O LATIDO – UMA EXECUÇÃO LITERÁRIA
Num dia, ele apareceu enforcado. Pobre criatura; frágil e pequena. Pendurado do galho de uma árvore, tão pequena quanto ele. Nem mesmo havíamos percebido – ou melhor, havíamos notado algo de diferente no ar, mas parecia aquela situação onde não sabemos bem o porquê; e, ainda assim, algo não está no lugar. De fato, algo estava no lugar. No lugar errado. Pendurado, balançante. Pobre criatura. Não latira aquela manhã. Nem mesmo, na noite anterior.
A princípio, o dia tinha sido o mesmo. Cada um, com suas obrigações, esquecera de olhar naquela direção. Nem mesmo os donos se deram conta de que algo estava estranho para aquele lado da casa; daquele ser que, comumente, se rebelava a qualquer situação que ainda não conseguíramos compreender. Seja como for, se foi. Será que suicidou-se? Impossível! Então, logo, alguém lho fez.
Será que fui eu? Ainda não o sei. Só o descobrirei no fim desse breve conto. O fato é que, neste momento, ele late lá fora e isto me irrita. Não só a mim, mas a todos os suspeitos – não citarei nomes para não comprometê-los.
A verdade é que o desgraçado late a qualquer movimento na casa. Quando o soltamos, ele se acalma. Mas, você sabe o poder de irritação daquelas Miniaturas Pinschers. Aliás, se não me engano – e agora, vou ao dicionário para verificar – to pinch significa espetar. Só um momento... Pois sim, acabo de relembrar que Pinshers são Dobermanns. E que to pinch é, de fato, beliscar, incomodar etc. Realmente, o trocadilho é válido. Cão chato que incomoda pra cacete! Late sem parar. Incrível. Como não lhe vem uma dor de garganta?
Sejamos justos, aquela correntinha no pescoço deve incomodá-lo pacas. Mas, sejamos reflexivos, também: é chato de propósito. Ora, ele gosta de perturbar, não é possível! Ou será que ele grita por se aproximar? Pois, quando o liberamos ou chegamos perto, acalma-se, abaixa a cabecinha e abana o cotôco que chamamos de rabo.
É gente boa. Se solto, vem aqui em casa para dar um alô e sempre se comporta. O negócio dele é atado. Putz! Muda completamente de personalidade. Acho que é bipolar.
Quem descobriu foi a faxineira – sempre envolvida. Afinal, sem mordomo (no Brasil temos que adequar às funções culturais) não há mistério. Mas, tadinha, em seu desespero, saiu gritando e chorando. Todos, então, largamos nossos afazeres e, estarrecidos, ficamos a fitar aquela cena hedionda; eternamente balouçante, como um Pêndulo de Foucault.
Permanecemos calados. Não poderia ser verdade! Porém, acho que houve uma dose de alívio no inconsciente de cada um de nós: nossas manhãs, tardes e noites estavam salvas, sem a implicância freqüente e frenética daquele cãozinho que tanto gostávamos, mas que, ainda assim, gostava de nos infernizar.
Demoramos a nos aproximar. De alguma forma, estávamos aterrorizados com a possibilidade de que um de nós teria tido a coragem – ou, melhor dizendo, a covardia – de tomar tal atitude. No entanto, a curiosidade foi ganhando forma e força e caminhamos, já preocupados com a tristeza e reação de desgosto dos “pais” da vítima, até à cena.
Então, percebemos que a corda não era corda, mas sua própria corrente. Oscilando, num dos galhos do jovem pé de jabuticaba, o pincher Pinscher parecia ter pulado atrás de algo no jardim; e sua corrente se agarrara à planta. Não latia mais. Não enchia mais o saco. Não nos confrontaria de novo. Inerte, jazia no vai e vem na jabuticabeira.
Neste momento de reflexão, eis que alguém toma uma atitude e se aproxima do pobre cadáver para tirá-lo de seu cadafalso. Aí, no falsear desse movimento, ouviu-se o que talvez não – talvez sim – queríamos ouvir:
AUAUAUAUAUAUAUAUAUAUAUUAUAUAUAUUAUAUAUAUUAUAU...