Uma nuvem que estava iluminada e outra que era negra

Eram quatro horas da manhã e eu não conseguia dormir. Havia algo na insônia - Sabe como é! - parado na cama e sentindo o corpo meio frio e aquela preguiça de puxar o cobertor. Nada pra sentir, nem bem, nem mau, nem dor, nem gozo.

Noutras vezes a insônia me deixava nervoso pensando que em breve eu ia levantar e ir cansado e sem vontade para o trabalho, mas naquela noite eu não estava nervoso, a insônia não me incomodava e na verdade eu não sentia sono nem cansaço. Estava de fato me sentindo muito bem, e era isso que me incomodava. Eu não gosto de me sentir bem

Meu costume de olhar para fora da janela me alertou que naquela noite alguma coisa não era a mesma. Olhei e vi nuvens no céu escuro. As nuvens pareciam iluminadas e de alguma maneira imprecisa a cor das nuvens me era desconhecida. Não! Isto não é verdade, eram nuvens brancas como todas as que eu conhecia, o erro estava na hora. De madrugada as nuvens deveriam ser difíceis de enxergar e aquela enorme nuvem no céu era nítida, espalhafatosa, brega no brilho branco e indecente.

Meus olhos agora percorriam meu quarto com maior atenção e ali eu podia ver todos os móveis e até meu reflexo no espelho da penteadeira. Definitivamente havia algo estranho, mas eu parecia satisfeito com aquela estranheza, sentia-me feliz por estar vendo algo diferente, longe da monotonia de acordar todas as manhãs, tomar banho, escovar os dentes e toda aquela porra chata que consegue fazer da vida algo que parece não valer a pena.

De onde vinha tanta luz? O que estava iluminando o céu daquele jeito?

Eu não queria olhar pela janela e descobrir que era apenas mais um holofote publicitário, daqueles que anunciam inaugurações de shopping centers e supermercados. Minha cama era o lugar certo para ficar. Dali eu via a luz que não deveria estar vendo, dali eu via o quarto claro que deveria estar escuro.

Não! Eu não queria saber de onde vinha a luz, eu ficaria deitado e usaria minha imaginação para construir a luz conforme ela deveria ser, num mundo mágico e sem monotonia, num mundo onde as coisas são sempre tão constantemente diferentes e surpreendentes, num mundo onde o sol não nasce de manhã. Deixaria minha imaginação seguir o caminho que a luz guiasse.

Olhei novamente a nuvem e pude ver que ela se movia e se deformava no céu de uma maneira pouco usual, não era nada tão diferente assim, mas se movia mais rápido do que eu estava acostumado a olhar. Mesmo agora, a nuvem já estava a meio caminho de fugir da minha janela e ir embora para sempre levando consigo a sua luz encantada que iluminava o meu quarto. Fiquei assustado e com vontade de ir até a janela perseguir minha querida nuvem luminosa, mas logo percebi que persegui-la seria como mata-la, seria o fim da minha bela e querida nuvem imaginária, substituída por algum maldito holofote.

Fiquei na cama, olhando a janela e ainda sem nenhuma idéia sobre a origem e destino daquela nuvem. Enfim deixei de preguiça e comecei a exercitar a minha imaginação, mas o diacho é que eu não sou muito imaginativo e não me vinham idéias sobre o origem da nuvem luminosa. Minha nuvem foi embora e eu não consegui dizer seu nome e mesmo assim não fiquei triste. Logo depois entrou uma outra pequena nuvem diante da minha janela e ela também estava com pressa e também era luminosa. Foi então que eu percebi que aquela luz da nuvem, certamente um reflexo, não poderia se originar num daqueles malditos holofotes. A luz se espalhava por igual, por toda a nuvem. Lembrei-me da nuvem grande e percebi que mesmo aquela nuvem enorme estava completamente iluminada e não com um foco de luz como aqueles que se chocam contra as nuvens quando os tolos anunciam as coisas belas que eles querem vender.

