A PERERECA DA PROFESSORA

Resolvi chamar essa protagonista de Matilda por causa do filme. Ela realmente, era tão inteligente como a personagem da película citada.

Entrou na escola aos seis anos de idade e foi ter aulas de alfabetização com a professora que o pai requisitou à prefeitura, porque na localidade havia muitas crianças acima da faixa etária sem saber ler e escrever. Naquele tempo as professoras que vinham da capital para lecionar no interior, moravam com as famílias na comunidade onde iam trabalhar.

Nesse caso, os pais de Matilda ofereceram sua casa para que ela ficasse com eles e de quebra alfabetizasse a filha e ainda desse um jeito de lhe tirar a canhota. Defeito de nascença que a mãe achava ser coisa do demo, sua primeira filha usar a mão esquerda para todas as coisas.

A mãe fazia absurdos com a criança desde que ela era bebê. Ela mesma contou à professora que fazia de tudo para que essa canhota deixasse de ser a mão principal. Na hora da alimentação deixava-a com fome, caso, ela não conseguisse usar a mão direita para segurar o copo, a xícara, o garfo e até alguma fruta. Se não pegasse com a mão direita, além de apanhar, ficava sem se alimentar.

A professora ouviu e assinalou que ia fazer o possível para que a menina escrevesse com a mão direita.

No primeiro dia, chamou Matilda ao quadro para que ela desenhasse alguma coisa. A menina pegou o giz com a mão esquerda, a mestra, então lhe disse, para usar a outra mão. A criança já estava traumatizada, então, a obedeceu, mas, não conseguiu desenhar nada. Fez apenas, uns rabiscos sem nenhuma coordenação.

Voltou para seu assento e ficou observando a professora, que encheu o quadro com o alfabeto maiúsculo e o minúsculo em letras de forma.

Depois leu cada um e foi apontando as letras com a régua, e mandando que os alunos repetissem, conforme ela ia dizendo. No fim, disse que aquele tipo de letra era igual às impressas nos livros, denominando-as conforme as normas gramaticais.

A sala inteira em silêncio e atenta.

No começo da aula, durante as apresentações, alguns alunos eram tão tímidos, que engasgavam até para pronunciar o próprio nome. Ela foi a primeira a se apresentar e de imediato falou como trabalhava, como queria que os alunos se comportassem e mostrou o que estava sobre a mesa, além da cartilha que cada um dos alunos tinha adquirido, apresentou e só faltou mandar que os alunos cheirassem a palmatória de oito orifícios e a régua de madeira confeccionadas pelo pai de Matilda e acrescentou dizendo que se precisasse, ela iria usar sem nenhum dó, esses instrumentos nos alunos. Todos tremeram nas bases. Disse ainda, que quando alguém quisesse ir ao banheiro tinha que pegar a pedra que estava sobre a mesa. Caso a tal não estivesse por lá, precisava esperar ela aparecer. Isto significava que algum aluno estava usando-a e só poderia sair quando ela estivesse sobre a mesa. Não precisava pedir licença. A pedra era redonda, meio achatada, lisa e colorida. Era uma pedra bonita. Deveria pesar mais ou menos, uns quinhentos gramas.

No segundo dia de aula, ela pediu que copiassem o alfabeto que deixou no quadro no dia anterior. Matilda, claro, usou a mão canhota.

Ao chegar em casa naquele dia, a primeira coisa que ela fez na hora do almoço, foi contar à mãe da menina que ela certamente não iria conseguir, porque tinha nascido assim e com a mão direita ela não teria disposição motora para nenhuma atividade.

Mal terminou o almoço, a mãe já deu alguns bofetões na criança. Chamou a professora e ordenou que era para ela bater na menina, que ela não queria filha canhota, podia bater sem dó, quantas vezes fosse preciso.

Feita a autorização da malvada mãe, a criança começou a apanhar já no outro dia. Todos os alunos ficaram apavorados e contaram aos pais sobre o procedimento da professora com a menor aluna que havia na sala. Os primos de Matilda, depois de contarem aos pais sobre o que a professora fez, deixou-os muito contrariados e eles foram todos à casa dela, ao mesmo tempo, saber sobre o corrido e tendo a confirmação da própria irmã e da professora que também estava presente, fê-los ficar horrorizados. Não brigaram com a irmã, mas, disse a ela que o arrependimento por fazer isso com a filha, não tardaria a chegar.

