Aluga-se

“O que podemos classificar como bom ou ruim? Hoje realmente existe a bondade ou somente o fato de não cometer maldades já lhe torna um bom homem? Desde quando os empobrecimentos dos valores vêm ocorrendo? Será que esta sempre foi a essência do homem? O homem nasce bom ou mau? É um produto do meio? É a índole que o faz capaz de cometer tais atrocidades? Será que somos capazes de tanta crueldade pelo simples fato de sermos capazes? Será que essa capacidade que denominamos de raciocínio ou até teleologia nos transformou nesses monstros que mantém o instinto animal camuflado sobre fina camada lógica? Tantos seres humanos cruéis que matam ou deixam morrer por prazer, não acredito que isso seja o que merecemos, todavia compreendo que na verdade não quero acreditar, pois no final das contas somos o câncer do próprio planeta.”

O amarelado sol era o mesmo de cada manhã, o céu azul mais parecia um esplêndido oceano aéreo de tão límpido e ausente de esbranquiçadas nuvens. O calor era penoso na fluminense cidade, todavia satisfazia ao apessoado cidadão que neste instante transpassava o próprio jardim em direção ao automóvel sedan vermelho. Ainda caminhando lentamente pela pequena estradinha de paralelepípedos que cortava a singular relva, trajado socialmente com um vistoso sorriso, cumprimentava a todos os residentes locais. Tratava-se de um dia comum na vida de Bruno. A mesma sequência de atos nas mesmas horas do dia, um dia rotineiro como outro qualquer, onde aos primeiros passos usufruindo de boa vontade auxiliava vizinhos mais idosos com favores módicos, sentia-se bem exercendo tais serviços que de nada o atrapalhariam, somente aumentavam sua cota diária de boas ações. Ações que deleitava como quitutes prediletos.

Após carregar as sacolas da idosa com quem dividia a parede, solitário seguiu purificado em direção ao trabalho. Um trabalho que poderia ser dito como um bom serviço. Há seis anos era oficial de justiça e há seis anos tornou-se o carteiro mais desagradável de muitas histórias, diversas vezes hostilizado, entretanto diariamente superava tais entraves, uma vez que necessitava ganhar o sustento para manter a estabilidade da tão almejada vida que levava. Certamente seria um dia comum, os pontos cotidianos convergiam traçando a manta fleumática da segurança, somente destoando devido ao singular sujeito que dentre as sombras da casa vizinha espreitava seu trajeto. Um equipado indivíduo, que discreto e também caminhando vagarosamente passou despercebido pela vizinhança, portando o que seria simplória sacola de pão amarronzada.

A vespertina abdicou de seu momento e a noite surgiu escurecendo o agradável ambiente do bairro de Santa Tereza. Extenuado pelo atribulado dia, Bruno rapidamente estacionou seu veículo de maneira desleixada e a passos arrastados seguiu pisoteando o bem cuidado jardim. A madrugada alcançava a penumbra noturna para desespero do exemplar cidadão que em breves horas novamente deveria estar ereto. O serviço era grande e por muitas vezes pensou em não dar conta do recado, todavia outra vez cumpriu com maestria suas obrigações, independente das ameaças diárias. Não era fácil chegar de surpresa abusando de atos inoportunos, porém como dito anteriormente, precisava deste dinheiro para se manter.

Finalmente havia chegado até a entrada principal de sua morada, somente objetivava descansar, porém ao avistar um estranho vulto que saltava de sua rede de balanço, assombrado, quase colidiu contra o solo, por instante pensou que se tratava de um ladrão ou algum de seus visitados buscando vingança, alternativas que pareciam bem melhores, tendo em vista que a pessoa que lhe aguardava era sua ciumenta namorada Laura. Fêmea formosa, de cabelo Chanel e olhos acinzentados, uma chamativa jovem de traços europeus e tipo atarracado, que díspar a sua beleza possuía impetuoso gênio monopolizador.

A mulher tornou-se um felino prestes a avançar sobre sua exausta presa, manteve uma estranha pose enfurecida que mais se assemelhava a posição de ataque, e mantendo um braço de distância proferiu incontáveis sentenças buscando respostas sobre a anterior localização de seu estimado companheiro. Ignorando o escarcéu Bruno há essa hora, pouco entendia o que a exaltada mulher questionava aos berros, não possuía mais paciência, sequer tinha estabilidade mental para articular réplicas, então desta maneira somente deu um beijo na testa da inquiridora e logo após cerrou a porta, deixando-a ao lado de fora sem ofertar qualquer explicação.

O interior da morada era bem arquitetado, o exaurido cidadão residia em singular localidade havia menos de dois anos, todos os móveis cheiravam a novo e o piso de tábua corrida reluzia ao lustre central. A organização era notória, parecia sofrer de transtorno obsessivo compulsivo, algo que na vista de seus visitantes era uma dádiva. Somente os tolos poderiam vê-lo assim, mas não existia melhor álibi que a ordem de tolos que diariamente o cercavam.

Ainda arrastava-se com apertura, seus flamejantes olhos cerravam abdicando da prontidão cotidiana e negligente largou a pesada arma sobre a mesa de cabeceira.

