Climatério
Ninguém recebe o que não lhe é dado, bem como não exercita o que não sabe, ou pensa saber; e por não exercitar o que não sabe, não peca. Essa é parte da estória de uma Menina e sua cadela em tempos primaveris.
Nem toda paisagem traduz em fertilidade a beleza que aparenta por fora! Muitas vezes o lindo rochedo é formado por um monumental pináculo oco, com as paredes forradas com o silêncio vazio!
É quase um livro. Onde, em que prateleira de biblioteca cabe quase um livro? Ou é um livro, ou é um rascunho que pouco respira, ou são páginas mortas, soltas jogadas ao léu. Das três, uma. Escolha! Sim, digo quase um livro porque, embora as páginas estejam amarelecidas pela fuligem do tempo e a obra tenha sido escrita ainda numa ocasião em que se faziam coisas como o enredado, as páginas circulam livremente pelas editoras à espera de alguma moça que se espelhe em seus capítulos e proceda como foi o seu antepassado. E caso este sonho, esta façanha venha a se realizar, as folhagens murchas e secas se tornarão verdes e as flores de quaisquer espécies desabrocharão em plena estação outono. Desertos, campos, e trigais áridos e secos serão bosques floridos e a primavera chegará antes da época.
Sempre bela de alma e perfumada de espírito. Deleito-me com o seu corpo desnudo, entrando em meu quarto e despudoramente, invadindo as minhas intimidades. Por três meses, divirto-me cheirando-a, frágil como orvalho matinal, escorrendo por suas pétalas, aterrisso em algum lugar de águas cálidas e por ali fico por três meses, quando novamente retorno à solidão dos maltrapilhos vagantes; local que tenho o mínimo contato com as belezas da primavera. Quê estação linda, aconchegante, perfumada, brilhante! - declaração de um infecundo androceu.
A primavera oferece ao desbravador das letras, mil e uma inspirações sem requisitos para serem ponteadas no deslize da ponta da pena sobre a folha de papel desnuda. Em minutos o clímax primaveril saúda os enamorados. É primavera!... mas será que tudo que floresce, renasce nesta estação são flores?
Impossível lembrar o ano, mas certamente aconteceu numa noite sombria de setembro. Numa daquelas noites que nutrem de tédio os insones, que um líquido de cor escarlate e cálido desceu-lhe pelas pernas. Não deu a mínima, pois sabia que era uma menina sexuada e mais cedo ou mais tarde isso iria acontecer. “quando isto ocorrer, é a menarca dando as caras, inundando você com o sangue da razão e maturidade”, dizia sua mãe.
Se fosse índia, provavelmente fariam um ritual para comemorar o fato, mas sendo uma menina branca de cara pálida e espinhosa, continuará como sempre fora. As espinhas apareceram. As faces do rosto ficaram cascorentas, cheias de pequeninos cones eruptivos, prontos para explodir em chamas. As alterações no corpo tornaram-se visíveis e o que mais aguçava a rapinagem dos amigos de escola, era o quadril, que tomava forma de viola; aliás, uma viola excepcionalmente esculpida. Poucos luthiers teriam a sensibilidade para projetar, moldar àquela criação. Às vezes as mãos tecem o erro. Penetrada por olhos intrusos, sentia-se comida em pequenos nacos. Tamanha era importunação, às vezes chegava a se contorcer, como que ferroada por algo. O visgo dos vermes em forma de olhos alheios tem esse poder e devoram a presa ainda respirando, ainda mais porque carne fresca, em sangue vivo, é a dieta dos carnívoros.
Ela sempre cobrava da mãe, como se a matriarca fosse alquimista e tivesse o poder da transformação, o corpo de mulher feita; e eis que agora a silhueta daquilo que quisera estava ao seu alcance e lhe acompanharia para sempre, e caso esquecesse, todo mês seria lembrada. A puberdade marca a transição da adolescência para a fase adulta; e agora que fora agraciada com as coisas de mulher adulta, às vezes bate-lhe o arrependimento por ter acontecido tão precocemente, antes dos quinze anos. Nesses momentos, a imaginação e os quereres tornam-se dúbios; pois fatalmente não brincaria mais de boneca, amarelinha e falaria sozinha com algum fantasminha camarada. A subjetividade infantil vê coisas jamais vistas por adultos. E enquanto certos adultos são lobisomens, monstrinhos devoradores de inocências, as crianças são anjos angelicais.
