A Ruptura

William Davies, um aplicado estudante de neurociência, conversava com Ava Brown, a aluna do curso de história africana que conheceu na faculdade onde eles estudavam. Will se mostrava esperançoso, ao passo que Ava exprimia sem filtros sua total descrença. Quando William afirmou que não só as memorias, como também a consciência das pessoas poderia ser transferida para dentro da máquina, mesmo transparecendo em expressões nada suaves o quão nítida era sua indignação, Ava julgou desculpável. Eles estavam na festa que comemorava a conclusão de seus respectivos cursos, e assim como todas as pessoas naquele ambiente, encontravam-se ligeiramente foras de si, com doses etílicas um tanto elevadas.

Ava seguia implacável, era categórica ao afirmar que nada disso poderia acontecer. Enquanto Will, um ser resoluto, dizia ser tudo uma simples questão de tempo. Por considerar a palavra simples um tanto mal empregada, Ava arfou em desdém, mas antes que pudesse proferir quaisquer argumentos opostos, foi interrompida por uma série de palavras codificadas em “Will bêbado”, idioma pelo qual ela cultivava um orgulho secreto, já que fora capaz de adicionar ao seu vocabulário após longos anos de frases como “concordo pontualmente, mas gostaria que me repetisse a ideia geral.” inseridas estrategicamente em diálogos do gênero.

- Você não tem visto os noticiários? Estamos muito mais perto do que costumávamos estar! Mês passado conseguimos prever os impulsos sinápticos do cérebro de um chimpanzé em uma variada série de estímulos. Uma vez que - Disse William.

- Noticiários? Quem usa essa palavra? Você tem o quê? 40 anos? - Ava interrompeu vingativa.

- Uma vez que conseguirmos, com precisão, uma compreensão nessa escala de um só cérebro humano, teremos boa parte do que é necessário para vislumbrar um futuro onde pereceremos como deuses perante esse misterioso universo. - Prosseguiu William, um tanto megalomaníaco.

- Você fala como se tido parte em tudo isso, até onde sei, você não era mais que o estagiário do café naquele laboratório. - Disse Ava, um pouco mais sádica do que pretendia soar.

Inabalado pelas críticas de Ava, Will esboçava sua típica expressão de divertimento, aproximando-se ainda mais dela, aperta com carinho suas bochechas enquanto diz: - Acredite, isso também é questão de tempo. Semana que vem sairá o resultado daquela vaga para o setor de programação neurolinguística e vou fazer questão de esfregar a lista com o meu nome nessa sua carinha comunista. – Disse Will

Desconsertada, ela retoma com mais seriedade: - Eu não estou duvidando de você, Will. Mesmo que tudo isso fosse possível e não apenas um grande desperdício de dinheiro e do tempo dos pobres primatas, eu me preocupo com essa “união conveniente” entre corporações focadas em seus lucros e intervenções cientificas que, por Deus, eu espero que realmente estejam aqui para ajudar as pessoas. – Disse ela.

- E por que não estariam? Pensa bem Ava, mesmo que toda a verba destinada as pesquisas da Neurable fossem aplicadas para solucionar os problemas sociais que você considera mais urgente, essa medida não seria capaz de surtir quaisquer efeitos que não fossem substanciais, momentâneos. O caminho que a ciência moderna vem percorrendo diz respeito a soluções, desfechos. Você e eu possuímos a honra de estar vivendo numa época em que a superação da morte e do sofrimento estão deixando de serem meros devaneios da filosofia para se tornarem potenciais realidades cientificas. Em algumas décadas, estaremos rompendo um por um dos limites que aprisionam o cérebro humano, tudo graças a tecnologia de preservação da consciência que estamos elaborando na Neurable.- Disse Will.

- Acontece que o cérebro humano é nossa barreira de liberdade, o ponto mais primordial da nossa privacidade enquanto indivíduos, quando vejo uma empresa como a Neurable prometendo “preservar” a consciências, acho um tremendo absurdo que isso não esteja fazendo o mundo inteiro entrar em estado de alerta. Eles estão caminhando por um território completamente inaceitável, porra! Já passou da hora de desenvolvermos conceitos mais robustos de liberdade cognitiva. – Disse Ava.

