Uma oração para a nuvem negra
Desci as escadas do prédio escuro, com cuidado e pressa. Estava ansioso para trocar olhares com algumas das pessoas atônitas que estavam na rua. Durante todo o percurso de 18 andares de descida, não encontrei ninguém. Certamente todas já haviam saído.
Trazia nas costas uma mochila contendo alimentos, um pouco de água, um cobertor, duas facas, uma pequena bússola de chaveiro, um mapa do Estado de São Paulo, um guia e uma pequena panela. Estava agasalhado com minha jaqueta de couro e estava usando um velho relógio mecânico, que fora do meu pai. Dentre todas as coisas que eu passei a vida juntando, só isso interessava. Sabia que jamais voltaria a ver meu apartamento e de fato, isto não me incomodava.
Na rua, havia pessoas paradas, olhando para oeste, onde estava o centro da cidade com suas lindas labaredas gigantes. Tentei andar em direção a um sujeito magro que parecia mais calmo que os demais, mas ao me aproximar, não consegui dizer nada. Nossos olhos se encontraram e nenhum dos dois tinha nada pra dizer. Foi como encontrar alguém desconhecido dentro do Metrô.
Voltei as costas para o oeste e andei em direção nordeste. Sabia que poderia haver mais cogumelos atômicos para outros lados, mas eu queria chegar até a Marginal Tietê e de lá seguir em direção a serra da Mantiqueira. Tentaria evitar passar por São José dos Campos, pois eu achava que as bases da aeronáutica daquela cidade, poderiam ser um alvo para as bombas.
Por toda a minha vida fui um homem sedentário, detesto exercícios físicos e fumo desvairadamente. Andar a pé seria um desafio e tanto, mas eu definitivamente estava disposto a tentar. Minha motivação era essa nova vontade de viver que tinha entrado em minhas veias no instante exato em que vi aquela nuvem negra em forma de cogumelo. Eu queria ser um dos poucos sortudos e poder viver em dois universos diferentes. Eu já sabia como o mundo tinha sido antes da nuvem negra, mas agora eu queria saber o que aconteceria.
Caminhei uns três quilômetros para nordeste, através de ruas, onde havia pessoas atônitas ou chorando, ou gritando ou brigando por causa de coisas que eu nem sabia o que era. Eu passava sempre quieto e não fazia qualquer menção de estar interessado nos assuntos de ninguém.
Um cara tentou chegar perto de mim e puxar minha mochila. Foi o que bastou para entender meu novo mundo. Certamente não sou muito forte e ele era um desses sujeitos vestidos em roupas baratas, acostumados a intimidar. Um tipo meio marginal. Sabe como é! Primeiro eu passei por ele e percebi que ele tentou me encarar. Desviei o olhar para não transparecer o medo, mas não teve jeito. Quando eu passei e já estava há mais de dez metros, ouvi-o dizendo:
o “E aí manu! Cê num qué mi dá a sacola não?”
Não perdi tempo olhando para traz, procurei à minha volta algo para me defender e encontrei à minha direita, um pedaço de caibro espetado no chão, provavelmente usado com suporte para uma muda de árvore que já não existia mais. Senti a mão dele puxando a mochila atrás de mim e imediatamente virei o corpo, já com o caibro nas mãos. Ele ainda tentou desviar, mas eu mudei a trajetória do golpe e o acertei no ombro. Ele caiu e ia tentar dizer algum impropério. Eu já tinha entendido que não estava mais no mundo dos homens civilizados e sabia que não havia polícia para pedir proteção e a discussão que tinha se iniciado pelo gentil comentário daquele cavalheiro ali no chão só tinha um final possível. Baixei o porrete na cabeça dele com toda a minha força. O sangue espirrou na calçada e eu não perdi meu tempo examinando mais a cena.
Olhei em volta e vi que ele tinha amigos. Percebi que teria que enfrenta-los também, mas para minha sorte eu vi uma pistola preta na cinta do cara caído. Peguei aquele treco e vi que tinha um pequeno botão deslizante do lado esquerdo, acima do cabo. Devia ser a trava. Destravei e apertei o gatilho com força apontando a arma em direção aos amigos do cara. Saíram vários tiros de uma só vez, não sei quantos. Um dos caras caiu, os demais saíram rua abaixo em debandada e eu para o outro lado.
Guardei a pistola na cintura, por baixo da camisa e depois de correr uns duzentos metros, cheguei a uma avenida e vi pela primeira vez, um carro em movimento. Olhei uma placa na esquina e vi que estava na Avenida Assis Ribeiro. Havia muitos carros parados na Avenida e uma sensação de desolamento geral. Muitas pessoas andavam a pé e alguns carros tentavam se mover entre os carros parados no meio da avenida e as pessoas que pareciam nem se importar com os carros.
