Telhado, Eiras e Beiras

As emoções desmontam o telhado do coração e em mesma proporção, cerram, lacram, as portas e janelas do silêncio. O sentimento de solidão é uma nuvem escura, densa, carregada, carrancuda observada pelas nuvens claras e alvas como a neve. Num momento qualquer, elas se fundirão, diluirão em pingos de chuva que cairão em algum lugar. Ciência nenhuma é tão abstrata ou exata para definir quais e quantos corações serão encharcados pelo aguaceiro.

Corrida desenfreada. A tarde daquele dia agonizava os segundos de vida com uma cabeleira de fogo acima das morrarias. Nuvens em labaredas flamejantes barbarizam o ocaso até onde se via pedaço de céu. Em nome do arrebol crepuscular, mechas de fogo queimavam as barbas dos profetas que punham as caras acima das colinas. Esses pensadores se metem profetizar o futuro do universo, mas não prenunciam o vossos fins. Coitado dos infelizes! A noite não tardava aparecer com sua imensa capa preta. Um certo sossego pareceu mais conveniente que qualquer outra coisa, quando inesperadamente, um gato preto de olhos esgarçados e ariscos surgiu na campina contemplando o lugar onde outrora existiam pessoas afeitas aos encantos, dores, risos, ódio e amor.

Assim o rio partiu para uma corrida rumo ao destino desconhecido, ansiando por coisas que sequer imaginava como poderia ser …; e seguir em frete, era somente que restava-lhe. Pois, é preferível seguir caminhos à toa, que ficar parado, estacionário, estático, pensando um mundo de água à toa.

Não só ele, eu também; e uma vez que não tinha para quem confabular as doces amarguras da vida, cocorei ao lado do cupinzeiro e perdido em divagações, procurei encontrar-me do sumiço dado em mim, por mim. Se não estava em mim, devia estar em algum lugar; restava-me saber. Literalmente um aguaceiro de pensamentos passavam pela minha mente. Digo literalmente, porque havia chovido nas ribanceiras, acima nas partes altas e as águas desciam atropeladas, passavam agalopadas formando redemoinhos. Tanto quanto formavam, os torvelinhos desfaziam-se tão velozmente, que meus olhos reviravam na órbita acompanhando o movimento. Fora a cor barrenta, a sujeira representante do desbarrancamento das margens, o que é natural nesses ligeiros e intensos dilúvios, trazia na superfície uma garrancheira desalentadora. O emaranhado de paus e galhos, ao cruzar com o redomoinho, rodopiavam feito diabo doido em época de lua cheia.

Vez para outro, um escapava ileso e seguia rio abaixo. A maioria, não tendo a mesma sorte, paravam nos galhos estáticos de folhagens que varriam lisonjeiramete a água naquele ponto. Ingazeiros são árvores altas, desgalhadas, frondosas e de extensa copa. Mormente, como narciso se admirando no espelho, essa espécie de árvore ronda as águas; lançando sobre ela seus galhos e folhas. Uma simbiose interativa estabelece-se, formando uma espécie de "rede" natural, pescando os dejetos que transitarem pelo entorno. Passou por ali, está fisgado em nome da limpeza, aumentando o volume de resíduos no local. Já havia um montante razoável e aos poucos, iam se depositando nas encostas próximas das grossas e retorcidas raízes.

Outro aspecto relevante é a sombra gerada pelo arvoredo. Embora falhada pelo salpicado dos raios de sol que perpassavam os vãos formados pelas folhagens, a amplidão do arvoredo oferece sossego e tranquilidade para pássaros e aves. Por serem grandes, com galhos abertos e longos, ao cair da tarde, recebem a passarada para o alvorecer noturno.

Pássaros e aves de cativeiros nunca souberam e jamais saberão para quê servem as asas. E é o sol dar o toque de recolher, um a um, os esqueletos secos cobertos de penas das garças tomam assento. Quando cheios, de ponta a ponta, os galhos transformam-se varais embandeirados pela cor branca. Fiadas e mais fiadas são esparramadas nos arvoredos dos ingazeiros. E antes da noite apitar o sinal derradeiro para o início do espetáculo taciturno, a plateia está aposta, colorindo com o branco da paz as copas. Visto de longe, parecem véus brancos deslizando pelas costas largas e volumosas de gigantes adormecidos.

Ninguém anda sozinho, já dizia os caminheiros antigos. Então, quem seria o meu acompanhante? Deus? Talvez: ainda não tenho conhecimento sobre suas leis, testamentos e virtudes. Como apostar nas coisas divinas, se tinha topado com muitos diabos pelas estradas por quais transitei. Essas coisas não valem a pena pensar, pois Deus não se brinca...; deixe ele em paz, que em paz estou, cá. E por mais que não queiram, sempre tem alguém acompanhado alguém, motivo da sombra chegar de mansinho acompanhando a noite. Chegara pé ante pé. Embora assemelha-se a um gato rajado pisando em ovos, viera desmontando montes, tombando colinas, desfazendo sonhos, desmontando ilusões e sumindo com os raios de sol. Lindas colinas desapareceram, dando lugar aos tormentos. Choros compulsivos cortavam os ares. O horizonte, tanto próximo quanto ao longe, já não existia.

Por certo, escuridão é falta de iluminação; e onde estaria a lua para dar um pouco de luz ao condado. Vacante, em que céu ela estaria naquele instante? A noite, em um estágio qualquer das horas, mata o brilho que a ilumina. Àquelas alturas, apareceu uma estrela solitária onde as vistas alcançavam, porém desbotara imediatamente. Uma nuvem se formara do nada e abocanhara-a, como fazem as amebas. Contudo, nem tudo é ostracismo e da pior situação possível, tira-se algo de importante. Deveras, pode-se estar sem eira, mas ao observar o correr d`água, literalmente, está à beira. As águas abaixavam, a velocidade diminuía, os redemoinhos perdiam o louco bailado e por consequência, as correntezas aos poucos desfaziam-se dos novelos e nós.

Epílogo: era o que acontecia naquele instante; pelo menos no ponto do rio em que ainda existiam eiras, margens e beiras...; as águas quaisquer são incógnitas imensuráveis. Não menos, o telhado que tapa-me das intempéries memoriais que nunca tive. Contrário, das águas que passaram velozes ou mansas, sou uma cacimba seca de água turva. Árvore barrenta sem raiz; fruto sem sementes. Podem achar que não existo, porém, sou...; eclético, sou as águas que quiserem que o rio seja.

Próximo capítulo: A pedra do desejo.

Prólogo: a ironia ainda é o meio mais razoável de combater os falsários, os hipócritas, os mentirosos, os intelectuais e àqueles que batem os pés e dizem ser retos de atos e virtudes...; afinal, é impossível haver rio retilíneo de fio a pavio, sem curvas e sinuosidades, isento de meandros do nascedouro até a foz. Rio nasce torto, morre torto; e nem a revelação do desejo de uma pedra que encontra-se no caminho altera o seu comportamento, roteiro e curso. Rios são durões e implacáveis e não se deixam abater pelas súplicas dos rogados.

Mutável Gambiarreiro
Enviado por Mutável Gambiarreiro em 27/11/2017
Reeditado em 27/11/2017
Código do texto: T6183308
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