O Titéia
O TITÉIA
Cinco vítimas, gritava o Titéia, oferecendo o jornal da pequena cidade onde vivia. O primeiro curioso comprava, e lá ia o Titéia gritando. ”seis vítimas” chegava à outra rua e anunciava “sete vítimas”, e assim ia cidade afora, vendendo seus jornais, os quais o povo comprava, pois era o único meio de comunicação que havia na cidade, além do Serviço de Alto Falantes da praça, e gostavam do “Negrinho” que era trabalhador e não incomodava ninguém.
O Titéia, na época deveria ter mais ou menos 9 ou 10 anos, mas ajudava a família, com o dinheirinho que ganhava vendendo os jornais e ajudando os carroceiros na estação, para descarregar as cargas que chegavam pelo trem.
As vezes, aproveitava a folga dos engraxates na revistaria do seu Manoelão, e também engraxava sapatos, durante o dia, e distribuía “boletins”(como eram chamados os panfletos de hoje) onde haviam as propagandas do comércio.
Um dia, uma pessoa da cidade, que tinha muita admiração pelo menino, resolveu perguntar se ele sabia ler. O Titéia logo respondeu que não, pois não podia ir à escola, porque tinha que trabalhar para ajudar em casa, sua mãe viúva e dois outros irmãos menores.
O homem então indagou se ele não gostaria de ir para o colégio, e trabalhar com ele de tarde. O piá, respondeu: “Mas no que eu vou trabalhar, eu só sei vender jornal e engraxar sapatos”. Pois eu vou te ensinar uma profissão, respondeu o homem.
Foi aí que o piá se deu conta de que quem estava falando com ele era o dono da Marcenaria Progresso, uma das firmas que fabricava móveis e esquadrias na cidade, e de quem ele distribuía os “Boletins”. Mas seu Olegário, eu não sei nem bater um prego, como é que eu vou trabalhar para o senhor.
Guri, eu vou te levar lá prá casa agora, eu quero te mostrar como podes trabalhar junto com meus dois filhos, que trabalham de manhã e vão na aula de tarde.Depois tu vai lá e pergunta prá tua mãe se ela deixa. Diz que vais aprender o ofício de marceneiro, estudar de tarde, e ainda vou te pagar dez cruzeiros por semana.
Os olhos do Titéia brilharam, pois que vendendo jornal, ajudando os carroceiros e distribuindo boletins, conseguia, quando muito, ganhar dois ou três cruzeiros por semana, além disso o Chico e o Zé, que era como se chamavam os filhos, vão te ajudar na aula, e tu vai aprender a ler e fazer conta. Só tem uma coisa, nada de faltar na aula, e nem fugir para o arroio, ou ficar jogando bola na rua. Quem quer vencer na vida tem que trabalhar.
Assim, começou o Titéia uma nova vida, e a cidade não mais ouviu o pregão “Cinco vítimas, seis vítimas” do neguinho jornaleiro.
Como tantos brasileiros pobres, o Titéia não tinha qualquer documento, e então o seu Olegário, que era pessoa conceituada na cidade, falou com o “Dono do Cartório de Registro Civil”, como chamavam na época os escrivães titulares de Cartório, e conseguiu registrar o Titéia. Mas como chamá-lo, nem mesmo ele sabia o próprio nome, pois até sua mãe sempre o chamou assim.
A mãe do piá, que estava junto foi perguntada qual era o nome dele, ao que ela respondeu “TITÉIA” ora, sempre foi chamado assim. O Escrivão então ponderou que não poderia registrar o menino com este nome, e que deveria escolher um que pudesse constar no documento.
Como era o nome do pai dele? Perguntou o Escrivão para a mãe do piá; era Varti, respondeu. O escrivão perguntou Valter de que? Não sei, ele nunca me disse. “Mais eu “tenho o nome de “Darva da Sirva”, isso eu sei” pruquê a minha finada mãe sempre dizia que era assim o meu nome”.
Então vamos fazer o seguinte, eu vou registrar a senhora primeiro, e depois vamos escolher o nome de Valter da Silva para o piá, tá bom. “Intão tá” respondeu a mãe do menino.
Nos primeiros tempos, foi uma dificuldade para o Titéia se acostumar a ser chamado de Valter. No colégio quando a professora fazia a chamada, os colegas avisavam que era ele e que devia dizer presente, quando ela chamasse Valter da Silva. Mas meu nome é Titéia, não é Valter. Assim foram os tempos passando. Em seis meses o Piá conseguiu aprender a ler, fazer as quatro operações de matemática, e tinha algumas noções de história do Brasil e Geografia. Os professores ficaram admirados com a inteligência do menino e começaram e prestar mais atenção nele.
O seu Olegário conseguiu ensinar o ofício de marceneiro para o piá, e ele já auxiliava na fabricação de cadeiras, mesas e aproveitava as sobras de madeira para fazer brinquedos, que de vez em quando levava para os irmãos menores e também para outros meninos pobres da vila onde morava.