Seguia o instinto como um desatento sofredor psíquico, e praticamente cego transpassou o estreito corredor revestido por espelhos, onde por desventura não percebeu a presença da obscura criatura que sorrateira invadia sua residência. O trajeto era curto, faltava pouco para chegar a seu quarto, porém o percurso bruscamente é interrompido pelo apagar das luzes. A princípio não sentiu temor algum, mas sim grande angústia ao intuir que Laura havia desligado a caixa de força para provocá-lo. O caminho era tão curto e já estava prestes a subir em sua cama, poderia resolver o problema de energia no dia seguinte e desta maneira prosseguiu pelo sombrio corredor quando se deteve ao ouvir leves passadas próximas as suas costas. Neste instante, o gélido suor percorreu seu robusto frontispício, poderia ser Laura novamente lhe incomodando, como também poderia ser um marginal. Não deveria apavorar-se tendo em vista que possuía um revólver, um estrondoso calibre trezentos e oitenta que neste oportuno momento deveria estar instalado em seu coldre, quando consumido pela tensão lembrou-se de tê-lo deixado sobre a escrivaninha da sala.

Zelando por sua existência neste plano, optou por trotar em direção ao quarto, porém consumido pelo pavor desesperado seguiu derrubando algumas das peças decorativas a sua frente, não deveria parar de correr, uma vez que em breve chegaria a seu quarto e seguro trancafiaria a porta de madeira maciça. Os passos intrusos também aceleraram o ritmo e a respiração do invasor podia ser escutada, em alguns instantes até sentiu-a sobre seu pescoço, situação que fez o inusitado anfitrião acelerar ainda mais sua corrida em largas passadas que salvadoras o permitiram alcançar o cômodo e trancafiar-se prontamente.

A princípio o pesadelo havia sido interrompido através da cerrada tranca, nenhuma batida na porta foi escutada, sequer a maçaneta moveu-se, em breves segundos pensou na possibilidade de ser alguma espécie de neurose que bateu em sua exaurida mente, seria impossível um meliante deter-se somente por uma porteira de madeira, algo estava errado, talvez realmente fosse Laura lhe pregando uma peça, contudo caso não o fosse, a própria poderia estar em apuros.

Sentia o cansaço consumir a totalidade de seu corpo e mal poderia oferecer resistência ao invasor, certamente estava em desvantagem, a não ser pela singela pistola silenciada calibre vinte e dois ocultada sob seu travesseiro. Possuía a fé que desapiedado sairia daquele recinto e em parcos movimentos encerraria suas dúvidas. Centrado no futuro gesto em seu âmago clamava intensamente para que realmente fosse um meliante que ali o aguardava, não perguntaria e sim dispararia em linha reta até sentir-se seguro, realmente seria uma lástima caso o ocorrido fosse uma brincadeira. Uma lástima para o brincalhão que pipocado cairia direto trajado com o paletó de madeira.

Nenhum som era emitido no corredor, sequer um movimento poderia ser percebido, e assim sua apreensão ampliava em proporções inimagináveis, verdadeiramente a situação configurar-se-ia como azucrinante, até Gandhi perderia a paciência nesta conjuntura. Os segundos passavam como horas e ao contabilizar o terceiro instante abriu a pesada porteira e impassível disparou incontáveis vezes gerando monocromáticos flashes que intercalados iluminavam a região em milésimos de segundos. A luz branca alaranjada mesclava-se com as trevas ambiente e aos poucos revelava alguns espelhos estilhaçados ao som de ricochetes, mas nada do invasor que sem rastro algum debandou da localidade como se fosse composto fumaça.

Sentado sobre o emadeirado piso, encolerizado Bruno lançou sua pistola para dentro do quarto e com a cabeça entre as pernas cruzadas desiludido bispava as folhas das árvores de seu jardim trazidas pelo vento que transpassava o espaço reservado a porta principal que de maneira espantosa se encontrava aberta. Compreendendo o recado permaneceu ciente de que havia cometido alguma falha em seu serviço, um erro ainda não identificado que possivelmente lhe custaria uma nova mudança, outro indesejável processo migratório por força maior.

Erguendo-se novamente caminhou até a entrada principal, avistou uma carta selada encravada sobre o tapete de boas vindas, discretamente a apanhou, cumprimentou a vizinhança que alarmada buscava compreender o barulho proporcionado pelos estilhaçados espelhos, e depois de informar maquiado infortúnio, dissimulado revela assustadora fleuma enquanto ligava os sabotados disjuntores.

Encarando discretamente seus conhecidos, o jovem oficial de justiça se desculpa pelo transtorno promovido, lhes deseja boa noite, some dentre a escuridão de seu lar e finaliza a densa madrugada girando duas vezes a metálica chave trancafiando a entrada de sua profanada morada.

Continua...

*OBS: Aluga-se, Assassino e Carioca, respectivamente pertencem ao mesmo arco, todavia são histórias independentes que compartilharão do mesmo final em única edição.

Vittório Torry
Enviado por Vittório Torry em 01/03/2010
Reeditado em 05/07/2010
Código do texto: T2114911
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2010. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.