Há certa distância de onde eu estava, vi um grupo de pessoas tentando parar e tomar um caminhão das Casas Bahia. O Motorista passou por cima de uns dois e seguiu em frente.
Não achei que seria uma boa idéia seguir meu caminho de carro. Parecia que os motoristas eram muito visados. De qualquer forma, eu sabia que as primeiras chuvas que viessem trariam a poeira radiativa para cima de nós e que eu teria que estar em um lugar coberto quando isso acontecesse. Um carro, definitivamente, embora fosse coberto, não seria o melhor lugar para estar quando a chuva começasse e as pessoas estivessem tentando se proteger.
A maioria das pessoas seguia a Avenida em sentido leste, em direção oposta aos cogumelos. Havia grupos de familiares e grupos de homens e pessoas sozinhas, a maioria carregando grandes sacolas. Algumas pessoas empurravam carrinhos de feira ou de supermercado. Tipicamente um bando desorganizado buscando algum refúgio.
Eu não segui pela avenida, mas atravessei-a e fui até um lugar onde o muro da estrada de ferro estava arrebentado, algumas poucas pessoas estavam passando por ali.
Achei melhor me enfiar na linha do trem e seguir em direção ao Rio de Janeiro. Esta estrada de ferro atravessaria a Serra da Mantiqueira e talvez lá, em algum vale encravado entre montanhas pudesse haver um local em que os níveis de radiação, após a estabilização da coisa, permanecessem baixos o bastante para que nem todos morressem de câncer.
Naquele momento, o câncer ainda não era a minha preocupação. Quando a chuva da nuvem negra viesse nos banhar, traria consigo as queimaduras de radiação. Muito mais mortais que a possibilidade de contrair câncer. Eu estava pensando em me afastar o máximo que conseguisse dos cogumelos e quando a chuva viesse, tentaria permanecer escondido. Até que tudo acabasse. É claro que qualquer pessoa, independentemente de onde estivesse, deveria se proteger durante a chuva, mas quem estivesse longe o bastante, talvez conseguisse prosseguir a caminhada depois da chuva. Os que estivessem nos lugares onde a chuva caísse muito concentrada, ficariam presos entre concentrações muito elevadas de cinzas radiativas. Para sair de lá só com roupas impermeáveis, máscaras e muita sorte.
Olhei a hora e vi que eram 06h30min. Continuei minha caminhada pelos trilhos, somente poucas pessoas fizeram a mesma opção. O cascalho do leito não combina com os carrinhos de supermercado e as grandes malas. Pude ver a minha frente, a cerca de cinqüenta metros, um grupo de pessoas formado por quatro homens e duas mulheres. Eles faziam algazarra, muito tranqüilos e visivelmente felizes, em enorme contraste com tudo que eu tinha visto naquele dia. Simpatizei com aquele grupo.
Não conseguia ver o que eles estavam apontando e por que eles estavam caçoando, mas um pouco depois, eu percebi.
Do lado esquerdo dos trilhos, havia um pequeno tufo de grama, e sobre a grama havia um cobertor estendido e nele, dois homens maduros, com mais de sessenta anos estavam fazendo sexo um com o outro. Inicialmente fiquei chocado, mas em seguida, percebi que nem mesmo a galhofa que o grupo a minha frente estava fazendo deles, fez que eles desistissem. - É claro! No novo mundo, ninguém tem nada a perder, nem mesmo a antiga moral ocidental.
Ao olhar os homens transando à nossa frente, sem qualquer espécie de pudor, lembrei-me que os meus próprios limites morais também estavam perdidos. Naquela altura, eu, que nem mesmo havia segurado um revólver ao longo de toda a vida, tinha matado brutalmente um ser humano a pauladas e possivelmente havia matado outro com um tiro.
Observei atentamente o meu interior e tentei perscrutar meus sentimentos enquanto me lembrava do sangue se espalhando na calçada. Nada, sentia apenas alívio por não estar no lugar daquele infeliz.
O grupo que ia a minha frente apertou o passo, quando percebeu que eu estava me aproximando. Fiquei intranqüilo, pois pensei que eles poderiam estar com medo de mim e eu me lembro muito bem o que eu havia feito agora a pouco quando fiquei com medo de um cara.
o Hei pessoal – eu disse
o Fica na sua meu chapa, a gente não quer companhia.
Fiquei quieto e mantive alguma distância. Atrás de nós, não havia ninguém e os velhos gays tinham ficado para traz. Continuei caminhando por um bom tempo, passei pela USP-leste e segui em direção a Mogi da Cruzes. Mantive um passo lento e uma distância segura do grupo da frente, mas sempre tive o cuidado de não perdê-los de vista.
Por volta das 11h30min horas, já tínhamos andado mais de vinte quilômetros, meus pés estavam doendo e minhas pernas pediam descanso, mas eu não queria me distanciar do grupo da frente. Tinha medo que se os perdesse de vista, eles me preparassem uma emboscada.
