro de gente era seu aroma preferido, ainda que acostumada com perfumes franceses.
Tudo por ali era sua vida, somente agora sentia isso mais fortemente por dentro. Desde o Coité, onde havia nascido, passando pela Ribança, entrando na Quatro Tempos e saindo pelas beiradas de Mormaço, tudo ali era sua casa. E a filha sentia o maior prazer do mundo em estar retornando. Já muito velha, sim, porém disposta a renascer no que fosse possível.
O Coité, onde ela havia nascido, fazia parte de uma confluência de municípios que formavam o chamado Polígono de São Pedrito, justamente porque essas povoações, de uma forma ou de outra, ficavam às margens ou próximas ao Rio São Pedrito, tendo Mormaço como principal cidade e município.
Preocupados com o bem-estar da patroa, os assessores logo procuraram saber do motorista do micro-ônibus qual o melhor lugar para pernoitarem. Depois daquela longa viagem todos estavam cansados e exaustos, principalmente Dona Doranice, pela idade avançada e pelas tantas emoções vividas nas recordações. Não havia cidade mais apropriada senão Mormaço, informou o motorista. E para lá se dirigiram.
Já próximo à cidade, mas andando por uma estradinha de chão mais adiante, avistaram uma pessoa que mais parecia um desses errantes que sai pelo mundo em busca de si mesmo. Cabelo comprido e desgrenhado, barba longa, maltrapilho, descalço, sem uma cor na pele que pudesse ser distinguida, carregando apenas um pequeno saco nas costas.
Era o profeta Aristeu, procurando caminho para chegar até as barrancas do São Pedrito. Seria ali que tudo deveria acontecer. Tinha certeza disso.
continua...
Poeta e cronista
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