Nuvens negras não caminham em solidão
O lugar que encontramos era um galpão no alto de uma colina, margeava a rodovia Ayrton Senna. Havia árvores ao redor e toda a face norte da Colina era coberta por capim não muito alto. Estava tudo vazio e sabíamos que não seríamos incomodados. Não havia nada pra dizer e eu nem me lembrava os nomes de meus companheiros de viagem. Fiquei mudo, do lado de fora, sentado em uma espécie de carrinho de supermercado que estava encostado na parede.
A família feliz (era assim que eu apelidei meus companheiros) entrou e imediatamente começaram os preparativos para o pernoite. Senti um cheiro de comida, parecia que alguém estava cozinhando macarrão instantâneo. Percebi que estava com fome.
Olhei minha mochila e vi que eu tinha um bom pedaço de rapadura, dois pães de forma, um salame, toucinho, macarrão instantâneo e quatro pacotes de bolacha. Tomei duas fatias de pão de forma, dei uma mordida no salame e depois tirei um bom naco de rapadura. Comi em menos de um minuto e decidi que aquela tinha sido a minha refeição do dia.
Entendi rapidamente que o mundo não seria muito gentil em me dar alimento. Empregos, dinheiro e profissionais intelectuais eram coisas de um passado distante. Eu sabia que os supermercados mal guarnecidos já tinham sido saqueados e que os demais também o seriam. Era bobagem procurar o que sobrara para comer nos mercados, nada mais havia que pudesse ser tomado sem metralhadoras. Sabia também que algumas pessoas abandonaram suas casas para um lugar distante da minha querida nuvem negra levando tudo que pudessem comer. Outras pessoas decidiram ficar e conservaram consigo a preciosa comida, talvez algumas delas não tivessem armas, mas eu ainda não tinha chegado tão baixo.
Esqueci a fome, família feliz e resolvi nem pensar quanto tempo eu poderia suportar antes de usar minha arma para roubar a comida de alguém. Sentei-me recostado a parede do galpão e olhei para sudoeste, onde minha amada nuvem se reclinava sobre Osasco, levando consigo a escuridão e morte para os que não fugiram.
Minha nuvem era cruel, não era mais uma parte dos homens. Nunca, algo que fora criado pelas pessoas ganhara vida tão independente, tão perfeitamente integrada à natureza. A nuvem negra era a mais natural das criações humanas, não podia ser detida, desviada ou controlada. Uma vez que ela subira de um pequeno cone em forma de ogiva, mostrou todo o seu magnífico poder.
Minha nuvem trazia consigo todas as cores que ainda na noite passada brilhavam entre as chamas da cidade. Contra o céu noturno de hoje, quase não havia luz. Pude ver a distância o farol de um carro saindo de São Paulo pela Ayrton Senna e esta era a única luz próxima que eu vi durante toda a noite. Na distância podia perceber algumas outras luzes.
De onde eu estava não era possível ver os prédios de São Paulo, mas eu não esperava que nada por lá estivesse realmente vivo, pelo menos não acreditava que nada que estivesse por lá tivesse alguma chance de permanecer vivo por muito tempo.
Meu olhar se enamorava de um novo céu, que já parecia ser mais estrelado do que eu me lembrava. Será que este já seria um presente da minha nuvem negra? Achei que não. Parecia para mim, que havia mais estrelas porque eu estava olhando a noite a partir de uma colina razoavelmente distante de qualquer coisa iluminada.
Depois de muito olhar para a nuvem, era incrível como ela podia ser facilmente vista mesmo contra céu escuro, percebi que a vista próxima estava completamente escura. Era mesmo difícil caminhar pelos arredores pois não havia nada que iluminasse o caminho. Só agora senti falta da velha lua. Onde estava a lua? Eu não sabia. Podia ser lua nova ou ela poderia estar oculta por traz da nuvem negra.
A família feliz estava quieta, mas havia uma garoto sentado na porta do galpão, achei que deveria estar montando guarda, talvez estivesse pensando que eu estava fazendo isso e resolveu me ajudar, ou talvez estivesse fazendo guarda para proteger sua família de mim.
Dormi um pouco recostado na parede do galpão e acordei com o som de sapos coaxando. Fiquei imaginando se seria verdade que somente as baratas sobreviveriam no fim. Achei que isto era uma bobagem, afinal as baratas também têm que comer e se nada mais sobrasse, o que elas comeriam? Bom! Acho que isso era só uma forma de dizer que as baratas resistem a níveis muito altos de radiação.
Olhei no velho relógio e vi que eram duas horas da manhã e vi uma luz cruzando os céus. Estava muito alta e podia ser qualquer coisa, mas havia um perceptível rastro de fogo saindo de traz do objeto que cruzava o céu. Meus olhos ficaram atentos e pude ver que o objeto vinha do leste, estava vindo do oceano atlântico e se dirigia para baixo, mas não em minha direção.