Naquela altura, acho que eles pensaram que conseguiriam correr um pouco, para se distanciar, logo depois de uma curva na estrada de ferro. De fato, assim que eu também fiz a curva, não os vi mais. Tinha dúvidas sobre o paradeiro deles e continuei andando com atenção redobrada. No lado direito da estrada, havia uma floresta e do lado esquerdo havia um conjunto habitacional com poucas casas construídas. Lembro-me que, da estrada de ferro eu conseguia ver os nomes das ruas do condomínio, Rua dos Cedros, Rua das Aroeiras, Rua das Goiabeiras e outras ruas com nomes de árvore.
Um pouco adiante, percebi que a estrada de ferro passava sob uma velha ponte e vi que aquele seria um bom lugar para uma emboscada. Continuei andando até chegar a cerca de 50 metros da ponte.
• Pode sair pessoal, eu sei que vocês estão aí – Eu gritei convicto, mas sem certeza.
Para minha surpresa, eles saíram mesmo e um homem alto que estava entre eles falou.
• Meu chapa! Acho melhor você seguir ouro caminho que esse aqui já é nosso
• Quer saber? Eu vou continuar por aqui mesmo – eu respondi
• Se manda meu chapa senão vai levar porrada.
• Nem tenta! Hoje eu já matei um e se for preciso mato mais.
• Chega! Porrada nele – disse o homem velho enquanto corria em minha direção. Os outros três o seguiram.
Tirei a arma da cintura e apontei na direção deles. O homem alto estancou e os outros três pularam no mato e se esconderam.
• Acho que os seus amigos te deixaram na mão - eu disse rindo e ainda com a arma em punho
O cara me olhava meio apreensivo, mas não fugia. Dei uma boa olhada nele e percebi que era só um sujeito tentando escapar com a família. As mulheres eram visivelmente suas esposa e filha e os outros homens deviam ser parentes ou amigos. Senti que não precisava ter medo.
o Escuta aqui – eu disse – pode até ser que eu me arrependa, mas eu sou de paz. Não estou a fim de fazer mau pra ninguém.
o Eu vi você matando o Lúcio – disse um cara jovem que estava saindo de traz da moita
o Eu acho que matei dois hoje, mas eu nunca havia machucado ninguém antes. Eles eram seus amigos? Eu perguntei
o O cara que você bateu na cabeça, eu conhecia. Ele era um viciado lá na rua em que a gente morava, mas não fazia mal pra ninguém.
o Eu não sabia. Ele tentou roubar minha mochila e eu tive que me defender.
o Não pareceu não. Quando ele já tava caído, eu vi você arrebentar a cabeça dele.
o Já disse, eu não queria fazer aquilo, mas num dia como hoje meu chapa. Não dá pra vacilar. Vocês mesmo não queriam me pegar de surpresa na ponte?
Houve um silêncio e eu olhei profundamente nos olhos do homem alto enquanto me aproximava, ainda segurando a pistola. Tentava fazer com que ele entendesse que eu não queria fazer mal. Quando cheguei a uns cinco metros dele, eu o ouvi dizer:
o Abaixa a arma. Nós não estamos armados
o Vocês são muitos – eu respondi
o A gente não quer briga
Guardei a arma na cintura, me aproximei e estendi a mão, que ele aceitou. Logo em seguida os outros homens se aproximaram e nós nos cumprimentamos e fomos andando em direção às mulheres.
o Sabe - Eu disse - acho que é melhor a gente sair da estrada de ferro. Daqui a pouco vai chegar Mogi das Cruzes e eu acho que vai ser barra pesada atravessar a cidade.
o Pra onde então? - Disse o homem alto
o Vamos andando em direção ao norte – Eu peguei minha bússola e localizei onde estávamos no mapa - Se a gente for por ali vamos passar por perto de Santa Isabel e pelo caminho é quase tudo chácara e sítio.
Ele demorou pra responder, mas por fim concordou. Fomos caminhando pelo meio de algumas pastagens, hortas e pequenas ruas. Quase não víamos ninguém no caminho e na maioria das vezes, as pessoas nos viam e se escondiam em suas casas. Ao anoitecer começamos a procurar um lugar para pernoitar e felizmente encontramos.
Olhei para o sudoeste, onde ficava São Paulo e não havia mais um cogumelo no céu. A Nuvem negra, sob o sol poente era acinzentada e meio marrom. O vento a levava para oeste, para os lados de Osasco e Barueri. A nuvem indo para outros lados, matar outras pessoas, mas nós ainda não estávamos garantidos, Pode haver outras e o vento ainda pode mudar. Pelo menos eu não estava vendo nuvens de chuva.
Olhei para a nuvem negra e fiz uma prece de agradecimento, pela vida que eu sentia pulsar dentro de mim, como nunca antes.