Um dia, já com doze anos de idade, e dominando o serviço de marcenaria, perguntou ao seu Olegário, se não podiam aproveitar as sobras de madeiras e fazer brinquedos para distribuir para as crianças pobres da cidade no natal. O Seu Olegário, com os olhos rasos d’água, vendo o grande coração do menino, disse, podes fazer isto, e aproveita e ensina o Chico e o Zé, a aproveitarem as sobras e te ajudarem a fazer brinquedos, nas horas de folga, ou nos domingos(naquela época se trabalhava aos sábados).
E assim o Titéia começou a fazer carrinhos, caminhões e outros brinquedos de madeira, os quais guardava, e distribuía para as crianças pobres no Natal.
Ao completar 15 anos, o Titéia já tomava conta da marcenaria quando o seu Olegário viajava, pois os filhos tinham ido estudar na faculdade na Capital. Mostrou-se bastante competente e honesto, o que cada vez mais orgulhava o seu Olegário.
Um dia o dono da Marcenaria disse: Titéia, pois nunca se acostumou a chamá-lo de Valter, eu quero te fazer uma oferta.
Oferta de que seu Olegário, o senhor me ensinou a profissão, me deu condições de ir na escola, aprendi a ler e escrever, e já estou terminando o ginásio, o que mais eu posso querer do senhor, além de que me paga um bom salário, com o qual tive condições até de fazer uma casinha para minha mãe e meus irmãos, que também estão no colégio!
Titéia, eu vi o teu gosto pelos brinquedos que fazes para distribuir para as crianças pobres. São verdadeiras obras de arte, pois tu colocas o coração neles. Vamos fazer o seguinte: “Meus filhos estão se formando doutores, eu já estou ficando velho, e pretendo me aposentar. As marcenarias estão chegando ao fim, pois as fábricas estão produzindo móveis, que embora sejam muito inferiores aos nossos, vendem muito porque são mais baratos. Porém, ninguém até agora se lembrou de fabricar brinquedos de madeira, que tanto as crianças apreciam. Que tal se nos transformássemos a marcenaria em uma fábrica de brinquedo, e tu ficasses como meu sócio.
Ora seu Olegário, o senhor tá brincando comigo de novo. O senhor sabe que eu não tenho dinheiro para comprar material e nem para colocar “Capital” (o Titéia nestas alturas já falava como comerciante, pois aprendeu com o seu benfeitor), como é que eu vou ser seu sócio!
Guri, se eu estou te oferecendo sociedade, não para brincar, o maior capital que eu preciso, é o trabalho. Eu entro com o dinheiro e tu com a tua experiência, entras com o trabalho. Os teus irmãos já estão grandinhos e podem te ajudar, assim não vamos precisar de mais empregados, além dos que já trabalham na marcenaria.
Mas Bah, seu Olegário, o senhor já fez tanto por mim, que eu nem sei o que dizer. Agora o senhor quer também ajudar meus irmãozinhos. Se todos fossem como o senhor não haveria tantos meninos de rua e poderiam trabalhar e ir no colégio, assim como eu fui.
Titéia, disse o homem com lágrimas nos olhos, eu apenas te abri a porta, quem deu o primeiro passo para entrar foste tu. Se todos soubessem aproveitar as oportunidades, se procurassem seguir o conselho dos mais velhos, como fizestes, tenho certeza que seria bastante diferente, a vida como é. Mas vamos parar de prosa e me diz se aceitas trabalhar mais para a gente ganhar mais dinheiro.
O senhor sabe que eu não refugo serviço. Vamos fabricar brinquedos e aumentar o nosso negócio. Eu notei que o serviço tem diminuído, por causa das fábricas que vendem “porcarias baratas”, mas vendem.
E assim, o Titéia começou a fabricar em grande quantidade os brinquedos de madeira; caminhões, carretinhas, aviõezinhos, e balanços, que tiveram saída para todos os lados, lojas, armazéns e tendas de beira de estradas, iguais a estas que vemos nas rodovias de todo o país.
E agora Titéia, onde estão as cinco vítimas, seis vítimas, sete vítimas, milhares de vítimas, que andam pelas ruas, sem ter um “Seu Olegário” para mandá-las para a escola, ou ensinar-lhes uma profissão?
Realmente, o Titéia, com o seu pregão para a venda dos jornais, não se dava conta que era ele uma vítima do descaso das autoridades, da indiferença da sociedade para com aqueles que foram lançados ao mundo pelo infortúnio da pobreza.
E o “Seu Olegário”, será que ainda vive para salvar estas vítimas, ou aquele que encaminhou o Titéia já morreu e não deixou ”herdeiros” para continuar o seu caminho?
Pois é, fica aqui uma simples indagação: Você algum dia ao comprar o jornal do pequeno jornaleiro, vê nele um brasileiro necessitado de um empurrãozinho para vencer na vida, ou apenas um jornaleiro?