O ÚLTIMO ENCONTRO
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Corria alucinadamente em uma direção desconhecida. Não sabia exatamente por onde deveria seguir. Sabia apenas para onde não podia voltar. Sem a ajuda da luz da lua do início de noite, completamente coberta pelas nuvens, não conseguia enxergar com clareza o terreno que atravessava. Tropeçava a todo instante nas enormes raízes que brotavam do chão. Seu joelho já sangrava muito e seu rosto figurava completamente coberto pela terra que se misturava ao suor a cada queda. O frio congelante fazia, daquela, a noite mais fria do ano. Mas a alta dose de adrenalina que lhe percorria o corpo tornava a temperatura imperceptível.
Deu uma rápida olhada para trás enquanto corria. Não podia parar! Observou ao longe as luzes cruzando o ar como espadas medievais em uma feroz batalha. Aquele som da casa de detenção, que já ouvira outras vezes anunciando fugas e rebeliões, parecia muito mais assustador agora, já que hoje a psicodélica sinfonia presidiária era em sua “homenagem”.
Alcançando o fim do denso mar de árvores, seguiu em direção às luzes da cidade. Correu menos de quatro quilômetros até avistar o antigo Corvette de pintura descascada parado no estacionamento do velho hotel a beira da estrada. Aproveitou o descuido do motorista e abriu o carro facilmente pela fresta no vidro. Não demorou mais de um minuto para conseguir fazer uma ligação direta e dar a partida no motor do carro.
Verificou em sua cintura a arma carregada que tinha conseguido arrumar com grande facilidade na prisão. Seu objetivo era certo assim como seu destino: Rua Albert Einstein, 999.
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Frank estava muito ansioso. Já planejava a surpresa há mais de uma semana. Tirou o dia de folga no trabalho, mas não contou nada à sua esposa. Lisa era uma mulher extraordinária. Conquistava a homens e mulheres, com sua simpatia e seu belíssimo par de pernas, por onde quer que passasse. Casaram-se menos de um ano depois de se conhecerem e agora, seis meses depois, já planejavam ter o primeiro filho. Ambos não cansavam em concordar que o amor tinha sido “à primeira vista”.
Pela manhã Frank despediu-se de sua amada com um terno e longo beijo, logo após o café, e partiu para a preparação. Passara o dia e tarde toda comprando velas, incensos, rosas, cremes para massagem, espuma para banheira, vinhos importados e tudo mais o que um verdadeiro filme de amor hollywoodiano pudesse lhe lembrar. Sua mente já traçava todos os detalhes. Sabia onde ficaria cada uma das velas perfumadas que tinha comprado.
Lisa deveria estar agora em seu jantar semanal com os pais e só chegaria depois das dez horas da noite, horário que ele também costumava voltar do trabalho em dias normais de serviço. Frank admirava essa sua forte ligação com a família e sabia o quanto seria importante na construção de uma nova família. Frank teria em torno de duas horas para organizar tudo. Suas mãos suavam só de imaginar os incendiários momentos que teriam durante toda a madrugada. Suspirou de excitação quando sua mente lhe trouxe a imagem de Lisa nua. Ainda estava com um grande sorriso em sua face quando virou a Rua Albert Einstein e partiu em direção à sua casa, número 999.
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O Detetive Benson era um policial invejável. Entrara como um dos policiais mais novos do Departamento e era agora também um dos mais bem quistos entre os colegas. Sua dedicação ao trabalho, seu pensamento perspicaz e seus incríveis resultados também o faziam um dos favoritos e mais qualificados a futuras promoções. Sabia não tardaria a alcançar postos mais altos dentro da polícia. Só não imaginava que em seu habitual trajeto de volta para casa pudesse passar por uma rua que alterasse o percurso de sua vida para sempre. Entrou na Rua Albert Einstein e acelerou em direção ao seu trágico destino.
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Ainda muito ofegante alcançou a Rua Albert Einstein. Deixara o carro a mais de três quarteirões para não levantar suspeitas naquele bairro rico. Havia encontrado algumas roupas velhas no porta malas do Corvette que trocou pelo seu uniforme de presidiário, completamente rasgado devido ao estreito túnel pelo qual escapou. Ainda assim decidiu aproximar-se de seu destino com extrema discrição, devido a seu terrível estado.
