O último adeus

*INICIAR GRAVAÇÃO*

Eu começo essa gravação dizendo que oficialmente sou o último ser humano vivo na terra. Depois que implantaram chips em todos nós para nos vigiar e controlar ainda mais, fizeram questão de colocar telões em todo o

mundo. Todas as vezes que um ser humano morria aparecia em tempo real. Os números despencavam como um avião com seus pilotos mortos.

No começo havia esperança de o número de nascimentos ser maior do que o de mortes. Comecei a me desligar do mundo aos poucos e parei para me conhecer antes de morrer. Assim fiquei por um tempo entre o autoconhecimento e a angústia de se viver na tragédia. Não há nada pior do que a solidão que é forçada.

Eu passei uns dias olhando para o telão que apontava três pessoas vivas em todo o mundo. Desgastado, doente, sempre com febre comecei a sentar em frente ao telão por horas para sonhar. O meu pensamento favorito é que aquelas outras duas pessoas restantes no mundo estavam juntas e curadas. Iriam então ter um filho e o mundo passaria a ter três pessoas novamente. Sei que não vou durar muito tempo.

Um dia estava comendo um biscoito velho e enquanto sonhava com o casal em alguma parte do mundo o telão piscou e apareceu o número um. Os dois sumiram repentinamente. A morte levou minha última esperança e uma dor me veio ao peito tão forte que vomitei todo o biscoito vencido. Algo queimava em meu peito e não era apenas uma reação biológica, era uma dor na minha mente e no meu espírito. Antes quando sonhava em ser o último ser humano da terra pensava em ter saúde e poder fazer muitas coisas antes de morrer, mas aqui estou eu sem forças para andar um quilômetro sequer.

Deus, não sei se podes me ouvir, mas imploro por tua clemência. Minha única companhia nesse momento é minha própria consciência e esse gravador antigo é a única coisa que pode me ouvir e falar comigo. Eu imploro por respostas. Eu pequei? Eu fiz algo de errado? Por que não pude ser o primeiro a morrer? Por que esse fardo de ser o último e ter os últimos pensamentos é pesado demais? Tem alguém aí me ouvindo? Eu preciso de ajuda nem que seja para morrer logo. Quase não ando, quase não como, quase não tenho o que beber. Quase não durmo, quase não funciono mais. O que mais queres de mim, Deus?

Sinto minha energia indo embora e mal consigo acreditar que nos meus últimos instantes apenas um gravador velho pode me ouvir. Estou com saudade dos meus pais e dos meus amigos. Estou com saudade daquele amor que eu não soube amar. Eu queria ter de volta o conforto que nunca soube aproveitar.

Meu peito chora uma dor que não se pode medir. Dos meus olhos nada saem como se fosse uma questão de orgulho partir sem lamentar, mas o corpo não entende que estou lamentando desde que comecei essa gravação. Eu estou sim muito arrependido pelo que não fiz. Parece que a vida foi tão curta afinal.

Eu espero que esteja me ouvindo, Deus. Vou fechar meus olhos e acreditar que o Senhor levou todos os que amo para perto de ti e todos celebrarão minha chegada. Eu não me importo que seja no inferno, Deus. Eu só quero estar com as pessoas que eu amo. Eu vou morrer com essa esperança depois de travar uma guerra contra as expetativas durante toda a minha vida.

Estou indo, pessoal... Eu já não existo mais...

*FIM DA GRAVAÇÃO*

Gabriel Cordeiro Machado
Enviado por Gabriel Cordeiro Machado em 19/03/2020
Código do texto: T6891227
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