Despertou assustada com uma dor intensa. Sentia um bisturi amolado cortando- lhe o baixo ventre. Teria a cegonha aberto as asas e realizado um voo nupcial fora de época? Não, cólicas intensas. T.P.M: três letras de muitas e variadas dores. Dor de cabeça, dor da indisposição, dor no baixo ventre, dores nas costas, dores das dores da T.P.M.
Para quem confidenciar o fato? Na realidade não precisava de conselhos ou maiores esclarecimentos; porque certa vez, costurando, cozendo as roupinhas para cobrir as vergonhas do irmão mais novo, ouviu sua mãe dizer que àquela dor, aparentemente insuportável, tenderia a normalizar com o tempo. Ao que ela hesitou em perguntar de imediato, mas tomou coragem e quis saber quando tivesse suas entranhas visitadas pelos sintomas que alteram o humor e dá novas formas ao corpo, em que ano conseguiria a façanha de se ver livre daquele tormento mensal. Sua mãe emudeceu e nada disse, mas cacarejou consigo: “coitada desta infeliz, é a primeira de muitas dores e já está assim: morrendo aos poucos. Vai sofrer tanto!” Para o bem familiar, por mais sensível e choroso que seja, o que os ouvidos não ouvem, não machuca o coração. E entre fingimentos e sofrimentos íntimos, a família seguia unida pelo sobrenome.
Contudo a matriarca não era tão má quanto aparentava, e comprometera consigo que no aniversário de quinze anos da filha daria um presente, uma lembrancinha que ficaria marcada para o resto de sua vida. Guardaria segredo até última hora, porém tinha certeza que, fora a utilidade, a filha iria gostar. Por ter passado por aquela idade, sabia que toda moça púbere necessita de um presente como o que seria dado. E embora não fosse afeita aos gracejos que toda mãe possui, o presente seria entregue numa caixinha embrulhada em papel rosa, amarrada com um laço e um cartão com a inscrição: “Querida filha, parabéns pela data! Bem vindo ao mundo dos adultos, agora que não é mais menina, as portas se abrem para que você colha as mais belas flores no jardim da vida. Que sejas feliz como mulher feita”!
Mãe e filha dialogavam de forma truncada, engasgada, pelas metades. Uma rosnava para um lado, a outra pigarreava a resposta do outro; e cada uma assassinavam os segundos de costa uma para outra. Apesar de habitar o mesmo teto, comer na mesma mesa, as duas pareciam dois continentes longínquos. Aparentemente, sentimentos distantes. Porém se não ouvia maiores detalhes sobre o assunto em casa, a filha já ouvira falar sobre os calores da menopausa, climatério e sofrimentos mais de velhas damas. E se com a mãe a harmonia e o diálogo se arrastavam entre a necessidade, solilóquios e obrigatoriedade, com o pai a comunicação era um pouco mais livre e desenvolta; mas nem por isto, a liberdade de abraçarem-se, trocar carícias e o falar abertamente comiam na mesma mesa.
Lá fora, na rua solitária a qual seus pais fincaram àquela casa pintada de verde-abacate, além do tropel das crianças, o vento minuano ainda meio cambaleante pelo implacável sono matutino roçava mansamente as folhas nas árvores, forçando o desprendimento e um chuvisqueiro de flores que iam se deixando levar pelo sopro, até não poder mais. Vagarosamente, cuidadosamente, eram depositadas no asfalto; formando uma saia enorme e salpicada de cores no pé dos arbustos.
Enquanto desfiava as cascas das faces com as unhas, a menina fantasiava o passado. No fundo de sua casa havia uma árvore que em tempos idos serviu de paradeiro para os pássaros que cruzavam o céu em revoada em busca de alimento, água e pouso. Em sua frondosa copa, de galhos retorcidos e trançados como teia de aranha, forrados pelas folhas e musgos limbosos, aves e pássaros aninharam-se em nome da renovação das espécies. Instintivamente, até quando a árvore oferecia-lhes os meios de sobrevivência sem cobranças, taxação e dispêndio de energias, muitos habitantes permaneceram naquelas imediações fazendo algazarra; mas ao escassear os recursos, sentiram-se obrigados a migrar para outras bandas. Porém, às vezes voltavam às origens e por instantes, pousavam em seus galhos secos ouvindo os estalidos das rachaduras dos galhos e tronco.