Esgueirou-se pelos arbustos até alcançar uma bela casa branca de dois andares. Viu acima da porta gravado o número 999 num forte tom dourado. Deu um longo suspiro pensativo enquanto ainda olhava para os belos contornos da casa. Percebeu, então, um carro se aproximando. Abaixou-se assustadamente rápido e fingiu amarrar o cadarço, tentando não olhar para os lados. Respirou aliviado quando ouviu o barulho do motor se afastando.
Partiu em direção a lateral esquerda da casa, esgueirando-se entre a parede exterior da residência e o muro que limitava a área do quintal. Alcançou, então, a porta auxiliar da cozinha. Olhou para os lados para verificar se ainda estava sozinho antes de abaixar-se para arrancar uma folha de madeira de um velho armarinho que tinha sido descartado ali. A porta possuía um macete para ser aberta que ele já conhecia. Enfiou a madeira entre o batente e a porta, alcançando a trinco da fechadura. A porta deslizou depois de um leve clique. Talvez a polícia o encontrasse logo. Não tinha muito tempo. Adentrou na casa com passos decididos, atravessando sem demora a cozinha.
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Estacionou o carro na casa de seu amigo de academia a duas casas de distância. Frank queria que Lisa acreditasse que ele ainda não tinha retornado do trabalho quando voltasse do jantar. Mal conseguia controlar sua euforia. Entrou em casa com um enorme número de sacolas na mão e largou tudo ali mesmo no hall. Estava muito apertado para ir ao banheiro. Alcançou o lavabo perto da porta de entrada da casa e sentiu o alívio tomar conta de seu corpo enquanto descarregava o peso de seu rim. Pensava por onde começaria quando ouviu um barulho vindo da cozinha. Apertou a descarga e seguiu vagarosamente na sua direção. Prendeu a respiração quando chegou perto da porta. Aproximou-se como se estivesse brincando de esconde-esconde com alguém. Em um rápido movimento com a cabeça pôde ter a completa visão da cozinha, tomando um grande susto. Lancelot, um gato preto que o casal ganhara como presente de casamento de um amigo veterinário, saltou da pia direto para o meio de suas pernas. Aliviado, Frank pegou o gato nas mãos.
- Querendo me assustar é seu sacana? E fuçando o lixo ainda por cima? Muito bonito! – disse fazendo um afago enquanto o gato retribuía com seu ronco de satisfação.
A porta estava entreaberta. Até Lancelot já descobrira que aquela porta andava com problemas, e que às vezes era necessário apenas um empurrão ou mesmo um mero vento para abri-la. Cansara de acordar nas madrugadas com o assovio do vento atravessando a cozinha. Já tinha sido arrumada uma vez, mas há pouco tempo voltara a ter o problema.
- Maldito arrombamento! – disse se lembrando do evento que causara aquele incômodo dano na porta. Adicionou novamente à sua lista pessoal de afazeres: consertar a porta com urgência. “Ainda essa semana!”, pensou.
Deixando a cozinha para trás, atravessou a sala e subiu as escadas para trocar de roupas antes de começar sua jornada romântica. Olhava para todas as paredes e móveis por onde passava, imaginando como poderia decorar o corredor, quando dobrou a esquina do corredor e notou a porta de seu quarto entreaberta. Ouviu ruídos vindos de lá e percebeu uma estranha movimentação. Sentiu o coração palpitar forte e um péssimo pressentimento lhe invadir o corpo. Aproximou-se sorrateiramente da porta. Seus olhos começaram invadir centímetro por centímetro o campo de visão do quarto. Quando seus olhos alcançaram então a cama, Frank congelou.
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Enquanto atravessava a rua, o eficaz radar de perigo do Detetive Benson soou. Com o canto dos olhos percebeu um homem em péssimo estado e vestido com roupas velhas na frente de uma bela casa branca. Num bairro de alta classe daquele e naquele horário era algo bastante incomum. Fingiu não perceber a presença do homem que tentou disfarçar sua presença durante sua passagem. Passou direto com o carro pela figura do homem e parou cinco casas a frente. Dali o homem não poderia ter visão devido aos altos arbustos das casas vizinhas.
Ao descer do carro sentiu o baque frio do ar, que fazia com que cada respirada emanasse um longo vapor de fumaça. Caminhou calmamente para o outro lado da rua, de onde podia ter uma visão parcial da casa. O homem tinha desaparecido. Continuou andando na mesma direção pela calçada oposta quando viu alguém se aproximando da casa. Sem que Benson tivesse tempo de reação, a pessoa, provavelmente dona da casa, pegou as chaves e entrou pela porta da frente. Sentiu então seu extinto policial se aflorar. Estava muito longe para gritar sobre o perigo iminente e achou que isso poderia provocar alguma reação inesperada, caso o suspeito estivesse perto da porta. Além disso, se o homem soubesse que ali tinha um policial, teria um grande passo a sua frente com um refém. Decidiu agir com calma para tentar obter vantagem da situação.
