A Odisseia de uma Mente Imortal (A Experiência pt.3)

A morte não é o fim. A vida não é o começo. Cem anos de uma vida atribulada e rica em experiências não passam de um breve instante, insignificante, em relação à História do Universo. O próprio ciclo da vida é finito e chegará ao fim junto com os recursos que a sustentam. Um destino inescapável, do qual o próprio Universo será vítima quando sua energia em movimento for anulada pela inércia.

No entanto, há um fenômeno peculiar que atinge a consciência de alguns indivíduos. A dádiva ou maldição de não sucumbir nem mesmo ao Eterno Retorno de Nietzsche. O poder de preservar fragmentos da existência de sua alma para renascer junto ao próximo ciclo, desafiando indefinidamente as leis universais. De fato, as memórias e até mesmo a personalidade de alguns indivíduos são tão potentes que conseguem resistir até ao Inferno e emergir triunfantes.

Para além da Metafísica, o eterno debate entre existência e essência havia sido estabelecido há tempos, mas somente Alan Mclife Jr. tinha a resposta. Tivera uma vida curta, porém agraciada com uma mente lúcida e uma existência intensa. Desde pequeno, tinha a impressão de que a vida era um ciclo interminável e sua existência era especial.

Na verdade, muitos o julgavam louco, mas Alan era capaz de jurar que se lembrava de fatos antes mesmo de ter sido gerado pelos seus pais, o simpático casal Mclife. Memórias do nascimento, memórias de outras linhas temporais. Ele se lembrava com nitidez enquanto estava na tenra idade, mas suas lembranças foram ficando cada vez mais nubladas até chegar à vida adulta. Apenas uma incômoda sensação jamais o abandonava: o sentimento de que tudo pelo qual estava passando já aconteceu.

A urgência que sentia em causar alguma mudança na sua própria história era em vão, já que os déjà vus constantes aconteciam quase que imediatamente após a realização de suas ações. Havia tentado mudar tudo bilhões e bilhões de vezes, como numa simulação de um programa de computador. Mas, os algoritmos estavam predefinidos. A cada ciclo que repetia, o resultado acabava sendo o mesmo. Mesmo quando parecia que conseguia se antecipar a algum resultado indesejado, os arredores mudavam as regras de acordo com a situação. Era como se o próprio Universo arranjasse as coisas de tal modo que fosse impossível se desviar do Destino, seja ele qual fosse.

Em um momento determinado a vida de Alan chegara ao fim. Ele faleceu há exatos 2.735 anos, no ano de 2024 - deste ciclo. Esta não foi a sua primeira morte e não seria a última. A diferença entre ele e as outras “almas” era que a sua mente sobrevivia sempre, mesmo após o corpo sucumbir e definhar. Sua forte vontade o fazia resistir à morte definitiva, ao descanso eterno e o condenava, ao invés disso, a ter uma consciência imortal, a qual deveria assistir ao fim e ao reinício dos tempos infinitamente.

“Os Essencialistas venceram”, pensava Alan pela 207.184.236ª vez. Mal se recordava de como formular palavras mentalmente. Apenas intuía. Mas, mesmo este processo era doloroso e martirizante. Não conseguia mais formar imagens ou associar sons com precisão. Sua mente se deteriorava e fazia o mínimo de esforço possível para tentar fazer o tempo passar.

Mas ele não passava. Se ele pudesse contar todos aqueles milênios que julgava ter ficado lá pairando no abismo negro que define os limiares da existência, Alan se depararia com a desesperadora verdade de que mal se passaram alguns segundos na Terra. E também se lembraria de que o tempo de vida do Universo como um todo era de trilhões e trilhões de anos até a entropia devorar a sua última estrela.

Com uma percepção de tempo tão distorcida e sem a possibilidade de qualquer ação material, quantas mentes sobreviveriam a esta prisão aterradora? Havia algo que justificasse uma punição tão sádica? “Não”, pensou Alan. Esse pensamento pressupunha um carrasco cósmico solitário que desejava compartilhar do seu sofrimento eterno com meros mortais, seus brinquedinhos com os quais aplacava o tédio. As pequenas crias indefesas de sua imaginação pérfida.

“Não”, pensou, não se renderia a este pensamento reconfortante. Quem estava sozinho era ele e o único que deveria suportar o peso da Eternidade era ninguém menos que Alan Mclife! O jovem perscrutador das verdades mais incólumes do Multiverso! Havia fracassado nesta linha do tempo outra vez? Sim, mas com certeza na próxima iria dar um jeito de quebrar o ciclo de uma vez por todas! E assim pensava Alan, para logo em seguida entrar em um desespero sufocante, com uma vontade aterradora de gritar, mas descobrir que não era capaz de emitir mais nenhum som. E mesmo que pudesse, jamais seria ouvido por ninguém.

Em um momento indeterminado no futuro, tudo estava escuro e vazio quando de repente um sentimento nostálgico tomou conta de seu ser. Mclife Junior se lembrou de algo que não sabia mais se era real ou inventado por sua mente enlouquecida. Não podia nem afirmar de qual linha do tempo era aquelas imagens que repentinamente inundaram o seu ser e entorpeceriam os seus sentidos caso ainda os tivesse. Era uma garota de cabelos louros cacheados, olhos cor-de-mel e um pingente simples que se destacava por cima de um vestido azul bordado. Quem era ela? Será que já tinha a visto antes? Haviam se amado? Talvez se casado? Tudo era como um sonho. E quando se está sonhando, como ter certeza de que aquilo que vemos é a realidade ou se estamos presos numa ilha artificial criada por nossa própria mente?

