O TEMPO DE TUDO
O tempo de tudo termina – mesmo que a eternidade pareça até possível para os avanços da ciência. Mesmo com as viagens a longas distâncias no espaço e no tempo. Mesmo que o bom e velho Einstein, sempre simpático nas velhas holografias, tenha se tornado obsoleto, com sua teoria. É o que acontece com os homens e as teorias, geralmente.
O tempo de tudo – e todos – termina. Por isso, decidi terminar o meu hoje, em 19 de novembro de 1969, assistindo ao milésimo gol de Pelé – este sim, um ser atemporal, mesmo que tenha morrido há quase dois séculos. Meu relógio quadrimensional criou a passagem de campo e, subitamente, uma distorção me colocou às portas do Maracanã, um lendário estádio do país em que nasci.
No tempo de onde vim, tudo isso é passado – mas a noção e passado e futuro pouco importa. Vamos ao passado para conseguir suprimentos, água limpa, espécies extintas de animas, documentos históricos, tudo para construir o mundo do futuro. E vamos ao futuro a procura da presciência e, claro, de tecnologia. Com isso, modificamos o futuro, que a cada nova visita está diferente.
No entanto, o tempo de tudo termina.
Foi um cientista brasileiro, um menino absolutamente pobre que vivia em uma cidade-favela no Setor Nove do Governo do Brasil e que aprendeu ciências nos restos de uma biblioteca pública abandonada um século antes, quem descobriu o maior segredo do universo – como viajar pelo tempo. Ironia completa, pois Caio Túlio da Silva era apenas mais um Silva em milhões, com nome de imperador romano e o rosto mulato.
Não foi um Smith, um Zimmermann ou um Suzuki, mas um Silva ... Pensando nisso, passei pela catraca e subi a rampa do Maracanã, para o ver o clássico Vasco e Santos. Quantos de nós já fizemos isso? Eu mesmo já vi a final de trinta e duas Copas do Mundo, sempre pessoalmente, nos estádios, no meio da torcida. Agora, sou parte das 65 mil pessoas que esperam o milésimo gol do Rei – eles esperam, eu sei.
A materialidade do processo de viagem no tempo nos tornou nômades, de volta às origens da humanidade. Cada minuto de vida pode ser vivido em um tempo diferente e isso faz tudo ser visto sob nova perspectiva. O progresso dá saltos absurdos com a técnica de vampirizar o futuro – roubo a tecnologia de, digamos, um milênio à frente, e provoco um salto tecnológico que muda completamente o que seria o próximo milênio.
Paradoxo? Que importância tem isso, se o tempo de tudo termina?
Pelé joga com refinamento. Nunca se percebe isso plenamente nos hologramas. Já assisti essa partida dezenas de vezes, mas estar a trinta metros de uma lenda do esporte é como ver a face de Deus. Imagino gente pelo mundo afora que está vivendo o mesmo sonho com seus ídolos – abraçar Beethoven, conversar com Sócrates, ouvir Homero, estar presente quando Cabral aportava com suas caravelas.
Meus dias já não reservam tantas surpresas, a não ser uma: não sei se esta linha de tempo vai durar por mais um minuto ou um sol. Basta que alguém afrouxe as engrenagens no passado para que eu vire pó – sem deixar lembranças. Não temo isso, é um efeito colateral esperado, afinal nossa civilização já acabou com bilhões de vidas no futuro, tentando acelerá-lo.
Antes que meu tempo termine, decidi por fim a tudo, no templo do futebol, às 23 horas e 11 minutos, ou melhor, aos 33 minutos do segundo tempo, quando o goleiro argentino Andrada não consegue evitar o gol, no pênalti batido de forma certeira por Pelé. É um sonho de menino, enquanto folheava velhas revistas em meio a poeira e escombros. Poderia ter escolhido morrer na hora exata em que nasci, vendo aqueles corpo e espírito como se não fossem meus – por pura ironia.
Mas quis ver Pelé, um negro brasileiro que nasceu com ouro nos pés, fazer seu gol mais famoso. Ele corre, decido, para bola, dá um chute clássico, no canto esquerdo do goleiro. Andrada, o goleiro, cai no canto certo mas não alcança. Desesperado, soca o gramado – sabe que entrou para a História pela porta dos fundos. Pelé corre até o gol, toma nas mãos a bola do jogo, e é cercado por jornalistas, quando fala em prol das crianças brasileiras. Seguro o choro e vejo passar toda uma vida de viagens extraordinárias sem pouso, bem à frente dos meus olhos.
Retiro a trava de segurança, implantada no pulso esquerdo. Lentamente, enquanto o jogo prossegue, desafivelo o relógio quadrimensional. Sei que no milésimo de segundo em que ele se afastar de mim, os efeitos das viagens no tempo vão encerrar minha vida como que por encanto. Nada terei deixado para a História, que não se escreve agora como se escrevia antes.
No último instante, penso em como seria bom ter uma sepultura em algum lugar, em alguma época, com uma lápide brilhante em que leriam todos: “Aqui jaz Caio Túlio da Silva, cientista, brasileiro, inventor da viagem no tempo”. Mas vou morrer aqui mesmo, sem honras, da forma que mereço.
Porque o tempo de tudo termina, e o meu acabou.
(Direitos reservados. Escrito em 07/03/2009)