Ser Diferente

Ser Diferente

Quando decidi escrever meu livro de contos, eu andava a cata de histórias, quando me ocorreu algo surpreendente.

Gostava de tomar um ônibus apelidado de “Cata Coió”, que, fazia o percurso de minha cidade até a cidade de Limeira, por uma estrada vicinal, passando por lugares interessantíssimos: terras cultivadas, belíssimas paisagens, e bairros rurais – verdadeiras comunidades – com suas peculiaridades, de pessoas simples, interessantes, autênticas. Haja visto o apelido, mais carinhoso e divertido, do que rotulador, fora inventado por elas próprias, as pessoas do lugar.

Nesse transporte, é comum cruzar com passageiros transportando fardos de queijo, de mel de abelhas, ou até, um galo metido a cantor animando a viagem.

Certo dia, deparei-me com uma senhora, muito especial, que, pelo seu modo de trajar, e usar os cabelos presos em coque, denunciava ser daquelas igrejas evangélicas radicais.

De interessante, ela transportava “Um Conto”. Quando descobriu que eu gostava de histórias, pediu licença, sentou-se ao meu lado, e disse simplesmente:

“Eu tenho uma história”. “Mas, não é minha, não a experienciei, não conheço ninguém que tenha vivido isso, nem nunca ninguém me contou.”

Fiquei tentando compreender o que tentava me explicar. Ela prosseguiu:

“Ela vem à minha cabeça, como se alguém a tivesse narrando, sempre do mesmo jeito, com todos os detalhes, e eu nunca disse a ninguém. Agora, penso que encontrei a pessoa certa, e, você saberá o que fazer com ela”.

Para melhor entender, perguntei-lhe: “a senhora a escreveu?”

“Não” – respondeu-me.

“Desde quando esta história apareceu?”

“Ah, já fazem uns dois anos” – disse-me.

“ E, como lembra detalhes, se não a escreveu, registrou?”

“ Basta-me pensar, que “ele” começa a contar tudo de novo, detalhe por detalhe...”

“ Eu o vejo, em pé, naquele lugar (uma cela), com um dos pés no chão, e o outro apoiado na parede, às suas costas, “ele” narra e chora...” explicou-me.

Eu sou espírita, e tirei logo minhas conclusões. Você pode ser evangélico, agnóstico, ou ateu. Pode pensar que é obra do Espírito Santo, ou que ela acessou outras consciências, que recebeu telepaticamente de outras mentes, e por aí a fora. Tire você próprio suas conclusões.

Segue, abaixo o que “ele” intitulou de: “A Minha História”

A Minha História

Meu nome é ... Bem o que importa um nome não é? Gostaria de contar a minha história que não chega a ser assim uma história, com um começo e final feliz. Mas é o que vivi e vivo ainda.

Não sei como começar, pois não sei as palavras certas. Mas sei que, quem a ler, vai notar, que é, como se eu estivesse chorando, quando lembro de tudo o que passei no começo da minha vida. Que agora não é diferente, pois foi ficando cada vez mais triste.

Nasci em um lar pobre, mas feliz, tinha os meus pais que amava e uma irmã mais velha do que eu dois anos, que se chamava Júlia.

Nos dávamos muito bem, ela era uma menina ruiva de cabelos cacheados, a gente brincava o dia todo. Às vezes eu achava o dia até curto demais para tanta brincadeira.

Meu pai trabalhava na estrada ferroviária, saía cedo e só voltava à noitinha, muito cansado e às vezes triste, pois ganhava pouco, tendo com isto, contar com o ganho também da minha mãe.

Bem, minha mãe era muito carinhosa com a gente. Às vezes, a víamos chorar, quando faltava alguma coisa em casa, tendo que trabalhar, lavando roupa para ganhar alguma coisa.

Ainda me lembro dela, chegando em casa cansada, mas, sempre trazia alguma coisa que ganhava das pessoas para quem lavava roupa.

Para nós, era uma grande coisa, pois nem sempre tínhamos alimento em nossa casa.

Eu via minha mãe com lágrimas nos olhos. Meu pai que se chamava Jair trazia alguma coisa, mas era mais difícil, só no dia do pagamento, porém, fazia tudo para nos agradar e tornar nossa vida mais feliz.

Os avós maternos moravam perto da nossa casa e, nos acolhiam muito bem. Minha avó se chamava Maria e meu avô Antonio. Nossa vida foi assim, até os meus cinco aninhos, quando de repente, ouve um acidente de trem e meu pai morreu.

Quanta falta nos fez, a ausência de papai trouxe-nos tanta tristeza e, também pobreza. Nossos parentes vieram para o enterro e levaram minha irmã Júlia para passar uns tempos com eles, tempo este, que não passava nunca e, minha irmã não voltou mais.

Mamãe achou muita falta dela, mas, se apenas eu ficasse com ela, a despesa seria menor, pois, já não tinha o ganho de meu pai. E ela ganhava muito pouco.

Minha avó sempre nos ajudava, mas eles também viviam de aposentadoria do vovô que também não era grande coisa.