Que maravilha! Felicidade como a muito eu não sentia, minha primeira teoria de coisa mundana e comum para explicar a luz que habitava a nuvem e clareava meu quarto havia caído por terra. Meu pensamento lógico e meu poder de dedução estavam escuros e perdidos diante da linda luz que iluminava meu quarto.

Mas o pensamento não é coisa com a qual se deva brincar. Não! Meu pensamento percebeu o gozo do meu "ser", que contemplava a humilhação da lógica diante dos fatos concretos e inequívocos da magia que habitava o exterior do meu quarto. Meu "ser" sabia que a luz não vinha de um holofote, e eu poderia agora imaginar as fadas e anjos e discos voadores pairando logo ali atrás do prédio onde eu morava.

Naquele breve instante de vingança, meu "ser" foi maior que meu pensamento e eu me senti completo como uma criança que tem certeza que o mundo é ao mesmo tempo verdadeiro e mágico. Mas meu pensamento, - É! – este não ficou quieto como devia, começou a olhar a luz e buscar sinais de normalidade, tentando destruir a mágica que havia se estabelecido tão brevemente enquanto os anjos e os discos voadores voavam atrás do meu prédio.

Mesmo com medo de destruir o meu delírio, meu pensamento e meu "ser" perceberam que a luz que iluminava a nuvem bruxuleava como a luz das fogueiras. Não exatamente assim, mas tremia um pouco e as vezes havia uma leve mudança, muito sutil, de tonalidade em algum cantinho da nuvem.

Meu pensamento começava a formular uma nova teoria, mas desta vez hesitava, minha razão lógica parecia temer que a verdade seria um delírio maior que o sonho.

Por mais que eu procurasse na minha memória de homem inculto, não encontrava uma resposta para luzes que bruxuleassem sem fogo e por isso meu pensamento acovardado buscou a nuvem, preparado para perceber que aquele bruxulear era uma peça mentirosa do meu "ser" tentando enganar-me e fazer nascer os anjos e os discos voadores.

Para meu absoluto deleite e para horror da minha mente lógica, a nuvem estava lá, iluminada e ainda dançando bem suavemente. Não havia dúvida, a luz mudava entre o amarelo e o vermelho, passando pelo laranja, mas tudo tão sutilmente que era difícil perceber. Esta nuvem também caminhava rapidamente para o fim da esquadria da janela e em breve iria desaparecer.

Meus olhos a seguiam e ao mesmo tempo, meu pensamento se atreveu a formular algo que parecia não caber na sua lógica sensata.

Que tipo de fogo ilumina as nuvens por todo o céu?

Tinha que ser um fogo enorme, um fogo que só o inexplicado explica, um fogo de fadas e anjos irados ou enormes discos voadores que se espatifam contra o chão. Enfim, a verdade parecia estar do lado do meu "ser", daquele "ser" que queria ver algo de novo sob o sol, daquele "ser" que queria transgredir as leis da física e voar tão rápido que chegasse num instante ao passado para poder habitar outra vez os universos mágicos e sensatos que eu construí na infância.

Meu pensamento estava confuso e isso me alegrava pois eu acreditava que havia finalmente um mistério para desvendar. É claro que eu estava com medo de ir até a janela e perceber que aquela luz linda e inexplicável sucumbiria diante de uma explicação trivial e corriqueira e que logo em seguida o sol nasceria estúpido no horizonte, como fazia estupidamente todo dia.

Meu pensamento, traiçoeiro como sempre, criou nova força e resolveu me dizer alguma coisa tola do tipo: “Para de bobagem meu chapa, vai até a janela e olha, depois disso a vida volta ao normal.”.

Não resisti às sugestões de canalhice do meu pensamento. Levantei e cheguei devagar na janela do meu apartamento no 18º andar.

A explicação era simples e obedecia todas as leis da física e em breve o sol nasceria no horizonte. Lá estava ela! tão concreta e verdadeira como os postes na avenida. Finalmente a esperança.