Não foi preciso pensar muito tempo para entender o que era aquele objeto voador imediatamente identificado. Era um míssil. Era foguete antigo que debochava da tecnologia militar do pais. Um mero míssil balístico, voando alto e que provavelmente cruzou todo o oceano sem se esconder de ninguém. Talvez fosse um foguete russo, mas por que diabos, os russos iriam querer destruir a minha tola São Paulo. Poderia estar vindo de um navio de guerra ou submarino parado no oceano, nesse caso qualquer um poderia ter lançado o “danado”, mas por que cargas d’água alguém, fosse quem quer que fosse, iria querer destruir nossa cidade?
Nada parecia fazer sentido, mas estava claro que ainda não tinha acabado. Senti medo, pois este novo míssil poderia trazer o veneno ainda mais para perto. Qual o quê! Eu não poderia enganar a mim mesmo. Meu olhar apaixonado estava esperando uma outra nuvem, jovem e poderosa trazer luzes ao céu. Mais do que medo, eu estava esperando ansioso pelo clarão da morte. Eu queria ver o momento exato em que a nuvem deixasse a sua prisão e se libertasse como um demônio sobre os confins da terra.
Eu percebia que o foguete não vinha exatamente em nossa direção, mas não tinha como saber qual seria a intensidade da explosão, nem a distância em que ela ocorreria. Sabia que aqueles poderiam ser meus últimos momentos de vida, mas isso não me incomodava. Morrer nas chamas da nuvem negra seria uma glória, para a qual eu talvez não pudesse me candidatar. Eu sempre pensei que a minha morte seria miserável e lenta, como um velho doente e solitário deitado com as dores crônicas de toda um vida de covardia.
Agora que o foguete trazia consigo o fogo e a nuvem, eu parecia não acreditar que merecesse tal deferência. Bem que eu queria poder acreditar que aquele era um míssil mandado para me matar. O meu próprio míssil, mas....
Acho que muito longe a sudoeste, talvez no ABC, talvez nas proximidades da represa Billings. Malditos sortudos, eu sabia que não poderia ser pra mim.
Veio primeiro a luz. Um flash branco que me deixou quase cego por algum tempo. Eu sabia que tinha sido atingido diretamente por raios gama e beta, causadoras de câncer e de morte ainda mais cruel. Sabia também que as partículas alfa (as incendiárias) jamais chegariam até onde eu estava em quantidade suficiente para fazer bons estragos, a explosão fora muito longe.
Pensei na minha exposição aos raios gama e tive medo. Tudo bem morrer velho e doente, mas eu não queria ficar doente e morrer ainda jovem. De qualquer forma eu precisaria esperar alguns dias ou semanas para saber se a dose referente a uma explosão de bomba atômica ao longe poderia deixar seqüelas de radiação. Teria que esperar ainda mais, talvez muitos anos, para saber se eu teria um câncer em decorrência daquele momento.
Assim que eu vi a luz, comecei a marcar o tempo na espera do som. Perdi cerca de 5 segundos até começar a marcar o tempo, mas estava esperando para saber a que distância havia sido a explosão.
Vi a luz e a fumaça começando a subir e nenhum som chegava. Vi as nuvens iluminadas como às da noite anterior e nada de som. Já me parecia que alguém tinha inventado bombas que não faziam barulho. Depois de dois minutos e meio, ouvi o ruído mais impressionante de toda a minha vida. Não havia estalo de explosão, mas somente um rugido, como um trovão na distância, mas muito mais intenso. Não era ensurdecedor, mas era muito forte, a palavra talvez seja grave, assustador. Assim era o barulho do nascimento de uma nuvem negra.
Dois minutos e meio para o som chegar até mim. Fiz as contas e descobri que a explosão tinha ocorrido a 50 quilômetros de distância. Era mesmo o ABC, talvez a represa Billings, quem sabe.
Outra explosão, um pouco mais ao sul da primeira mas ainda a sudoestet, seu som também levou dois minutos e meio para chegar. Só poderia ser cubatão. A refinaria.
Fiquei sentado e mais uma vez fascinado com o lindo espetáculo de fogos no céu. Algo que ninguém que não tivesse visto poderia imaginar. Eu não sabia se estaria vivo nas próximas horas e isso me deixava vivo como nunca. Sentia cada músculo do meu corpo atento e meus olhos estavam fixos no céu.
Nem percebi que a família feliz estava ali, parada diante daquela cena. O homem magro abraçava a mulher mais velha e a moça ainda adolescente. Os outros três estavam calados, na luz do céu a distância pude ver que um deles chorava e então toquei meu rosto. Havia lágrimas, finalmente lágrimas depois de uma vida inteira sem saber o que é chorar. Eu estava chorando, mas ainda não acreditava que fosse merecedor de tal privilégio. Chorar diante da nuvem negra.