Para você, mamãe
Enquanto o sedan preto cruzava a estrada em alta velocidade, Carl Thompson olhava para a paisagem árida ao redor, impaciente. Era o ano de 2063 e, naquela manhã, ele fora obrigado a sair do conforto de seu gabinete em Washington para tratar de certos assuntos no mais recente território incorporado pelos Estados Unidos, o Brasil. O calor daquele lugar, levemente atenuado pelo forte ar-condicionado do veículo, tirava-o do sério. Malditos negócios. O carro foi diminuindo a velocidade à medida que se aproximava de um portão de ferro, no qual havia uma placa:
GOVERNO DOS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA
ENTRADA RESTRITA
Aquela cidadezinha, bem no noroeste do estado do Rio Grande do Sul, era o último lugar no qual ele esperaria que fossem feitas pesquisas de armas biológicas, mas o clima e a discrição das redondezas eram ideais para os planos do governo norte-americano. Em cinco minutos, vislumbrou uma construção simples e pequena, mas, como ele bem sabia, as aparências enganavam.
Deu ordens para que o motorista o esperasse ali e saiu do carro, batendo a porta com força. Limpou o suor de sua testa com a mão e entrou na casa, cuja porta estava aberta. Dentro, um rapaz baixo, de expressão pálida, parecia esperá-lo.
– Você deve ser Renan Gonçalves, suponho?
– Exato, senhor – respondeu ele, num inglês perfeito. – Seja bem-vindo ao Complexo de São Luiz Gonzaga.
– Por favor, não vamos perder nem mais um segundo sequer. Onde está a mulher?
– A Dra. Couto? Sr. Thompson, eu já a interroguei, e...
– Leve-me até ela imediatamente.
O jovem não discutiu, conduzindo o recém-chegado até um elevador mais ao canto. Digitou uma senha e apertou três botões, o que fez com que chegassem ao subsolo em pouco tempo. O que Carl viu o deixou aterrado, apesar de já estar a par da situação.
Por todo o lugar, em meio às máquinas, computadores e aparelhos sofisticados, estavam espalhados diversos corpos, totalmente ensangüentados. Ver uma foto diferia, e muito, de presenciar a cena, pensou. Visivelmente desconfortáveis, soldados recolhiam os cadáveres aos poucos, preparando-se para levá-los à superfície.
O homem continuou a seguir Renan, que acabou por levá-lo para longe de toda aquela confusão. Caminharam mais um pouco, até ficarem diante de uma porta enferrujada, que foi logo destrancada pelo brasileiro.
O ambiente era sujo, escuro e mal-arejado, semelhante a uma cela. Mas o que se destacou mesmo, para ele, foi a pessoa presente ali. Esperava encontrar uma mulher velha e feia, mas estes adjetivos não faziam jus a real magnitude da Dra. Letícia Couto. Era bela, alta e forte, com lábios grandes e olhos negros, que pareciam vagos agora; sua expressão era de choque e ansiedade. Fumava um cigarro, e vários tocos achavam-se espalhados ao redor da cadeira onde ela sentava. Nem sequer teve a curiosidade de ver quem acabara de entrar.
– Dra. Couto – disse Renan. – Este é o Sr. Carl Thompson, que veio de Washington para averiguar a situação da base. Ele...
– Eu não vou depor de novo! – urrou ela, levantando o olhar e encarando com fúria o estrangeiro. – Mande este sujeito à merda e me deixe em paz!
Renan traduziu a Carl, suavizando os detalhes ofensivos. A paciência do americano tinha limites: não viajara milhares de quilômetros para ouvir desaforos de uma subalterna.
– Escute aqui! – trovejou em sua língua natal. – Eu sugiro a você que, se não quiser passar o resto dos seus dias na prisão, vá abrindo a sua boca suja para me contar o que aconteceu. Eu lhe garanto que somente cooperando você vai poder sair desta enrascada!
Letícia não parecia totalmente convencida ainda.