Alan lembrou-se de ter lido uma história oriental sobre um homem que sonhava que era uma borboleta que sonhava que era um homem. Qual deles era o verdadeiro personagem a sonhar? Aquilo o entretia. Intrigava. Pensou estar progredindo no mistério do seu próprio problema particular enquanto a mente fervilhava de teorias e ideias maravilhosas, até que se deu conta de que não fazia a menor diferença divagar sobre o que quer que seja. Independente de quais conclusões possa tirar a respeito de qualquer coisa, ainda assim deveria esperar, esperar e esperar.

Alan havia passado tanto tempo inerte que se tornara parte do ambiente. Havia se esquecido há bilhões de anos atrás de que era um ser vivente de outrora; esquecera-se que era capaz de pensar. Tudo era uno. Ele e o restante do mundo. Alan não era mais Alan. A integridade de sua mente se desvanecia em meio a solidão do espaço. Nos abismos da inexistência quando a loucura se apoderou e deteriorou a sua mente por completo, era como se tivesse de fato sido apagado. Apenas em momentos específicos quando ocorria algum fenômeno cósmico relevante uma fagulha de lucidez o despertava de seu sono artificial. Mas, era por um momento muito breve. A sua consciência imortal que tentava resistir a qualquer custo, logo se entregou, involuntariamente, enquanto morria junto com a última chama de vida do Cosmos.

A morte do Universo era deprimente e desalentadora. Era como presenciar a própria morte de um ponto de vista privilegiado. Quando nos deparamos com o fim de algo é impossível não termos nossa consciência abalada, por mais quebrada que esteja em decorrência da passagem vagarosa do tempo. Esse momento da história era um dos únicos capazes de fazer emergir a consciência ou o que sobrara dela, por um breve período, e fazê-la voltar a ver a si mesma como algo além de tudo o que há. Eram como pequenos lampejos de vida e ordem em meio ao caos, evocados pela dor inexprimível da perda.

Pontos de luz no céu. Escuridão. Sombras. Luzes. E, de repente, nada. Um frio sobrenatural afligia sua mente como um fantasma que se encostava aos vivos a fim de roubar sua energia vital. Esses “Espíritos” eram tão irreais quanto o dito frio que o acometia, já que não tinha um corpo para sentir assim como não podia usar qualquer um dos seus sentidos físicos. E, no entanto, ele apreendia essas sensações de uma forma única que não podia ser explicada em termos humanos. Era como se estivesse conectado ao código base por trás do Universo e conseguisse interpretar esse código. Era informação, na sua forma mais pura.

O tempo era finito, mas como a mente imaterial não era afetada da mesma forma que a matéria, ele teria que resistir a toda a Eternidade até que a recente Morte do Universo velho desse origem ao Nascimento do Universo novo. A gestação do novo mundo até a Aurora da Vida na Terra levaria mais uns bilhões de anos. O fim de tudo não era nada de impressionante enquanto fenômeno. Mas, o início dos Tempos era um espetáculo indescritível. Uma explosão de energia que surgia do “nada” numa cacofonia de cores sob o som mudo de um estouro inimaginável. Não importava a linha do tempo, aquele momento era sempre mágico, de tirar o fôlego.

Tudo o que conhecera chegou ao fim e tivera um novo começo. O novo Universo estava amadurecendo e uma nova Era começava. Galáxias e Sistemas estelares se formavam a partir da poeira cósmica; buracos negros já davam indício de que aquele Universo também estava com os dias contados. Bilhões de planetas potencialmente capazes de abrigar vida se desenvolveram e um deles, que viria ser habitado por forma de vida inteligentes dentro de poucos bilhões de anos, se chamaria Terra. O planeta natal de uma raça inteligente que se autoproclamaria Raça Humana.

Um dos indivíduos dessa raça, chamado Alan Mclife conheceria uma fêmea de sua espécie com o nome de Ana Stelford. Os dois se apaixonariam e dariam forma ao seu amor na forma da gravidez de um menino, que nasceria com o mesmo nome do pai. A essência de sua consciência seria novamente materializada com pequenos fragmentos remanescentes das informações acumuladas ao longo de toda a sua jornada. Mesmo na barriga de sua mãe, o nosso querido Jr. já arquitetava um plano de escapatória daquela prisão de carne. Suas memórias ainda não voltaram, mas o seu instinto de sobrevivência era extremamente poderoso e imperativo.

Querem saber se o seu destino será diferente desta vez? Será que Alan quebrará o ciclo de agonia eterna que o afligia indefinidamente? Não há como saber. Afinal de contas, quantas vezes vocês acham que já escrevi esta mesma história que está sendo lida por você neste exato momento? Por acaso, acredita que Alan é o único que está nesta prisão?

Arthurx
Enviado por Arthurx em 13/02/2024
Código do texto: T7998425
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