Não há o que se falar em liberdade em um mundo tão frágil. Pensou William, mas permaneceu em silencio. Ao invés de articular seu ponto de vista em voz alta, decidiu guardar para si tudo que ainda tinha a dizer, mantendo um olhar sereno enquanto admirava cada detalhe da expressão de determinação presente no rosto de sua amada. Como bem a conhecia, ela poderia passar a noite inteira defendendo com afinco seu ponto de vista. E àquela altura da festa, apesar de admirar aquele lado da personalidade de Ava, não havia nele energia alguma para prosseguir com o embate. Anos mais tarde, Will acordaria em mais um dia de um futuro distante, carregando o peso de existir em uma realidade cruel, onde o pior desfecho para aquela noite não havia sido apenas uma seria discussão sem sentido entre ele e Ava.

[...]

Com a inevitável dificuldade causada pelas dores matinais que a “boa idade” o trouxe, O Sr. William Davies aplicava um esforço ineficaz para permanecer deitado enquanto tentava desligava o despertador de sua assistente eletrônica. Ele mesmo, na noite anterior, havia desativado seu comando de voz e tomado o cuidado necessário para que ela estivesse posicionada milimetricamente fora do seu alcance, ao lado de algumas anotações acerca do uso de nano robôs no tratamento da neuropatia e embalagens de barrinhas de proteína, alimento que ele consume diariamente em um ato um tanto obsessivo, afinal, é provável que o abandono total desse hábito seja o último fio que o separa da culpa por levar uma vida sedentária.

- Bom dia, Will! Finalmente chegou terça-feira! Tenho certeza que terá um ótimo dia. - Disse a voz robótica de sua assistente pessoal antes de começar a berrar um solo estridente da banda The Doors. Aquela melodia era familiar, Will podia jurar que há alguns anos atrás a teria considerado nostálgica. Infelizmente, naquele dia, ela cumpriu apenas com o propósito de relembra-lo o quão longe ainda se encontrava do consumo desmedido de whisky e das caminhadas solitárias no parque, atividades que com frequência compunham seus finais de semana. Ao menos hoje, talvez exista um motivo. Pensou ele, instantes depois, enquanto segurava sua escova de dentes frente ao espelho.

Se desconsiderasse o âmbito profissional, havia uma margem segura para afirmar com todas as letras que William era um homem desleixado em sua vida, seja por ausência de vaidade ou mesmo uma dose mínima de ânimo para encarar sua existência, o autocuidado certamente vinha sendo um habito negligenciado por ele durante os últimos anos. Naquele momento, ele estava diante da imagem de um homem que aparentava ter muito mais que trinta e cinco anos de idade. Seus cabelos grisalhos, suas rugas de estresse e expressão de cansaço, apresentavam vestígios de uma rotina intensa, e sobre tudo, indicavam o quanto tudo que ele havia passado nos últimos anos tinha impactado em sua saúde física e mental. Enquanto se empenhava para esboçar uma expressão de alegria que soasse minimamente natural, William tentava resgatar, nas partes mais profundas de sua mente, uma chama que há muito tempo fora apagada, precisamente 15 anos atrás, desde o acidente de carro que resultou na morte de sua namorada.

Mais tarde, enquanto preparava o seu café da manhã, composto por alguns pedaços de pizza, um copo de refrigerante diet, e claro, duas barrinhas de proteína. Will foi acometido novamente pela sensação de vazio que o acompanhava como uma sombra durantes aqueles anos de sua vida. Tentou ligar a TV da sala para que pudesse se sentir menos sozinho, e após desempenhar um esforço considerável para fazer as pilhas do controle funcionarem, acabou por se arrepender de tudo quando percebeu o conteúdo da matéria noticiada pelo jornal da manhã.

A reportagem falava a respeito dos protestos que estavam sendo realizados frente à sede do grupo Neurable, os manifestantes falavam a respeito da falta de transparência em determinados projetos e questionavam a quantidade de verba que o poder público estava destinando a uma pesquisa em especifico, cujo a viabilidade jamais havia sido comprovada, e mesmo após décadas de esforço continuo, a Neurable ainda não havia apresentado sequer um resultado concreto, referindo-se as pesquisas de transferência e preservação de consciência. E mais uma vez, vou ter que estacionar à mais de 100 metros do laboratório. Pensou William.