– Devo lembrá-la de que havia trezentos e cinqüenta pessoas trabalhando nesta instalação, Dra. Couto. Washington quer os detalhes de como este massacre ocorreu e por que apenas você sobreviveu.
A mulher ficou em silêncio durante algum tempo. Carl já começava a perder a paciência, quando ela disse, em inglês:
– O que o senhor quer saber?
– Desejo que me fale, sobretudo, a respeito do seu envolvimento com o Dr. Leandro Siqueira.
À menção daquele nome, a mulher tossiu, deixando uma lágrima cair em seu colo. Os dois homens puxaram cadeiras e sentaram-se. Em seguida, Letícia começou seu relato:
“Há nove meses, fui convocada para ajudar nas pesquisas da base de São Luiz Gonzaga. Antes, trabalhava com análises químicas para uma petrolífera americana na Bahia, onde obtive certo destaque. Quando cheguei aqui, fui logo apresentada a Leandro.
“Me impressionei de imediato. Além de ser extremamente lindo e charmoso, era ainda o homem mais inteligente e dedicado que eu já conhecera. Logo vi que ele realmente era a pessoa ideal para o seu cargo, o de cientista-chefe da unidade. Não consigo precisar qual era o seu campo científico, pois ele dominava tanto conhecimento, que acabava me deixando tonta. Ele era genial... Tinha um encanto preciso com as palavras e uma sedução incrível, que logo fez com que me sentisse atraída. Em pouco tempo estávamos envolvidos.
“Pois bem, enquanto os projetos e nosso relacionamento prosseguiam, comecei a ficar preocupada com ele. Tanta genialidade misturada com loucura não poderia dar certo. Ele começou a se mostrar dono de um senso de humor cruel e doentio.
– Como assim? – interveio Carl.
– Certa vez eu o surpreendi fazendo testes em alguns ratos vivos no laboratório, e depois em um cão.
“Fiquei ainda mais horrorizada quando ouvi um dos soldados da base comentar que havia trabalhando com Leandro antes, dizendo que o admirava e que se lembrava de quando ele realizara experimentos num imigrante nordestino que tentara sair ilegalmente do país.
– E você não perguntou a ele se isto era verdade?
– Sim, Sr. Thompson. Leandro me disse apenas que não acreditasse em tudo o que falavam sobre ele.
Jogou o cigarro fora e continuou:
“Continuamos envolvidos por algum tempo mais, o suficiente para que eu notasse outro traço peculiar nele. Leandro considerava-se tão elevado para o mundo, que muitas vezes brincava com seu revólver, insinuando que qualquer dia poderia realmente atirar e assim deixar um mundo que não o merecia.
“Agora, me deixe entrar em outro detalhe. Como você sabe, os americanos, preocupados com o crescimento da população brasileira, realizaram um grande senso há cinco anos, no qual foi coletado material genético do povo. Após os exames em laboratório, decidiram quem poderia ser considerado apto ou não para ter descendentes. Os inaptos foram submetidos à esterilização química forçada. Jamais entendi o porquê, mas eu estava entre os esterilizados.
– Certas coisas não se questionam, Dra. Couto.
Ela ignorou-o, continuando a falar:
“Um dia, Leandro conversou comigo sobre o assunto e disse ter uma surpresa para mim. Obviamente, eu o adverti de que a pena para a reversão da esterilização era a morte, mas ele falou para que não me preocupasse. No mesmo dia, dissera também que não poderia passar a noite comigo, me dando uma desculpa qualquer. Então, aconteceu.
“Na manhã seguinte, me acordaram para contar que Leandro havia atirado na própria cabeça e foi encontrado em sua casa na cidade. Fiquei inicialmente arrasada, mas, após o enterro, comecei a me questionar se o que eu sentia era tristeza ou alívio. Passados dois dias de luto, a base voltou a operar. Aí começaram os problemas.
“Leandro era a alma de todas as pesquisas! Controlava tudo, manipulando e escondendo informações, de modo que, sem ele, as coisas viessem a parar.