Ao longe, para além da Avenida Paulista estava sol no chão. Tudo ardia em chamas enormes. O fogo se espalhava por toda a cidade. A luz que se refletia nas nuvens era a luz da cidade queimando.

Aquela visão confirmava que as leis da física ainda valiam e que a luz que bruxuleava nas nuvens era reflexo da maior fogueira já feita, sendo assim meu coração inconstante abandonou pra sempre a minha linda luz, que agora já não tinha mais mistérios. Era somente o reflexo das chamas da cidade.

Meu pensamento estava ao mesmo tempo aliviado por encontrar naquela hora uma explicação simples e plausível para as nuvens bruxuleantes e estava também intrigado:

Porque a porra da cidade está pegando fogo?

Com uma volúpia quase sexual, meus olhos percorreram a cidade incendiada na distância, eu estava fascinado, finalmente meus olhos viam algo. Viam a esperança de encontrar o inesperado, o fogo ardia vermelho, branco e amarelo sobre prédios de vinte andares e torres de televisão.

Tentei acionar o interruptor da luz do quarto e nada se acendeu. Olhei em volta, para mais perto e para a rua da minha casa. Não havia nem sinal de luz elétrica, mas havia pessoas atônitas paradas na calçada, não havia carros na avenida lá embaixo, mas havia pessoas atônitas com o olhar fixo na cidade, olhando as chamas.

De repente eu vi na janela do prédio em frente, uma senhora apontando o dedo para o oeste e foi então que eu entendi tudo, ou o que eu pensava ser tudo.

Lá estava, linda como eu sempre imaginara, uma nuvem muito distante, mas enorme, subia negra e quase invisível por trás das chamas da cidade. Minha nova amante, a nuvem negra, era brutal em sua majestade, ligando a terra ao céu numa coluna reta e vertical de fumaça, quando chegava perto do céu se abria num maravilhoso guarda-chuva.

Naquele momento eu soube que meu breve caso com a linda nuvem iluminada era somente um aprendizado para o meu caso de amor com a nuvem negra que se escondia na noite por traz das chamas que escondiam sua nudez.

Aquela nuvem, saída do ventre de uma bomba atômica, em breve desceria sobre toda a minha vizinhança trazendo a morte radiativa. O mundo já não era mais o mesmo e tudo finalmente tinha mudado.

Sim. O sol nasceria pela manhã, mas eu não sabia se eu ainda estaria vivo para vê-lo. Se eu quisesse viver mais alguma hora, teria que ser forte e ser esperto. Eu não conseguia imaginar o motivo pelo qual alguém bombardearia minha querida, velha e tola São Paulo, mas isto já não importava. Eu teria que decidir rapidamente se eu queria viver e depois disso fazer o possível para conseguir ver outra noite chegar.

Neste momento, em que uma outra luz começava a rivalizar com as chamas da cidade, enquanto o sol, lá da terra dos antípodas mandava seus primeiros raios, eu pude ver mais dois cogumelos atômicos numa distância ainda maior. Não sei dizer porque, mas meu "ser" sabia que aquilo não era só em São Paulo e que o mundo todo deveria estar passando pela mesma coisa naquela hora.

Meu pensamento me fez pensar, se aquilo é um cogumelo atômico, o que aconteceu com a explosão e o barulho e os tremores e aquela luz infernal. Isso não faz sentido. Meu "ser" que agora estava sereno e se sentia vitorioso respondeu sem malícia. O mundo agora é dos anjos e dos discos voadores e gnomos e do coelho da páscoa, as coisas não precisam mais fazer sentido.

Decidi que queria viver e que agora o mundo valia a pena, agora eu não sabia o que me esperava no futuro e queria descobrir. Olhei o céu e a direção do vento e tracei um plano, fiquei feliz de ver meu pensamento reencontrar meu "ser" e permiti que ele me guiasse até noutro lugar onde eu pudesse viver mais um dia, e quando esse dia acabasse eu me perderia outra vez nos devaneios. Essa era a única coisa sensata a fazer.