Na verdade, eu nunca me sentia feliz, mas o pior estava por vir.

Quando completei onze anos, minha mãe adoeceu e, como era muito fraca e quase não comia, precisou parar de lavar roupa, assim seu ganho acabou.

Lembro-me dela tomando remédios, indo aos médicos, à farmácia e, quase sempre na mesma, não melhorava. Muitas vezes a vi chorar, por achar que um dia, iria partir e me deixar. A minha tristeza não era menor do que a dela.

Passaram-se dois anos, agora eu tinha treze e ela caiu de cama de vez. Senti-me sozinho, parecia que não tinha mais ninguém ao meu redor. Apesar de ter minha avó e meu avô ali presentes, me sentia perdido no mundo. Como minha mãe era importante para mim! O nome dela era Cecília.

Um dia, vieram umas visitas na minha casa e, junto com eles um jovem mais velho do que eu. Começamos a conversar e, notei que ele era diferente, não sei porque, mas ele tinha alguma coisa que eu não tinha. Uma postura diferente que, na minha ingenuidade eu achava o máximo. O jeito dele falar e até de responder arrogantemente à sua mãe, me fez pensar, que eu era babaca, por gostar tanto da minha.

Ele me disse que eu era atrasado, mas, com umas explicações eu ficaria igual a ele. Fiquei contente, puxa vida, ficar sabido como gente da cidade! E, também abismado, quando ele saiu e, parou a alguns metros longe de nós. Caminhei em sua direção, e quando o encontrei, ele estava fumando. Nossa, que coisa feia, pois, minha mãe sempre dizia que fumar fazia mal.

Mas, ele fumava e estava bom, até mais alegre do que o normal. Quando me avistou, ficou um pouco assustado e quis esconder, mas viu que não adiantava, pois, eu já tinha visto.

Foi o dia mais negro da minha vida, pois, foi aí que ele me disse: Experimente, e você vai ver que é muito legal, você vai ficar doidão.

Peguei o pequeno cigarro, mal feito que, ele tinha na mão e coloquei na boca. Não era tão ruim assim como eu pensava. Coloquei de novo na boca, duas ou três vezes. Foi então que me perguntou se eu tinha gostado e, disse que sim. Então veio a surpresa: eu tinha que arrumar dinheiro, pois aquele cigarro era comprado e, era muito caro.

Fiquei preocupado, pois minha mãe tinha algum dinheiro que os parentes haviam deixado para comprar remédio e eu sabia onde estava guardado.

O cara prometeu que se eu arrumasse o dinheiro, ele voltaria e traria mais cigarros daqueles para mim. Bem, não foi difícil pegar o dinheiro da minha mãe, pois ela estava na cama e já não se levantava mais.

Como prometido, voltou trazendo o cigarro que, agora eu sabia ser droga. Logo eu já fumava sem nenhum medo, ou respeito pela minha mãe doente. Ela achou falta do dinheiro mas, como vinha muita gente visitá-la, não desconfiava de mim. Que por minha vez, quando tinha oportunidade, tirava dinheiro dela, e da minha avó, pois, vovô também já tinha partido.

Já não me sentia mais sozinho, pois tinha um amigo que me trazia cigarro e, dinheiro não podia ser problema, eu tinha que conseguir a qualquer custo.

Nestas alturas já me sentia igual àquele jovem que me trazia droga.

Estava com dezesseis anos, já era um rapaz como minha mãe dizia. Certo dia, minha mãe ficou tão mal, que precisou ser internada. Foi colocada na ambulância, e lágrimas correrem pelo seu rosto, só que desta vez, eu não chorei. Puxa, eu estava diferente mesmo, bem que meu amigo havia me dito que, quem fuma não chora à toa. Mas ela era minha mãe, e daí?

No dia seguinte, tinha que arrumar mais dinheiro, pois meu amigo vinha trazer mais cigarro. E agora?

Com ela no hospital, eu não tinha chance de conseguir, mas tinha que pensar em alguma coisa. E a única coisa de valor que possuía era um relógio de pulso que, não deixava por nada no mundo, pois foi o único presente que papai pode dar a ela no Natal.

Aquele relógio era uma relíquia para ela, mas eu não queria nem saber, eu queria dinheiro a qualquer custo.

No hospital em que minha mãe estava, tinha uma escada para chegar até o quarto. Eu não sentia mais amor por ela, e nem remorso por tirar tudo o que tinha.

Subi as escadas sem fazer barulho. Ao abrir a porta do quarto vi que mamãe estava com os olhos fechados, talvez dormia, ou sentia alguma dor. Não pensei duas vezes, me aproximei da mesinha de cabeceira; a única coisa que achei foi o relógio por ela tão querido e tão cobiçado por mim. Não tive dúvidas, pois era o que precisava para a droga do outro dia.

De madrugada veio a notícia, mamãe havia falecido e, eu estava indiferente e tão drogado, que não senti sua falta, para mim nada mais tinha valor.