Prosseguiu sua caminhada em direção a casa, agora em rápidas passadas. Retirou a arma do coldre, ainda mantendo-a sob a blusa. Não queria causar nenhum pânico naquele bairro residencial. Chegou à parte da frente da casa. Tudo parecia normal. Mas Benson sabia que tinha algo errado. Começou a se esgueirar pelo lado esquerdo da casa, procurando alguma janela aberta. Notou então a porta da cozinha aberta. Parecia ter sido arrombada. Quando chegou mais perto para verificar a fechadura ouviu um grito abafado vindo lá de dentro. Precisava agir rápido!
Com silenciosas passadas, correu para dentro da casa. Agir sem ser notado era seu método mais conhecido no departamento. Como uma águia atravessou a cozinha com a arma empunhada junto à cintura. Mapeou o ambiente com seus olhos enquanto prosseguia sala adentro. Outro grito! Subiu as escadas correndo e dobrou no final do corredor. Viu então uma porta entreaberta. Aproximou-se com sua arma próxima ao rosto esgueirando-se pela parede. Num experiente movimento, deslocou seu corpo para dentro do quarto com a arma já mirando um alvo desconhecido.
- Parado!!!
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O foragido atingiu a sala. Sentiu o forte cheiro de mofo que tomava conta daquele ambiente empoeirado. Observou os jornais que tomavam conta das janelas e de algumas caixas que ficaram por ali. A história que a casa trazia consigo afastava os locatários. No lugar dos móveis, o vazio. A mesma sensação que não lhe abandonara desde a última vez que esteve na casa.
A poeira o fez tossir e o pó se misturou com suas lágrimas que começavam a se aventurar por seus olhos. O som da tosse se misturava com o de suas sussurradas lamentações. Não sabia se tinha mais forças para atravessar as escadas que davam para o corredor. Recorreu à ajuda do corrimão quando sentiu suas pernas bambearem em sua dolorosa subida. Atingiu o corredor já esgotado. Suas lágrimas já tomavam conta do rosto. Apoiando-se nas paredes para continuar a caminhada, deixava os rastros de tristeza e terra de suas mãos misturadas com as lágrimas de seu rosto.
Entrou no quarto como que em último raio de força e se apoiou com as costas na parede. O choro misturado com as incontroláveis tosses o fazia perder o ar. O quarto não tinha nada. Nenhuma cor, nenhuma luz, nenhuma alegria. Com a força de uma barragem que se rompe as lágrimas deram sua última e violenta investida, caindo pesadamente sobre sua face. Escorregou com as costas até atingir o chão. Abraçou as pernas como uma pequena criança indefesa e reviveu involuntariamente todas as lembranças que, naquele mesmo quarto, alimentaram e esvaíram sua felicidade em tão pouco tempo...
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A cena deixou Frank incrédulo. Seu coração parecia não bater mais. Sentiu-se como uma inocente criança em um sanguinário campo de batalha, completamente perdido. Não podia acreditar no que via.
As pernas de Lisa, a mulher de sua vida e par perfeito, estavam fortemente entrelaçadas à cintura de um homem com as costas muito suadas que transava com ela em um ritmo selvagem, meio a arranhões e um pesado jargão de palavras trocadas entre eles. As lágrimas invadiram-lhe o rosto e a raiva inundou-lhe a mente. Tomou em suas mãos um pesado taco de baseball encostado no batente da porta e invadiu o quarto com um alvo certeiro.
Em uma fração de segundo já estava atrás do amante de sua mulher com o taco empunhado acima de sua cabeça. Sem controle de sua força e com os olhos vermelhos mergulhados em raiva, Frank iniciou o movimento que atingiria em cheio as costas do homem. Mas o repentino grito de susto de Lisa fez com que o homem, num impulso, escorregasse para o lado e caísse no chão. O taco, então, descrevendo seu trágico movimento sem volta, acabou atingindo, em cheio, a cabeça de sua esposa.
