Mundo perfeito
©Dalva Agne Lynch
 
 

Sentado na banqueta alta do bar, Raul observava com olhos cansados os casais dançando, conversando, bebendo. Todas as mulheres eram bem torneadas, esguias e belas. Os homens nem tanto. Os homens eram comuns – baixos, altos, magros, gordos, alguns carecas, outros barrigudos.
“Estou cansando dela, Victor”, disse ele ao amigo com quem bebia.
Victor lhe deu um meio sorriso. “Posso ficar com ela...”
“Quanto você me dá?”
“Não exagera, Raul”, Victor riu. “Você tem um modelo de última geração. Está reclamando de barriga cheia. Seja como for, não tenho dinheiro suficiente para cobrir o que a sua gata custa.”
Raul emborcou o resto da bebida. “Você não entende, Victor. Cansei. Cansei de tudo isso.” Ele se levantou e saiu do bar. Victor ficou observando-o, meio preocupado.
 
Raul caminhou lentamente pelas ruas silenciosas até o condo onde tinha um apartamento de primeiro andar, com vista para o lago. Inseriu o cartão de identidade e subiu as escadas lentamente. Ao abrir a porta, uma música tocava suavemente. “Silêncio”, murmurou – e a música parou imediatamente.
“Patty”, chamou.
Uma bela mulher de uns 25 anos entrou na sala e se acomodou sinuosamente numa poltrona. Corpo escultural, rosto perfeito, cabelos castanhos claros caindo em ondas macias até os ombros.
“Raul”, saudou ela em voz sensual, entrefechando os olhos cor de âmbar. “Você chegou cedo...”
“É”, respondeu ele em tom brusco. “Agora vá dormir.” Ele lhe voltou as costas, suspirou e se atirou no sofá. Patty se levantou e se ajoelhou à sua frente, apoiando os cotovelos nos joelhos dele.
“Você parece cansado, Raul... Quer que lhe dê uma massagem?”
Ele se sentou de repente, estendeu o braço e lhe deu um safanão, atirando-a no tapete. “Vá dormir, já disse!”
Ela se levantou em silêncio e saiu da sala. Raul inclinou a cabeça para trás e cobriu o rosto com as mãos.
 
Ele nem era nascido quando as coisas começaram a mudar. A indústria robótica aperfeiçoara a tal ponto os cyborgs (os organismos cibernéticos), que hoje em dia era difícil distingui-los dos humanos. Isso causou uma reviravolta fenomenal na sociedade – para os homens, era mais fácil lidar com uma dócil, obediente e perfeita cyborg, do que com uma mulher de verdade, opinionada, sujeita a síndrome menstrual, gordura, velhice, gravidez e outros contratempos.
Para as mulheres, foi o fim dos estupros, da violência e da prostituição forçada. Elas também podiam escolher quando e se queriam ter filhos, e sem o perigo de abandono, ou de ter que compartilhar a criação dos mesmos com o pai e alguma nova companheira. E isso resolveu também a questão do aborto, já que toda gravidez era desejada e programada.
Além disso, elas conquistaram uma posição de igualdade no trabalho, nos estudos, na economia, na política e na sociedade. Com o tempo, ocorreu uma total separação, e criaram-se cidades inteiramente femininas e outras inteiramente masculinas. Isso tornou inviável dirigir um país, então houve a divisão entre lado masculino e o feminino. Os homossexuais, por sua vez, escolheram viver nos territórios femininos, onde não corriam risco de rejeição, violência ou mesmo morte.
É claro que, em ambas as metades desse novo país, ainda existiam locais onde as coisas funcionavam como no passado, isto é, as cidades de coexistência, mas elas eram pobres, sem muito avanço e sem as regalias das demais. Geralmente eram locais considerados perigosos, e os oficiais da lei se recusavam a trabalhar naquelas ruas mal cuidadas e mal iluminadas. Mudanças para uma ou outra das duas divisões eram frequentes, principalmente entre os adolescentes que buscavam uma vida melhor, mas o oposto, quer dizer, o retorno à vida de coexistência, era raro. Ou assim dizia a mídia.
 
Beatriz e Sandra batiam papo no sofá da sala da primeira, enquanto bebericavam um cappuccino.
“Ele já decidiu o que vai fazer?”, perguntou Sandra.
“Não. E também, ele ainda está muito novo.”
“Doze anos não é novo, Beatriz. É uma idade perigosa, e você sabe. Ele deveria ter sido enviado para a escola de meninos a dois anos atrás. Antes que se interessasse por sexo. E se ele se apaixona?”
Beatriz passou a mão na testa, preocupada. “E se ele se descobre homossexual? Não quero que sofra o que sofreu o filho da Edite, que foi enviado de volta da escola no território masculino quase morto, quando os colegas ficaram sabendo que ele era homossexual.”
“Um menino sabe o que é desde uns seis, sete anos, Beatriz! Ele apresenta sinais!”
“Alguns só descobrem mais tarde. Olha, a vida lá do outro lado é violenta e sem misericórdia. A mídia pode dizer o que quiser, mas eu sei que tem havido uma quantidade enorme de fugas masculinas para as cidades de coexistência. Homens sensíveis, que não se interessam por esportes violentos ou orgias sexuais. Que buscam um relacionamento e não apenas sexo. Mas que nunca seriam aceitos entre nós, só porque são homens.”
“Às vezes eu duvido muito da sabedoria dessa separação” retrucou Beatriz. “Ela ignora os sentimentos mais profundos. Só leva em conta os instintos. Não somos só instintos.”
“Pode ser. Mas eu prefiro segurança do que os horrores que a História registra. Minha avó foi estuprada quando tinha só quatorze anos.”
“É... A minha me criou sozinha, porque meu pai foi embora com uma estudante de dezoito anos. Quando a mudança veio, ela apoiou de coração. Meu pai ficou furioso – até que descobriu que podia trocar a segunda mulher – que agora tinha 35 anos, engordara e tinha tendência a reclamar de tudo - por uma boneca perfeita. A segunda mulher ficou arrasada e cometeu suicídio.”
“Exatamente o que estou querendo dizer. Eles brincam com suas bonecas, e nós podemos ser livres...”
 
 
 
 
 

 

Dalva Agne Lynch
Enviado por Dalva Agne Lynch em 20/02/2020
Reeditado em 13/07/2022
Código do texto: T6870780
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