Acompanhei o enterro só para agradar os parentes, mas queria que tudo aquilo terminasse logo, pois eu ia encontrar o meu amigo. Finalmente, acabou o enterro, se foram os parentes e minha irmã Júlia também, e daí? Eles não me faziam falta.

Minha irmã chorou muito por mim, por ver a minha situação: magro, cabeludo, barbudo, e esquisito, ou diferente, como eu gostava de ser chamado.

Bem, acabou minha família, só ficou eu; juntei uns amigos “barra pesada” e levei para morar na minha casa, que já não tinha nada nem para comer. Vez em quando, eu vendia alguma coisa: por exemplo, botijão de gás, utensílios de cozinha, ou qualquer coisa por preço mínimo, para comprar drogas.

Um dia, não tendo mais o que vender, combinei com os amigos para fazermos um assalto. Sabia que era perigoso, mas meus amigos eram “barra pesada” e eu confiava neles. Em um desses assaltos, a polícia deu batida atrás da gente e pegou todos, inclusive eu, que me julgava o bom.

Alguns dos amigos que os pais tinham dinheiro, conseguiram sair da cadeia, outros não. Dentre os que ficaram, com muito trabalho e sacrifício, por fim conseguiram sair, menos eu.

Passou-se o tempo e, como demora a passar o tempo aqui dentro. Hoje tenho dezoito anos e alguns meses, estou acabado, meu cérebro quase não funciona mais.

Dentre os assaltos que fizemos, alguns tiveram vítimas e, como os outros se defenderam e saíram, só ficou eu.

Aqui dentro da cela não entra drogas e, já estou conseguindo raciocinar, lembrar de tudo o que aconteceu.

Sinto- me sozinho, quando poderia estar rodeado de amigos e parentes. Nunca mais vi minha irmã Júlia. Ela nunca veio me visitar, sinto-me deprimido e, não tenho com quem conversar. Quem vai querer falar com alguém, que roubou até a própria mãe na hora de sua morte? Ninguém.

De tudo o que fizemos e, que praticamos de mal, fui o único a ser julgado. Com vinte anos, ou melhor, no meu aniversário de vinte anos, me vi rodeado de gente. Só que desta vez, não eram parentes, nem amigos, muito menos, a minha mãezinha que tanto me defendia. Ao contrário, eram meus acusadores. E, eu não tinha defesa, pois, não tinha dinheiro. Conclusão: fui condenado a quinze anos de prisão.

Foi uma das poucas vezes que ouvi meu nome, citado com muita severidade e rigor da lei. O juiz deu a sentença em alto e bom som. Marcelo, condenado a cumprir em prisão fechada.

Eu já tinha esquecido o meu nome, este nome que meus pais, por certo, colocaram com tanto carinho.

Hoje aqui onde me encontro sinto frio, sinto falta dos carinhos, do colo de minha mãe, e do cheiro da comida da vovó. Minha marmita é quase jogada para dentro da cela. Sinto o cheiro de minha roupa suja, quando poderia estar dormindo na minha cama. Maldita droga!

A cama da cela é de concreto e é muito fria. O colchão é muito fino e facilita a gente pegar um resfriado. Aqui não tem remédio. Nossa dor não tem cura, sabe por que? Porque é dor de consciência. Afinal, a dor de uma gripe, de uma simples dor de cabeça, ou dor no corpo, não se compara à dor daquelas vitimas que matamos nos assaltos.

O dia passa, a noite chega, mas é tudo a mesma coisa, pois aqui não tem sol mesmo. Tanto faz o dia como a noite.

Não sei que dia é hoje. Vejo através das grades, se lá fora tem sol, ou se chove.

Aqui é um tormento, a gente fica desesperado, se ficamos em pé, ou deitado, é a mesma coisa.

O preso não tem espaço, a comida é ruim, a água que se toma é morna, não adianta chamar ou gritar que ninguém vem te atender. Não tenho visitas, pois acabei com a felicidade da minha família. A única irmã que tenho não vem me visitar e, nem tenho o endereço dela. Tenho castigo. Cadeia é desagradável.

Dou um conselho a quem, por acaso, ler esta mensagem. Não queira ser diferente, seja você mesmo, tenha o seu jeito. Conquiste o seu espaço.

Aqui dentro da cela não tem espaço suficiente para recuperação. A mente fica enclausurada, não tem com quem trocar idéias.

Aí fora o sol é maravilhoso, o vento é gostoso, soprando os cabelos da gente, aumenta a sensação de liberdade; e, no fim do dia um banho relaxante, após o jantar, uma conversa animada com a família...

Até o latido de um cão, nos faz sentir o pulsar da vida. O cantar do galo na madrugada nos faz saber que um novo dia está raiando.

Dentro de uma cela o dia não amanhece, pois está sempre escuro. Não existe dia, nem noite, nada se transforma, ou melhor: transforma - o ser humano, em um morto vivo.

Meu nome é Marcelo

Presidiário.

Maria Barreto
Enviado por Maria Barreto em 19/12/2010
Código do texto: T2680867