“Então, hoje, por volta das 6h, mais de duas semanas depois do ocorrido, notei algo errado nos tanques do laboratório. Eu estava examinando algumas amostras químicas quando o tumulto começou. Vi os soldados correrem para o foco do problema. Houve tiros e gritos. Quando cheguei ao local da confusão, dei de cara com a coisa mais assombrosa que já vira em toda a minha vida.
“Um humanóide de pele cinzenta e úmida e com aproximadamente dois metros de altura terminava de despedaçar um homem que estava mais adiante. Cadavérico, olhos amendoados e escuros, com a boca pequena, sem dentes, costas salientes, corpo ossudo: uma criatura repugnante! Parecia vinda de um enredo de filme B. Àquela hora, pude perceber que boa parte dos soldados e cientistas havia sido morta. O que quer que fosse, não demorou a olhar para mim. Algo naquela expressão me fez entrar em choque: pus-me a correr para longe.
– E o que aconteceu, a seguir?
“Aquele ser veio em minha direção. Mais soldados tentaram impedi-lo, mas acabaram sendo horrivelmente trucidados. Corri até chegar a um canto secreto da base, no qual Leandro e eu nos encontrávamos às vezes, e que, segundo ele, era conhecido apenas por nós dois. Claro que eu considerei fugir dali, mas aquela era uma emergência biológica e, assim sendo, o protocolo já acionado lacrara todas as saídas até a chegada da intervenção externa.
“Esperei, fechada naquele compartimento abafado, enquanto ouvia os gritos e disparos diminuírem pouco a pouco. Presumi o pior. Não demorou para que o ser invadisse o compartimento. Quando já estava bem próximo de mim, lembrei de já tê-lo visto em algum esboço de desenho que Leandro fizera.
– Vamos, então, à questão principal: como você sobreviveu?
“Ele olhou diretamente para mim e, com uma de suas garras, arrancou seu próprio coração, tentando entregá-lo a mim e balbuciando: ‘Para você, mamãe’.”
– Então, caiu no chão, agonizando; em seguida, não se moveu mais. O coração ficou pulsando por uns segundos, mas não tive coragem de tocá-lo. O Dr. Renan me explicou, antes de o senhor chegar, sobre os exames genéticos feitos na criatura: DNA humano incrivelmente alterado. DNA meu e de Leandro. Vocês conseguem imaginar a loucura e a genialidade daquele homem?! Criar aquele ser, programá-lo para agir daquela forma, além de...
– Tudo bem, Dra. Couto – cortou Carl, levantando-se bruscamente. – Vou apenas preencher alguns relatórios para liberá-la. Por favor, descanse um pouco.
E chamou Renan para fora, retomando o caminho que fizeram para chegar ali. Quando já estavam próximos ao elevador, Carl falou:
– Dr. Gonçalves, os dados dos computadores da base e os exames de DNA da criatura já foram enviados a Washington?
– A equipe está preparando o material para o envio.
– Ótimo. Assim poderemos recriá-la.
– Como é? – Renan parou, incrédulo. Notificando que havia sido grosso com um superior, completou: – Perdão, senhor, mas... Eu ouvi bem? Recriá-la?!
– Por favor, abra o elevador. – O jovem obedeceu e, então, Carl continuou: – Atente à destruição que ela causou, meu caro. Poderá ser usada como uma arma de guerra, ainda mais por ter resistência às balas, como ficou provado.
– E quanto à Dra. Couto?
– Com os dados, não precisaremos mais dela.
– Mas o que acontecerá...?
– Washington não deseja que haja sobreviventes desta malfadada experiência em São Luiz Gonzaga. Fui claro? Ah... E, se você não tiver coragem para fazê-lo, temos quem o faça.
Deu as costas para o rapaz e acenou para o motorista se aproximar. Enredo de filme B... Os brasileiros dão trabalho demais. Maldito seja o dia em que resolvemos anexar esta maldita terra!