Matilda ficou alguns dias sem apanhar e nesses poucos dias aprendeu o alfabeto e algumas palavras. A professora contou à mãe sobre o progresso da filha e da canhota usada, porém, a mãe continuou com e mesmo argumento. Era para não dar trégua, Matilda tinha que entrar na palmatória.

Assim, nos dias subsequentes, Matilda apanhava em todas as aulas.

Certo dia, num sábado, os pais da menina levantaram na madrugada para moer cana e fazer rapadura. A menina levantou junto para tanger os dois burros que puxavam o engenho.

A professora resolveu ajudar também. E do nada apareceu uma baita perereca no meio das canas, fazendo com que a professora saísse em desabalada carreira, em tempo de desmaiar de tanto medo do bichinho. Matilda, esperta, pegou a perereca e colocou dentro de um balde e o escondeu no jardim de cravos que a mãe cultivava num côncavo do barranco próximo ao engenho. Toda hora ia lá ver o bicho.

Na segunda feira, foi a primeira a entrar na sala e por a perereca dentro da gaveta da mesa da professora.

Nesse dia, a professora, ao se deparar com o réptil em sua gaveta, foi sair correndo da sala, derrubou a cadeira, tropeçou em outra e caiu estetelada no chão que o vestido foi parar na cabeça. Ninguém a acudiu, porque todos tinham medo dela. Porquanto também, não conseguiram segurar, senão rirem muito.

O primo de Matilda era o maior da sala. Levantou e foi ver o que tinha na mesa que a professora ficou com tanto medo. Matilda também se levantou e foi. O primo pegou o bicho pôs dentro da camisa e saiu lá fora, Maltilda foi atrás e disse para ele não matar o bicho, dando-lhe as melhores informações sobre o inseto. Pegou-o e levou para dentro de sua sacola.

Nesse dia, a professora dispensou todos. Não teve mais ânimo para conduzir a sala de aula.

A menina como sempre, ia correndo na frente. E escondeu o bicho no lugar de costume. A perereca gostava tanto, que não se mudou, ficou por lá até o último dia necessário.

Matilda pensou em confidenciar suas articulações sobre o que pretendia, mas, achou melhor calar-se. Seu pensamento era de que o primo não aguentasse segurar o segredo, caso a professora fizesse um interrogatório ameaçador.

No outro dia, assim que a professora chegou, pediu para alguém verificar sua mesa e gavetas para ver se o bicho tinha ido embora. Todos os alunos sabiam que ela estava morta de medo, contudo, não deixou de interrogá-los. Queria, por que queria que alguém soubesse como a perereca tinha ido parar na gaveta da sua mesa. Como ninguém sabia mesmo, todos negaram. Aí ela os ameaçou, dizendo que ia bater em todo mundo e mandou que fizessem uma fila. Primeiro os meninos e quando finalizasse o castigo deles, seria o das meninas. Não houve nenhuma menina que não chorasse. A fila dos meninos foi feita, mas, ela deve ter pensado que poderia se dar mal, principalmente, com os tios de Matilda, então, mandou que cada um fosse para a sua carteira, mas, que ela estava de olho em todos, se descobrisse, além de apanhar, ia expulsar da escola.

Matilda, apanhava todos os dias, até que conseguiu fazer seus rabiscos com a mão direita, conforme sua mãe queria. Por causa desse acender, deixaram Matilda em paz. A mãe não mais percebia sobre as outras coisas que fazia com a mão esquerda.

Nesse ínterim, seu pai vendeu o sitio e comprou outro, no município vizinho, de forma que Matilda ia se ver livre da professora bruxa.

A tal mestra era bonitona, arrumou um namorado que vinha vê-la todos os finais de semana, na casa de Matilda.

Na véspera da mudança, com todas as caixas arrumadas, Matilda arquitetou o que ia fazer com a moça, mesmo com o namorado presente.