Mesmo após décadas entrando e saindo daquele lugar, Will era surpreendido pelo tamanho do centro de pesquisas da Neurable sempre que o via. Como monstro colossal de cor metálica, sua silhueta erguia-se ruidosa perante os demais edifícios que arranhavam o céu de Nova York. Uma estrutura circular, de quase 80 metros de altura, considerada por todos os cientistas um local sagrado, não como um templo - afinal, ainda eram cientistas - mas como uma espécie maternidade, diretamente responsável pelo nascimento e desenvolvimento das principais ideias que componham o cerne da ciência moderna. Pelo seu formato e tamanho, dava pra dizer que o lugar mais parecia um estádio de futebol do que um aglomerado de laboratórios.

O grande e sofisticado centro de pesquisa não só era a representação física de uma missão importante, como também havia sido uma espécie de prisão voluntária para Wiliam nos últimos anos. Aquele homem de meia idade, portador de uma aparência descuidada e movimentos fugazes, que volta e meia poderia ser visto andando de um lado para o outro de sua sala. Testa franzida, olhos cerrados e expressão de confusão, eram traços típicos de sua linguagem silenciosa, indicavam seu grau de imersão em algum problema complexo, e para quem o conhecia como Molly, até mesmo o quanto ficaria irritado caso fosse interrompido sem que houvesse um motivo plausível para isso. Nos últimos 25 anos, a figura carrancuda do departamento de programação neurolinguística fora casado apenas com seu trabalho, dedicando-se integralmente as suas pesquisas em uma ética de trabalho quase tão inflexível quanto a de uma abelha operária.

Sem a ajuda dos standwalkers, eu provavelmente levaria um dia inteiro para percorrer o lugar de uma ponta a outra. Pensou ele, enquanto estacionava seu carro próximo a uma loja de ferramentas que ficava à uma distância de três quadras do seu destino e tentava afastava de seus pensamentos a hipótese cansativa de passar um dia inteiro em movimento. O céu estava cinza naquela manhã. Nuvens densas e obscuras que se agrupavam umas sobre as outras nas camadas mais baixas da troposfera novaiorquina formavam uma espécie de cortina acinzentada cobrindo cidade para além do que seus olhos eram capazes de alcançar, como se todo o território daquela metrópole fosse uma espécie de mobília antiga, e em determinados períodos do ano havia de ser coberta afim de contornar o surgimento poeira e a ocorrência do desgaste natural.

A paisagem densa que formava a atmosfera cinza da qual se originava todo o frio, apresentavam-se como uma força silenciosa da natureza, integrando cada elemento do amanhecer urbano para compor a aurora sombria e tentaculosa que envolvia a cidade de ponta a ponta. A mensagem era clara, as manhãs de sol resplandecente haviam chegado ao fim, dando lugar a um inverno impetuoso que prometia congelar ainda mais o coração da cidade. Assim que saiu do carro, Will foi tomado de seus devaneios e posto de volta na realidade quando um vento bateu forte contra seu rosto. Naquele momento, em o ar gelado parecia adentrar cada espaço de costura da sua roupa, cogitava que aquela sensação poderia ser semelhante a ter mil agulhas perfurando sua pele.

No entanto, as eventualidades climáticas não pareciam abalar a multidão de protestantes que se agrupava como um exército de formigas nas redondezas do local vociferando em separação silábica coisas como “Queremos mais transparência!” e “Boicote a Neurable!". William podia jurar que o número de pessoas havia triplicado desde a matéria noticiada um pouco mais cedo. Buscando evitar quaisquer conflitos que ser reconhecido ali lhe poderia causar, ajustou o capuz de seu moletom, de modo que cobrisse parte de seu rosto, abaixou sua cabeça e seguiu se esquivando com cuidado pela multidão. Tão logo, estaria próximo o suficiente da equipe policial que realizava a “contenção dos ânimos” no local. Para um dos guardas, apresentou disfarçadamente seu smartcard - documento que o identificava como um dos cientistas-chefes da Neurable - além de confidenciar sua participação no projeto de preservação de consciência, principal motivo da tal manifestação. Com sua integridade física intacta, William pode passar pela barreira policial e adentrar o prédio em segurança.

