O Outro Lado do Sonho

 

De repente eu estava na rua. Assim, a mão no bolso e pé sobre pé. Já era madrugada quando sai. Procurei não fazer nenhum barulho para não ser notada, tive receio até de respirar mais profundamente. Quando cruzei a porta percebi que não contava mais com ninguém e que agora iria conhecer o mundo cão que tanto ouvi falar. Eu não estava querendo saber o que ia me acontecer, o que na realidade eu queria era mudar a calçada, cruzar o desconhecido, atropelar o trânsito. Não sei bem como consegui coragem, só sei que o medo já me embrulhava o estômago e o calafrio me dominava. Agora é tarde, disse pra mim mesma, não poderia ser pior do que ali. A rua ainda estava deserta e eu tinha poucos recursos para a tal aventura. O dinheiro que eu trazia era do meu cofrinho que vivia escondido. Cruzei uns becos escuros e prosegui sempre em frente sem pensar muito, porque senão eu voltaria. Não queria voltar pra li jamais. Era o esgoto, o vômito adormecido dos bebados, aquele lugar. Tudo que acontece ali é terrível; eu sei como foi e o que vai me custar para esquecer. Mesmo que eu queira apagar não conseguirei. As marcas são cicatrizes crônicas da alma.

Um dia talvez possa mudar a forma de olhar a paisagem expressionista do quadro vivido por mim. Por um instante, senti que estava sendo seguida e apressei os passos, não poderia ficar tão imersa nos meus pensamentos assim, agora era eu e o mundo daqui de fora. Agora estou do outro lado. Deve ser mais visível, mais real de encarar o lado de cá. Não sei onde eu me perdi ou onde eu me achei. As linhas se cruzam nesse momento e pode dar um nó na linha do pensamento, eu sei. Na minha estação o trem não pára, sempre tive que esperar o mais das horas. Agora sim, cheguei numa estrada que parece sem fim, e a porta deixada foi por mim fechada. Não ouço mais gritos nem os meus nem das outras. Só sei que ali não volto.O que me faz amar essa aventura é que as ruas estão felizes, cheiro de mato, cheiro de gado, cheiro de vida. Eu diria que lá os pratos a mesa fediam. Aqui, não quero comer e sim andar. Andar interminantemente, pra frente. Achei uma brecha para mim e nunca pensei que ela existisse. Começo a me dá conta que fui colocada naquele lugar pelos descansados, pelos anjos adormecidos e esquecidos por Deus. Agora não tem rémedio, o rémedio é sair por aí chutando as pedras do caminho. Vou parar ,em qualquer lugar, e tirar essas roupas, assim que o dia amanhecer. Quero tudo novo. Vou também mudar o corte do cabelo. Não sei como vou fazer para limpar tudo por dentro até ficar completamente limpa e pronta para mim de novo. Vou tentar dar um jeito. Não tenho que pensar tudo em um só momento. É, o dia clareou e com ele as idéias. Acho que vou tomar um café no bar da esquina e colocar no papel algumas metas, como limpar os armários que ficaram fechados e empoeirados todo esse tempo. Era tão escuro naquele calabouço. Fui abrindo cada uma daquelas correntes, acho que posso gostar de mim, fui muito forte, fui sim. Contei com algumas pessoas mas contei comigo muitas vezes. Principalmente, naquelas horas que não tinha consciência da dimensão do meu limite e nem o do outro. Realmente, não se pode compreender porque tantas coisas ficam soltas no mundo do meu Deus. Também eu fui inocente ou aventureira demais para fazer tantas coisas inpensadas. Vamos pensar que sonhei com um mundo encantado que não existia, mas que eu dei vazão, pelos meus sonhos contidos e oprimidos. Como estará a minha terra? Com certeza com seus braços sempre abertos para mim e todos os seus. Muitos pontos sem is e tudo que eu quero é colocá-los, não sei quando e nem como. Acredito que já estou fazendo algo por mim. Lembro, com brilho nos olhos, daquela menina que brincava pulando no fundo do quintal da sua velha casa, dos brinquedos soltos pela casa e dos mimos dos seus pais quando ela fazia uma coisa nova, aquela menina era eu. Lembro quando fui me tornando menina moça, tudo tão novo, tão cor de rosa. Agora a pouco era escarlarte quase sangue... .quase morte. Como eu consegui escapar daquele inferno, e se me pegarem, dessa vez não conseguirei resitir. Ainda estou em perigo. Como fui tão boba. O que eu imaginava? Sinto falta de Carmem; não suportou e pagou um preço tão alto, pagou com a vida. Quantas ainda pagaram com a vida pela sua ingenuidade. Cada vez que um homem daqueles tocava em mim me sentia suja, apodrecendo em vida, completamente suja como estou me sentindo ainda. Como pude cair na conversa de um homem que dizia me amar, fugir com ele contra à vontade dos meus pais para um lugar tão distante. Como apanhei! Não me lembro dos meus pais tocando em mim, nem com um lenço. Acho que vou perguntar alguém como posso chegar até a embaixada do meu país. Quem sabe lá encontre ajuda.

Gostaria muito de poder ter vindo com algumas amigas, ajudá-las a sair dali, mas ia dá muito na cara. Ainda estou em perigo. Não tenho como evitar o perigo por enquanto. O dinheiro está acabando e não posso gastar mais com tanta assiduidade. Não sei como é sair de uma situação dessas. Tenho que ser meticulosa e ter paciência para fazer as coisas funcionarem direito.Errei uma vez mas, agora tenho que acertar, afinal é a minha pele que continua em jogo. Não é só o meu país que eu espero me receber de braços abertos, fico a pensar como vou ser recebidas pelos meus pais, como vou encará-los. Ah! vai ser com a coragem.A determinação de alguém que deseja recomeçar, que realmente está toda ferida, cheia de péssimas recordações,no fundo do poço, entretanto aprendeu muito com a vida.

Vou poder voltar aos meus estudos e talvez fazer uma especialização. Quero poder estudar sobre o assunto. Poder responder para muitas moças porque não devem sair de suas casas com pessoas que não merecem confiança. Que o tráfico de mulheres existe, que o mundo tem coisas boas, só que oferece também coisas que em muitas ocasiões podem deixar-nos vulneráveis, na mão dos outros. Servindo por exemplo de mercadoria barata e a mêrce de maltratos morais e físicos.

Bem, a minha história não terminou tão ruim assim, pude escapar do cativeiro, voltar a minha terra, rever meus parentes e recomeçar a minha vida do zero, virar quase que completamente a página. Então, será que você terá a mesma sorte que a minha, você voltará?