O sangue se esparramou pelo quarto e por sua roupa. Frank sentiu-se mergulhado em um rio polar, com frio e sem conseguir se mover. Não teve reação alguma contra o homem que fugiu assustado pela porta pela qual ele entrara para cometer o desastroso homicídio. Arregalou os olhos e respirou profundamente enquanto algumas lágrimas voltavam a se aventurar pela sua face. A confusão tomou o lugar da raiva em sua mente. Incrédulo, Frank esperava que a qualquer momento pudesse acordar daquele sonho horrível. Desabou sobre o corpo sem vida da mulher e sentiu uma dor inversa ao prazer do amor tomar-lhe o corpo. E então entendeu que jamais iria acordar daquele pesadelo.
- Não faça isso comigo! Por favor! Eu te amo! Eu te amo! – repetia entre gritos e choros, abraçado ao inerte corpo da mulher. A água que brotava densamente de seus olhos se misturava à cor do sangue e se espalhava cada vez mais pelo corpo de Frank a cada abraço.
Os policiais tiveram dificuldades e precisaram de quatro homens para separá-lo do corpo de Lisa. Algemaram-no enquanto ele repetia aos gritos em frenesi:
- Eu te amo! Não pode ser! Eu te amo!!!
De lá Frank foi levado direto para a penitenciária, onde ficou por quase dois anos até ter a oportunidade de escapar por um túnel subterrâneo em uma fuga coletiva.
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Agora com uma visão completa do cômodo, entendeu o que se passava no quarto. O homem que tinha avistado há pouco no jardim se postava sobre a mulher que entrara logo em seguida. Já tinha lhe arrancado a blusa e tentava arrancar-lhe violentamente o sutiã com a mesma mão que lhe desferia socos enquanto tentava lhe tampar a boca com a outra.
A ação foi muito rápida. Com o susto do grito, o homem tirou uma arma e conseguiu apertar o gatilho antes que Benson tivesse pleno vislumbre da situação. A bala lhe perfurou a coxa esquerda. Deu um grito de dor e perdeu a força na perna. O homem preparava para dar o segundo tiro quando Benson conseguiu lhe desferir um tiro certeiro no meio do peito antes mesmo de atingir o chão. O homem caiu para trás já sem vida.
Pouco tempo depois a casa já estava cheio de policiais e para-médicos. Todos cumprimentavam mais um grande feito de Benson. Depois de receber os primeiros tratamentos, Lisa se dirigiu ao homem que lhe salvara a vida.
- Não sei como te agradecer. Você foi um anjo para mim hoje. Muito obrigado. Muito obrigado... - disse Lisa chorando e abraçando, qual uma frágil porcelana, o detetive.
- Calma... calma... agora já está tudo bem! Está tudo bem!
Benson não pôde deixar de notar a beleza daquela mulher que o abraçava ternamente.
Antes de se despedir Benson lhe entregou um cartão:
- Caso precise de algo, nem que seja apenas uma conversa, esse é o meu cartão pessoal.
- F. Benson?
- Sim. Frank Benson.
Na noite seguinte Frank recebeu uma mensagem de Lisa: “Você gostaria de jantar aqui em casa hoje à noite?”
Em menos de um ano já estavam de casamento marcado.
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Frank ouviu as sirenes se aproximando. Os policiais já deviam estar muito perto e logo estariam ali. Não suportava mais o sofrimento. A dor. A ausência de felicidade. A culpa agonizante. Não conseguia acreditar que naquele quarto uma mesma pessoa conseguiu viver de tantas formas diferentes. E em suas lembranças, então, houve o último encontro entre o grande homem que um dia fora, o terrível monstro que se tornara e o atormentado pecador que já não suportava mais seu fardo.
- Eu te amo....
Tirou a arma, apontou para sua cabeça e puxou o gatilho.
* Epílogo *
Atravessou o corredor levando uma maca. Levantou um pouco o lençol que cobria o cadáver para observar seu rosto. Tinha o costume de fazer isso, tentando imaginar como poderia ter ocorrido a fatalidade.
- Bem velhinho esse. Uns oitenta anos. Esse deve ter tido um enfarte.
- E a mulher que chegou hoje cedo? Estava terrível... – interrompeu Marcos, seu colega do necrotério.
- Estava grávida. Trágico não?
- Demais. E como foi que ela morreu? Acidente de carro?
- Não. Foi o marido. Algum maluco provavelmente.
- Onde esse mundo vai parar? E ele sabia que ela estava grávida?
- Creio que nem ela sabia ainda. Mas logo, logo ele vai ficar sabendo. Eles sempre ficam sabendo...
- Hmmm...
- Chegou mais um carro. E mais trabalho pra gente.
- Vamos lá?
- Vamos...