O Fugitivo

Nino sonhava ser um catavento, girando, girando, mas não um catavento estacionário em cima do telhado. Ou melhor que catavento gravitando cima de um suporte, um pássaro de asas abertas levadas pelas lufadas de vento. Um ponto no céu além do entendimento dos comuns. Sonhava voar o firmamento muito além do que suas vistas alcançasse. Inspiração era o que não faltava, e cada revoada de pássaros que cruzava o céu de manhã ou a tarde, para ele representava uma esperançosa viagem. Pensava com seus botões que deveria haver rincões muito além, de rincões. Seu pedaço de torrão era cercado de morrarias.

Às vezes passava-lhe pela cabeça, pensava feito os mais sofisticados pensadores que da rebeldia nasce o gênio, e que cataventos estacionários rodopiam, cumprem seu papel de ser tocados para lá, para cá, para direita ou esquerda, Norte ou Sul, Leste ou Oeste, mas nada mais representa, que uma biruta tocada pelo vento. E quando faltasse vento, o que seria do instrumento; ou mesmo baixasse sobre o local onde ela estivesse instalada um vendaval aterrador? Fatalmente seria escangalhada, destroçada, dilacerada. Nino refletia sobre tudo isso; e obviamente, queria ser mais que uma biruta despropositada. Sobretudo, alimentava seu ego com ideias sólidas, tal qual a solidez de um pássaro desbravador que voa por entre as nuvens. Porém, enquanto o prazer exige a mente no céu, a realização exige caminhada sobre solo firme. Duro; rijo.

Todavia, em seu âmago uma voz refreava suas visões imaginativas, tanto quanto os os instintos selvagemente pensados. Dia após dia, era mais e mais tomado pelo dualismo existencial. Com medo de ser mal entendido e de possíveis represálias, inclusive pela família, pouco revelava-se. Embora nunca tivesse voado por nenhum lugar além do imaginado, já havia decidido que quando crescesse seria piloto de avião.

Causando certo espanto à família, seu pai sumiu num final de semana qualquer. Na segunda feira aparecera com um livro e presenteara o filho. Nino lia-o com avidez. Devorava-o, como os felinos famintos se lançam atrás da presa. Cada dia três ou cinco capítulos a menos. O livro gerava um reboliço na mente do menino. Um torvelinho de águas revoltas, as quais seu barquinho de papel navegava. Sem dizer uma palavra sequer, sumia e retornava quando bem entendia.

Nunca mais parou em casa. Tal qual os segredos dos mágicos, sumia e do nada, aparecia. Tornou-se uma espécie de lobo solitário rondando lugares que nem ele vislumbrava conhecer. E depois de inúmeras idas e vindas; vai e volta, Nino sumiu. Fazia décadas que ninguém sabia de seu paradeiro. Seu pai se arrependeu amargamente de ter presenteado-o com um livro, cujo título seria a chave da liberdade. Porém, nada dizia que fora o "atiçador de inteligências" que causara o sumiço.

Desafiado por montes e baixios, caminhava cortando estradas. Em certo ponto mais adiante, estacou repentinamente, firmou as vistas no firmamento e ouviu o que dizia-lhe o ruídos das águas: "Após esse túnel montanhoso, tingido de azul com nuvens finas, tem um céu límpido e harmonioso! A paz de Deus não deve ser longe de lá".

Aqueceu o coração com a palma da mão, pediu a paciência que aquietasse sua mente, desatou o nó do compasso das pernas e prosseguiu viagem.

A última vez que fora visto, enviou uma mensagem para o pai através do rastro deixado no céu por uma aeronave: "Papai e Mamãe, o livro "O Fugitivo" não mudou, apenas reforçou a minha imaginação de mundo. Por favor, não me considere rebelde e desalmado sem família, como todos entendem. Se sou alguma coisa, no máximo, um fugitivo à procura de realizar seus ideais; e minhas asas estavam entre as nuvens. O pé de ipê amarelo que enfeita o jardim em frente a porta da sala está florido, quero pendurar minhas asas sobre seus galhos. E os meus irmãos, estão bem? Amo vocês. Estou ansioso para revê-los com saúde. Abraços do filho que muito admira-lhes"!

Mutável Gambiarreiro
Enviado por Mutável Gambiarreiro em 02/06/2018
Reeditado em 05/06/2018
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