Enquanto o sedan preto cruzava a estrada em alta velocidade, Carl Thompson olhava para a paisagem árida ao redor, impaciente. Era o ano de 2063 e, naquela manhã, ele fora obrigado a sair do conforto de seu gabinete em Washington para tratar de certos assuntos no mais recente território incorporado pelos Estados Unidos, o Brasil. O calor daquele lugar, levemente atenuado pelo forte ar-condicionado do veículo, tirava-o do sério. Malditos negócios. O carro foi diminuindo a velocidade à medida que se aproximava de um portão de ferro, no qual havia uma placa:
GOVERNO DOS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA
ENTRADA RESTRITA
Aquela cidadezinha, bem no noroeste do estado do Rio Grande do Sul, era o último lugar no qual ele esperaria que fossem feitas pesquisas de armas biológicas, mas o clima e a discrição das redondezas eram ideais para os planos do governo norte-americano. Em cinco minutos, vislumbrou uma construção simples e pequena, mas, como ele bem sabia, as aparências enganavam.
Deu ordens para que o motorista o esperasse ali e saiu do carro, batendo a porta com força. Limpou o suor de sua testa com a mão e entrou na casa, cuja porta estava aberta. Dentro, um rapaz baixo, de expressão pálida, parecia esperá-lo.
– Você deve ser Renan Gonçalves, suponho?
– Exato, senhor – respondeu ele, num inglês perfeito. – Seja bem-vindo ao Complexo de São Luiz Gonzaga.
– Por favor, não vamos perder nem mais um segundo sequer. Onde está a mulher?
– A Dra. Couto? Sr. Thompson, eu já a interroguei, e...
– Leve-me até ela imediatamente.
O jovem não discutiu, conduzindo o recém-chegado até um elevador mais ao canto. Digitou uma senha e apertou três botões, o que fez com que chegassem ao subsolo em pouco tempo. O que Carl viu o deixou aterrado, apesar de já estar a par da situação.
Por todo o lugar, em meio às máquinas, computadores e aparelhos sofisticados, estavam espalhados diversos corpos, totalmente ensangüentados. Ver uma foto diferia, e muito, de presenciar a cena, pensou. Visivelmente desconfortáveis, soldados recolhiam os cadáveres aos poucos, preparando-se para levá-los à superfície.
O homem continuou a seguir Renan, que acabou por levá-lo para longe de toda aquela confusão. Caminharam mais um pouco, até ficarem diante de uma porta enferrujada, que foi logo destrancada pelo brasileiro.
O ambiente era sujo, escuro e mal-arejado, semelhante a uma cela. Mas o que se destacou mesmo, para ele, foi a pessoa presente ali. Esperava encontrar uma mulher velha e feia, mas estes adjetivos não faziam jus a real magnitude da Dra. Letícia Couto. Era bela, alta e forte, com lábios grandes e olhos negros, que pareciam vagos agora; sua expressão era de choque e ansiedade. Fumava um cigarro, e vários tocos achavam-se espalhados ao redor da cadeira onde ela sentava. Nem sequer teve a curiosidade de ver quem acabara de entrar.
– Dra. Couto – disse Renan. – Este é o Sr. Carl Thompson, que veio de Washington para averiguar a situação da base. Ele...
– Eu não vou depor de novo! – urrou ela, levantando o olhar e encarando com fúria o estrangeiro. – Mande este sujeito à merda e me deixe em paz!
Renan traduziu a Carl, suavizando os detalhes ofensivos. A paciência do americano tinha limites: não viajara milhares de quilômetros para ouvir desaforos de uma subalterna.
– Escute aqui! – trovejou em sua língua natal. – Eu sugiro a você que, se não quiser passar o resto dos seus dias na prisão, vá abrindo a sua boca suja para me contar o que aconteceu. Eu lhe garanto que somente cooperando você vai poder sair desta enrascada!
Letícia não parecia totalmente convencida ainda.