Era no fim da tarde, não podia deixar para depois, porque assim que o rapaz fosse embora, ela iria para a casa vizinha dos compadres, padrinhos do bebê, seu irmão, e passaria o resto do ano com eles.

Matilda buscou a perereca. Trouxe na palma da mão preferida, como se trouxesse um presente e o reptil feliz com os carinhos da menina. Ela alisava com o dedo as costas do bicho e disse:

- Veja professora que gracinha! Um bichinho tão inofensivo e a senhora quase morreu por duas vezes, de medo dele. Ele não faz mal a ninguém, nem ao menos tem dentes e enfiou o dedo na boca da perereca.

- Misericórdia!

A professora saiu desesperada correndo e a menina foi atrás dela calmamente, ora corria, ora ia devagar, mas, cercando-a de todos os lados.

De repente, uma das vacas que estava com bezerro novo, partiu para cima da moça e ela, de fato enlouqueceu.

Foi atravessar a cerca de arame farpado, a metade do vestido novo, costurado pela mãe da menina, ficou agarrado na cerca. Dali, tomou o rumo do brejo e lá ficaram perdidas as sandálias, atolou-se até os joelhos e começou a chorar.

Nisso a mãe de Matilda ficou sabendo do que se tratava a correria desenfreada da professora e chamou a menina, mas, ela já acostumada a apanhar, uma surra a mais, uma a menos, não a faria desistir da vingança.

A menina sentou-se sobre o pedestal onde o pai tinha encravado uma cruz. Na época era de praxe as famílias terem na frente da casa, a cruz de Cristo simbolizando que a família era católica e lá ficou, com a perereca escondida na blusa.

A professora voltou chorando com as costas em frangalhos e as pernas enlameadas, sem contar na sandália nova que ela nem sabia onde tinha perdido.

A dona da casa acudiu-a. Ela tomou banho colocou outra roupa e veio ter com o namorado.

Matilda, a essa altura, já tinha dito ao rapaz quem era a mestra e tudo o que ela fez enquanto lhe ensinava e que a perereca estava escondida e bem alimentada há vários dias, esperando por essa oportunidade. O rapaz escutou e os olhos dele ficaram marejados.

A cara da professora era de um ódio tremendo da menina, mas, naquele momento nada podia fazer, talvez, nem conseguisse fazer mais nada, uma vez que a família no outro dia de madrugada, ia embora.

Matilda começou dizendo:

- Professora, querida, meus tios ano que vem não vão mais querer que a senhora seja professora dos filhos deles, porque ninguém merece apanhar como eu apanhei, por ser canhota. Sei que foram ordens da minha mãe, mas, se a senhora fosse professora de verdade, não teria acatado as ordens dela. Fez porque não é pessoa de boa índole.

Lembra sobre a perereca na sua gaveta, fui eu que coloquei, sem que ninguém visse e é essa mesma de agora e tirou-a de dentro da blusa. A professora não correu porque o namorado a segurou. Matilda continuou. A mãe, em pé na porta, com o cinto, esperando para entrar em cena.

Matilda disse:

- já nasci assim com esse defeito, que se alguém tiver alguma culpa por ele existir, são meus pais. Minha avó paterna é canhota e, no entanto, minha mãe nada diz. O que sofri foi traumatizante, acho que levarei por toda minha vida.

Isso que fiz hoje com a senhora, foi nada, diante de toda tortura que sofri. E não precisa correr mais, já finalizei minha vingança. Se eu fizer mais alguma coisa é bem capaz de a senhora cair dura e ter uma síncope. Porém, se eu quisesse, poderia jogá-la na sua cara, agora, mas, não vou tirar a vida dela, por alguém que não vale a pena.

O rapaz, com os olhos rasos d'água, saiu sem se despedir da moça. Matilda melou o namoro dos dois.

A mãe de Matilda, silenciosamente, foi cuidar dos seus afazeres.

A professora pegou sua mala, despediu-se e foi também.

Creusa Lima
Enviado por Creusa Lima em 06/06/2023
Reeditado em 07/06/2023
Código do texto: T7807188
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2023. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.