A moça do amaranto


Há semanas o Museu de Arte do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, não se encontrava tão cheio. O motivo? A chegada de uma exposição do pintor espanhol Miguel Saverjo, que desfrutou de muito sucesso no século XIX e, ainda hoje, era muito respeitado. Destacando-se dos demais observadores, uma mulher de beleza estonteante estava diante do quadro A moça do amaranto.

As formas voluptuosas de Carolina, de um jeito ou de outro, sempre acabavam por chamar a atenção dos homens, o que, definitivamente, não lhe convinha. Ficou ali parada durante um tempo indeterminado, como que hipnotizada pela obra, a qual mostrava uma jovem formosa com um amaranto tatuado no seio esquerdo. Parecia perdida em lembranças quando sentiu alguém se aproximando.

– Olá. Tudo bem?

Um homem alto, magro e de boa aparência a examinava atentamente, mostrando segurança, coisa que pouquíssimos homens faziam ao se aproximarem dela.

– Tudo – respondeu ela.

Mais um querendo me cortejar?

– Prazer, meu nome é Cláudio. Como você se chama?

– Carolina.

– Um belo nome para uma bela dama.

Pronto. Como eu adivinhei?

– Vejo que não sou o único a me sentir encantado por este quadro. Já conhecia Saverjo?

– Há mais tempo que você imagina.

A moça do amaranto é, de longe, a obra que mais consegue representar o estilo único dele. Magnífica!

– Verdade.

– Pena que ele não pôde continuar a trazer ao mundo quadros belos como este. Seu suicídio foi lamentável.

Carolina desviou o olhar do quadro para encarar o homem, fria.

– Muito já se discutiu sobre qual foi a inspiração para este quadro, mas nunca se chegou a uma conclusão real. Seria a bela moça fruto da imaginação de Saverjo?

Ela estava prestes a dar as costas e acompanhar o fluxo de pessoas ao redor quando ele completou:

– Ninguém sequer suspeitou que fosse você a jovem do quadro.

Ela congelou por dentro.

– Achou que conseguiria se esconder para sempre? Eu sei a verdade, para o seu infortúnio. Pessoas que caminham sobre a Terra há séculos são difíceis de encontrar... Você me rendeu longas noites de pesquisa e pouco descanso.

Como ele tinha descoberto aquilo?

– Minha querida, você já ouviu falar da Sociedade de Lastofar?

Carolina sentiu um impulso raivoso de cuspir no chão, mas controlou-se.

– Vejo que este nome lhe é familiar... Pois bem, eu faço parte dela. Parece uma fala de algum livro do Dan Brown, não? Durante incontáveis anos, nós – filósofos e cientistas – nos dedicamos a manter a pureza da realidade. Por isso, caçamos e eliminamos anomalias como você.

– Ah, certo... Então, isso quer dizer que você vai ser mais um que, ao longo de séculos, tentou me matar e não conseguiu. É impossível, meu caro!

– Não creia nisto.

O tom dele era desafiador.

– Estudamos você com calma, até que descobrimos um meio de destruí-la.

Cláudio sacou um revólver, apontando-o para ela, que sorriu. Havia poucas pessoas no ponto onde os dois estavam, e estas não pareceram perceber nada.

– As balas desta arma foram preenchidas com Teruscan, um metal desconhecido pela Química moderna. Era usado na antiga Lemúria para destruir demônios... Algo que certamente dará conta de você.

A mulher soltou uma risada, falando em seguida:

– A sua organização certamente nunca se perguntou por que pessoas como eu existem...

Ele riu.

– Por que uma aberração deveria existir?

– Por causa da esperança.

– Esperança? Que esperança?

– De que, um dia, a humanidade superará a morte e ninguém mais vai ter de morrer. Se for mesmo possível destruir os Imortais, esta esperança irá minguar, e um futuro grandioso será ameaçado. Você está mesmo disposto a ir em frente?

– Bobagens, minha cara... Lamento por me obrigar a prosseguir, já que sou um filósofo e não um assassino, mas... Meu dever me obriga a isto. Quando eu terminar o que vim fazer, restarão poucos a perseguir.

Passados alguns segundos, ele completou:

– Você não vai me agradecer?

– Te agradecer? Pelo quê?

– Por acabar com o seu tédio. Ser um Imortal deve ser uma desgraça, já que, enquanto você vive para sempre, todos em volta vão morrendo, incluindo aqueles que você ama.

– Acho que você anda lendo ficção demais, Cláudio. Eu adoro a minha condição e procuro desfrutar dela o máximo possível. Aliás, pretendo continuar a fazê-lo.

O homem suspirou.

– Sinto muito!

Carolina virou-se, ao que duas balas atingiram suas costas. Os observadores próximos, escutando os tiros, começaram a correr para fora do museu, assustados. A mulher gritou de dor, com o sangue escorrendo pela boca, mas, após alguns segundos, começou a rir, voltando-se para um assustado Cláudio.

– Era para você estar morta!

– Ah, quantas vezes eu já escutei isto, seu tolo desprezível...

Chocado, ele nem mesmo resistiu quando Carolina tomou-lhe a arma e disparou três vezes contra seu peito, fazendo-o quedar, morto.

Eu que sinto muito... Já fui muitas coisas na vida, inclusive assassina. Meu caro cadáver, Lemúria era um lugar realmente terrível, sabia? Dou graças aos deuses por aquele dilúvio tê-la varrido da face da Terra.

Dois seguranças chegaram de repente, parecendo preocupados. Arregalaram os olhos ao verem um homem morto ao chão e atestarem a tranqüilidade com que agia sua bela assassina.

– Fique parada mesmo, que a polícia já tá vindo! – disse um deles, com receio.

– Sério? – indagou Carolina, fingindo espanto. A seguir, largou o revólver no chão propositalmente.

A um sinal seu, as armas dos dois saíram dos coldres e foram arremessadas longe, fazendo com que tremessem da cabeça aos pés.

Sorrindo, a moça do amaranto dirigiu-se à saída, sabendo que não seria incomodada por aqueles paspalhos ou por quem quer que fosse. Caso algo acontecesse, sabia defender-se como ninguém. 

Foi andando pela rua, não dando a mínima para a confusão em volta. Pensava apenas em como amara Miguel Saverjo. Lembrou-se de quando ele se declarou a ela e, em sua homenagem, pintou aquele quadro, que viria a aumentar seu prestígio nos anos seguintes. Com amargura, recordou da noite na qual o flagrou traindo-a com aquela maldita prostituta italiana. Jamais conseguira perdoá-lo, e o fardo da culpa pareceu sobrecarregar aquele que fora o seu grande amor por mais de dez anos. Fazer o quê, não? Seguiu seu caminho... Afinal, tinha uma eternidade para desfrutar e nada com que se preocupar.