– Devo lembrá-la de que havia trezentos e cinqüenta pessoas trabalhando nesta instalação, Dra. Couto. Washington quer os detalhes de como este massacre ocorreu e por que apenas você sobreviveu.
A mulher ficou em silêncio durante algum tempo. Carl já começava a perder a paciência, quando ela disse, em inglês:
– O que o senhor quer saber?
– Desejo que me fale, sobretudo, a respeito do seu envolvimento com o Dr. Leandro Siqueira.
À menção daquele nome, a mulher tossiu, deixando uma lágrima cair em seu colo. Os dois homens puxaram cadeiras e sentaram-se. Em seguida, Letícia começou seu relato:
“Há nove meses, fui convocada para ajudar nas pesquisas da base de São Luiz Gonzaga. Antes, trabalhava com análises químicas para uma petrolífera americana na Bahia, onde obtive certo destaque. Quando cheguei aqui, fui logo apresentada a Leandro.
“Me impressionei de imediato. Além de ser extremamente lindo e charmoso, era ainda o homem mais inteligente e dedicado que eu já conhecera. Logo vi que ele realmente era a pessoa ideal para o seu cargo, o de cientista-chefe da unidade. Não consigo precisar qual era o seu campo científico, pois ele dominava tanto conhecimento, que acabava me deixando tonta. Ele era genial... Tinha um encanto preciso com as palavras e uma sedução incrível, que logo fez com que me sentisse atraída. Em pouco tempo estávamos envolvidos.
“Pois bem, enquanto os projetos e nosso relacionamento prosseguiam, comecei a ficar preocupada com ele. Tanta genialidade misturada com loucura não poderia dar certo. Ele começou a se mostrar dono de um senso de humor cruel e doentio.
– Como assim? – interveio Carl.
– Certa vez eu o surpreendi fazendo testes em alguns ratos vivos no laboratório, e depois em um cão.
“Fiquei ainda mais horrorizada quando ouvi um dos soldados da base comentar que havia trabalhando com Leandro antes, dizendo que o admirava e que se lembrava de quando ele realizara experimentos num imigrante nordestino que tentara sair ilegalmente do país.
– E você não perguntou a ele se isto era verdade?
– Sim, Sr. Thompson. Leandro me disse apenas que não acreditasse em tudo o que falavam sobre ele.
Jogou o cigarro fora e continuou:
“Continuamos envolvidos por algum tempo mais, o suficiente para que eu notasse outro traço peculiar nele. Leandro considerava-se tão elevado para o mundo, que muitas vezes brincava com seu revólver, insinuando que qualquer dia poderia realmente atirar e assim deixar um mundo que não o merecia.
“Agora, me deixe entrar em outro detalhe. Como você sabe, os americanos, preocupados com o crescimento da população brasileira, realizaram um grande senso há cinco anos, no qual foi coletado material genético do povo. Após os exames em laboratório, decidiram quem poderia ser considerado apto ou não para ter descendentes. Os inaptos foram submetidos à esterilização química forçada. Jamais entendi o porquê, mas eu estava entre os esterilizados.
– Certas coisas não se questionam, Dra. Couto.
Ela ignorou-o, continuando a falar:
“Um dia, Leandro conversou comigo sobre o assunto e disse ter uma surpresa para mim. Obviamente, eu o adverti de que a pena para a reversão da esterilização era a morte, mas ele falou para que não me preocupasse. No mesmo dia, dissera também que não poderia passar a noite comigo, me dando uma desculpa qualquer. Então, aconteceu.
“Na manhã seguinte, me acordaram para contar que Leandro havia atirado na própria cabeça e foi encontrado em sua casa na cidade. Fiquei inicialmente arrasada, mas, após o enterro, comecei a me questionar se o que eu sentia era tristeza ou alívio. Passados dois dias de luto, a base voltou a operar. Aí começaram os problemas.
“Leandro era a alma de todas as pesquisas! Controlava tudo, manipulando e escondendo informações, de modo que, sem ele, as coisas viessem a parar.