A sede de pesquisas da Neurable conseguia ser ainda mais impressionante em sua parte interna. Não por possuir aparência imponente a qual se espera de uma fortaleza cientifica cujo a missão promete revolucionar os rumos da ciência moderna, mas exatamente pelo motivo oposto. Os corredores que davam entrada a parte externa dos laboratórios que dividiam a Neurable em 3 grandes setores: programação neurolinguística, transferência de consciência e reprogramação genética, poderiam ser facilmente confundidos com um centro comercial qualquer, onde não se desempenhariam atividades mais instigantes que a elaboração de planilhas de controle e o arquivamento de memorandos.

Curiosamente, esse contraste costumava agradar a William, um de seus passatempos favoritos era sentar em uma mesa de bar e perguntar para as pessoas o que elas achavam da Neurable. Lá ele escutava as conspirações mais mirabolantes que elas eram capazes de elaborar “Há pelo menos 50 especies diferentes de extraterrestres lá”, “ Tudo faz parte de um plano para reduzir a população em 80%” eles diziam. A verdade, era que a complexidade da Neurable não estava presente na aparência de suas ferramentas ou local de trabalho, e sim no modo que os experimentos que lá ocorriam eram capazes de mudar drasticamente os rumos da história.

Essa atmosfera comum era parcialmente contrariada pela presença dos standwalkers, plataformas móveis, fixadas magneticamente 3 centímetros acima do solo e controladas por seus passageiros através de um joystick semelhante aos das antigas maquinas de fliperamas. Encontravam-se paralelos aos corredores dos andantes comuns – os que se moviam com suas próprias pernas – e haviam vários deles espalhados por todas as direções da Neurable, proporcionando uma viagem eficiente e silenciosa por toda sua extensão. Viajar em um standwalker era como se estar em uma escada rolante plana e sem degraus, ou em uma esteira ergométrica – sem a parte da atividade física.

Enquanto William se deslocava com os braços cruzados para o local onde realizaria a bateria de exames que daria início a sua experiência como cobaia da transferência de consciência, Molly, a assistente de laboratório robô que ele havia “contratado” após determinadas sucumbências judiciais com assistentes humanos, corria para alcança-lo.

- Bom- tarde, Sr. Davies! Tenho uma ótima notícia. – Disse ela, no momento de transição de 12:00 para 12:01.

- E qual seria? – Ele respondeu rispidamente, sem desacelerar o seu standwalker.

- Se tudo der certo nos exames, poderemos iniciar o experimento imediatamente. Além di- - Disse Molly, acompanhando sem esforço a velocidade do standwalker de Will, antes de ser interrompida pelo mesmo.

- Sim, Molly. Disso já sei. – Disse William.

- E caso não se importe, estou indo pra lá. – Prosseguiu.

- Não é isso. E me escutar sem interromper teria poupado 4 segundos do seu tempo. – Disse ela.

William desacelerou lentamente seu standwalker até que estivesse completamente imóvel.

- Os elementos de compatibilidade nunca estiveram tão condizentes. Todos os fatores neurobiológicos indicam de todas as tentativas até agora, essa pode ser a melhor chance. – Prosseguiu Molly

- Ora mas isso é incrível, Molly. Realmente incrível! Por que não me disse antes?

- Adeus, William. Da próxima vez que nos encontrarmos, teremos muito mais em comum. - Disse Molly.

Após os devidos exames, William foi dirigido para uma sala que nunca havia estado antes, provavelmente ficava uns 8 andares abaixo do nível do térreo. Ainda sim, como qualquer outro laboratório do centro de pesquisas, o local onde tudo seria realizado possuía uma aparência pouco impressionante, se não fosse por uma maca metálica de onde saia uma quantidade considerável de eletrodos e um capacete de alumínio reluzente cujo as bordas eram repletas de pinos e fios coloridos dispostos quase que aleatoriamente, não havia nada muito diferente do que ele já tinha visto.

Lá havia um seleto de cientistas, alguns deles, William só conhecia de vista, outros, nem mesmo tinha visto. E para ele foi explicado os detalhes mais práticos da experiencia. Se houvesse sucesso, o que ele experienciaria em seus sentidos seria como uma simulação do mundo real, mas isento de todos os perigos e implicações que o mesmo possui. Assim, botões foram apertados, algumas alavancas puxadas e fora dado início ao experimento.

