Dois mil e setenta, uma segunda-feira qualquer
Acordo com o zumbido do relógio do chip encefálico e imediatamente começo a me perguntar por que resolvi implantar esse negócio. Só de pensar que se quiser retirar sem nenhum risco neurológico, vou ter que esperar pelo menos mais um ano, já fico de mau humor. Alcanço meu uniforme de trabalho na prateleira e vou me vestindo enquanto a cama se recolhe. A porta do banheiro abre, entro no higienizador e percebo pela abertura na parede que o dia promete ser quente. Mais um pouco de mau humor. Ao sair do apartamento, encontro com o vizinho de dois números à frente. Luis é o nome dele, acho eu.
Arrisquei Luis mesmo, acertei. Menos mal. Alguma conversa sobre futebol, aquele esporte idiota que eu tenho fingido gostar desde a primeira década do século. Não parece, mas eu sou bem mais velho do que aparento. Luis se queixa do desempenho do seu time na última partida, me pergunta pra qual eu torço, eu digo, ele faz um gracejo quanto a ser time de velho, que “ninguém mais torce pelo Flamengo hoje em dia”. É engraçado eu penso, no meu tempo eu dizia a mesma coisa do América. Ao mesmo tempo eu percebo que essa coisa de “no meu tempo” é coisa de velho. De fato.
E pensar que estou vivendo uma segunda vida... Não me arrependo, mas tenho me sentido cada vez mais cansado. Esse mundo de hoje não me incentiva mais. Jamais cogitaria viver uma terceira vida. Nem mesmo que tivesse dinheiro suficiente pra tanto. Essa minha pele absolutamente normal para um trabalhador de seus 35 anos não será substituída, nem que eu ganhasse na Gigaloteria. Quero poder morrer ao fim dessa segunda vida, em paz. Noventa e seis anos recém completados... mas ninguém precisa saber disso.
Despeço-me de Luis na saída do prédio. Ele se dirige o terminal de carro-expresso para Maricá. Pego a estação de metrô da Moreira César, e 10 minutos depois chego ao centro do Rio de Janeiro. Impossível não lembrar do tempo em que se fazia a travessia nas barcas. Era bonito olhar, mas hoje, mesmo com a baía despoluída, as forças de segurança que patrulham a baía dia e noite não permitem que se atravesse. Pelo menos não embarcações de passageiros. Ultimamente os tiroteios têm sido constantes, os ânimos andam exaltados. Chego ao terminal de transposição, espero a cápsula que vai me levar até o 97º andar da Torre Guanabara, na esquina da Presidente Vargas com a Rio Branco. Não dei muita sorte hoje, o trilho estava em manutenção, tive que descer no 87º e subir o resto pelo elevador mesmo.
Antes de me conectar ao terminal, passo pela máquina de café e percebo uma certa agitação entre as pessoas do escritório, um pouco anormal para uma segunda-feira pela manhã. Estão todos em frente à tela, chego mais perto para ver o que acontece, uma estranha sensação de identificação me atinge. Nos Estados Unidos, um prédio partido, uma coluna de fumaça sobe. Pessoas fugindo. Há anos não se ouvia falar em atentado, terrorismo ou algo semelhante. Esses rapazes e moças aqui ao meu lado não entendem tão bem disso. Não os culpo... Fico sabendo que dessa vez é a União Muçulmana do Sudeste Asiático, quem assumiu o atentado. O Presidente dos Estados Unidos, Charlie López faz um pronunciamento, diz que não haverá retaliação, mas pede ajuda da Liga das Nações. Diz que seu povo está sendo perseguido, diz que o ódio religioso não pode ser a tônica do mundo atual, diz que os erros do passado não podem ser justificativas para atos bárbaros contra vidas inocentes, e por aí vai.
Volto para minha mesa, não sei porque me vêm à mente a imagem daquele velho ator do meu tempo (olha o “meu tempo” aí de novo). Clint Eastwood... a imagem da sua expressão me vêm clara à mente. Aquela cara de desprezo que ele fazia nos filmes. O velho Clint deve estar rolando no túmulo a essa hora, penso. Bem, todo império tem sua queda. Engraçado pensar nisso. Assim que me conecto ao terminal e vejo a rotina de texto e imagem que tenho para rediagramar e limpar, percebo que o projeto é algo relacionado à Roma Antiga... E mais precisamente à época de Nero. Enquanto isso, lá no hemisfério norte, Nova York queima... Quão apropriado.