“Então, hoje, por volta das 6h, mais de duas semanas depois do ocorrido, notei algo errado nos tanques do laboratório. Eu estava examinando algumas amostras químicas quando o tumulto começou. Vi os soldados correrem para o foco do problema. Houve tiros e gritos. Quando cheguei ao local da confusão, dei de cara com a coisa mais assombrosa que já vira em toda a minha vida.
“Um humanóide de pele cinzenta e úmida e com aproximadamente dois metros de altura terminava de despedaçar um homem que estava mais adiante. Cadavérico, olhos amendoados e escuros, com a boca pequena, sem dentes, costas salientes, corpo ossudo: uma criatura repugnante! Parecia vinda de um enredo de filme B. Àquela hora, pude perceber que boa parte dos soldados e cientistas havia sido morta. O que quer que fosse, não demorou a olhar para mim. Algo naquela expressão me fez entrar em choque: pus-me a correr para longe.
– E o que aconteceu, a seguir?
“Aquele ser veio em minha direção. Mais soldados tentaram impedi-lo, mas acabaram sendo horrivelmente trucidados. Corri até chegar a um canto secreto da base, no qual Leandro e eu nos encontrávamos às vezes, e que, segundo ele, era conhecido apenas por nós dois. Claro que eu considerei fugir dali, mas aquela era uma emergência biológica e, assim sendo, o protocolo já acionado lacrara todas as saídas até a chegada da intervenção externa.
“Esperei, fechada naquele compartimento abafado, enquanto ouvia os gritos e disparos diminuírem pouco a pouco. Presumi o pior. Não demorou para que o ser invadisse o compartimento. Quando já estava bem próximo de mim, lembrei de já tê-lo visto em algum esboço de desenho que Leandro fizera.
– Vamos, então, à questão principal: como você sobreviveu?
“Ele olhou diretamente para mim e, com uma de suas garras, arrancou seu próprio coração, tentando entregá-lo a mim e balbuciando: ‘Para você, mamãe’.”
– Então, caiu no chão, agonizando; em seguida, não se moveu mais. O coração ficou pulsando por uns segundos, mas não tive coragem de tocá-lo. O Dr. Renan me explicou, antes de o senhor chegar, sobre os exames genéticos feitos na criatura: DNA humano incrivelmente alterado. DNA meu e de Leandro. Vocês conseguem imaginar a loucura e a genialidade daquele homem?! Criar aquele ser, programá-lo para agir daquela forma, além de...
– Tudo bem, Dra. Couto – cortou Carl, levantando-se bruscamente. – Vou apenas preencher alguns relatórios para liberá-la. Por favor, descanse um pouco.
E chamou Renan para fora, retomando o caminho que fizeram para chegar ali. Quando já estavam próximos ao elevador, Carl falou:
– Dr. Gonçalves, os dados dos computadores da base e os exames de DNA da criatura já foram enviados a Washington?
– A equipe está preparando o material para o envio.
– Ótimo. Assim poderemos recriá-la.
– Como é? – Renan parou, incrédulo. Notificando que havia sido grosso com um superior, completou: – Perdão, senhor, mas... Eu ouvi bem? Recriá-la?!
– Por favor, abra o elevador. – O jovem obedeceu e, então, Carl continuou: – Atente à destruição que ela causou, meu caro. Poderá ser usada como uma arma de guerra, ainda mais por ter resistência às balas, como ficou provado.
– E quanto à Dra. Couto?
– Com os dados, não precisaremos mais dela.
– Mas o que acontecerá...?
– Washington não deseja que haja sobreviventes desta malfadada experiência em São Luiz Gonzaga. Fui claro? Ah... E, se você não tiver coragem para fazê-lo, temos quem o faça.
Deu as costas para o rapaz e acenou para o motorista se aproximar. Enredo de filme B... Os brasileiros dão trabalho demais. Maldito seja o dia em que resolvemos anexar esta maldita terra!