Por alguns segundos, no momento em que sua consciência saía de seu corpo, William experimentou uma das sensações mais acalentadoras de sua vida. Sua mente, que por tanto tempo havia experienciado uma turbulência constante, naquele momento, mergulhou em um silêncio profundo.

Quando finalmente despertou, seus olhos se perderam na escuridão. Foi necessário algum tempo até ele se adaptasse e pudesse ver as primeiras silhuetas que apresentavam a atmosfera singular daquele ambiente. Will havia acordado, e estava sozinho no laboratório.

Que porra é essa? Se perguntou.

- Seu corpo. Uma projeção simulada dele, na verdade. - disse uma voz distante.

E de quem é essa voz?

- É nossa William, e também sua. - Dizia a equipe cientifica.

- Estamos nos comunicando através do programa que você elaborou, nossa voz é traduzida para linguagem SQL e a informação que adentra seu cérebro é apenas semântica. Como bem sabe, o que está chegando até você agora, não são palavras da língua inglesa em sua forma propriamente dita, mas a ideia que seu subconsciente estabeleceu sobre cada uma delas. – Prosseguiram.

- Compreendo. Deu tudo certo então. – Dizia William, que havia concluído o projeto de sua vida, e mesmo assim, se sentia completamente estranho.

Conforme se dava conta de sua condição, uma sensação diferente de tudo que já havia sentido se colocava sobre ele, palavras e pensamentos, de súbito, haviam se tornado indistinguíveis. O que o programa possibilitava, na verdade, era uma projeção artificial que não se aproximava de nenhum dos dois. Toda atividade mental desempenhada por ele, assim como cada palavra que surgia em sua mente, parecia estar sendo derramada em um poço sem fundo que esvaia todo o proposito e sentido que elas tiveram, fazendo-o mergulhar em um mar de conceitos conhecidos, cujo a abstração havia roubado toda a sua familiaridade.

Sua percepção de realidade, que instantes atrás era como um solo firme, havia se tornado um trajeto em queda livre por um vácuo interminável. Ao olhar para seu corpo projetado, buscando encontrar alguma familiaridade que pudesse tira-lo daquele transe, William não se sentia mais seu próprio observante, e sim um ente alheio e desprovido de qualquer poder qualificador. Naquele instante, ele já não olhava para si, o seu olhar, na verdade, insidia sobre ele, de um modo tão distante e elementar quanto à luz solar. Quando se mexia, cada movimento que seus membros executavam, por mais que tivessem sido devidamente ordenados pela sua mente, possuíam um aspecto diferente, o deslocamento espacial, assim como a contração muscular proporcionada pelo vai e vem de suas articulações, revelavam uma estranheza gradativa, que se tornava cada vez mais forte à medida que ele se observava.

Era como se sua consciência estivesse trabalhando em outro plano e suas ações pertencessem a um ente longínquo e separado. Todo o cenário projetado do laboratório que estava ao seu campo de visão exalava uma artificialidade desconfortável, e observar cada detalhe daquele ambiente lhe causava o mais profundo pavor. Algo que intensificava tal percepção, era o fato de que aquele não era o seu corpo verdadeiro, mas em uma projeção dele. Assim, por mais que William estivesse em profundo pânico, não havia em suas mãos quaisquer indícios de tremores ou espasmos, e mesmo com a mente em completa desordem, ele sequer sentia seu coração palpitar.

Seus pensamentos soavam como uma voz irreconhecível dentro da sua cabeça, e seu corpo, parecia uma casca mecânica e desprovida de vitalidade. No ápice do desespero, William implorava repetidamente para que o tirassem de lá, tentava convencer a todos de que o experimento havia dado errado e eles poderiam corrigir as falhas e prosseguir de outra forma novamente. Entretanto, não havia espaço para negociação. Os cientistas no laboratório, assim como toda a comunidade cientifica posteriormente, estariam eufóricos. A transferência de consciência havia sido bem sucedida, e a quantidade potencialmente infinitesimal de fatores que fizeram com que dentre todas as cobaias daquele projeto, apenas essa consciência havia sido capaz de ser transmitida para a máquina com perfeição, seria minuciosamente analisada durante as próximas décadas. Nesse cenário, o sofrimento de William era um detalhe irrelevante.