Em tempos de vigorosa fortaleza, formidável fartura, a menina cofiava suas grossas raízes, recostava em seu tronco, cujo sombreado lembrava uma saia pinçada, contemplava o sol e punha-se a zombar de sua sombra. Pensava que sua existência estava condicionada, só se manifestaria positivamente se ironizada. Nesses momentos de divagações existenciais, por fim, afugentava as elucubrações, imaginando que por si só, viver já é uma tremenda ironia. Contudo, preenchendo-se com as extravagancias de pensamento, flutuava no universo niilista e contrário à serventia e doação da árvore as aves e pássaros, soliloquiava sobre a confusão que sua espécie faz em definir individualidade e individualismo, pois categoricamente, o primeiro caracteriza o ser que é singular e único; enquanto que o segundo segrega, divide em grupos, tornando os integrantes egoístas.
Ela encontrava-se prostrada de corpo e alma no batente da porta da cozinha. Deixou o espírito para trás e materialmente, caminhou alguns passos. Estacou debaixo da árvore. Abraçou-a. Os raios de sol abrasavam-lhe a cabeça, aqueciam suas faces, incendiavam-lhe o corpo. Como pingos de chuva que se rompem pela ação do vento, lágrimas salpicaram seu rosto. Todavia, o agora é muito mais que o segundo que ficou para trás. E por saber que o seguinte é incerto, depositou sobre uma de suas forquilhas, um ramalhete de flores. Belas e coloridas flores. Consternada, queria desamarrar os nós, os quais, como demônios tentadores, permaneciam ali, imóveis, irredutíveis ao seu lado. Com a voz embargada, algo lhe torturava, apertava-lhe a garganta, corroía-lhe as vísceras. Em meio ao desespero, um solilóquio balbuciado lhe tragou a esperança de paz: “para se perder nesse mundo de nosso Deus, bastam os que já vieram, os aqui estão!” Fez o sinal da cruz, beijou os dedos e se retirou do local.
IMG_7671.JPGEspécies de pássaros que voam isoladas, desfilam a envergadura das asas sozinhas, que não se adaptam ao gregarismo, é o reflexo da solidão; ou talvez não, pois a superação é mera subjetividade incompreendida. Existem tantas coisas que a ciência, além de não explicar, desconhece!
Provavelmente em breve, não demoraria muito, seu pai poria fim naquela inutilidade, pois, por que manter aquele imenso espaço ocupado por algo que não tinha a menor finalidade? Se os humanos procuram as serventias, os utilitarismos nos próprios humanos, resguardar uma árvore podre, despedaçando aos nacos, é no mínimo falta de coerência, insensatez por parte de quem assim pensa. E em vez de uma árvore, naquele espaço de terra adubada e fértil, onde as minhocas pululam, saem fora da terra aos borbotões, seu pai plante famílias; que além de rentáveis, traria outra aura, alegres burburinhos ao ambiente. Contrário de sua filha, não suportava mais tanta monotonia, tanto dentro de casa, quanto debaixo daquele pé de árvore. Definitivamente, já havia dado que tinha de dar.
Portanto, qual a utilidade de uma árvore seca e quebradiça? Aliás, ultimamente com o desprendimento dos garranchos que caem dos galhos que ainda resistem à secura da velhice, está dando é trabalho. Todos os dias, assim que a tarde desgruda do dia e prenuncia mais uma noite de intolerâncias, a filha é escalada para fazer a limpeza do quintal; serviço que faz sem reclamar e de bom grado.
Talvez faça o trabalho em agradecimento aos momentos expressivos que passara debaixo de seu esplendoroso sombreado, refrigerando as inconstâncias dos pensamentos de quando era criança. Debaixo de seu sombreiro, ela praguejou o céu, enalteceu os pecadores, ludibriou sua sombra. Por sinal, de acordo com a posição do sol, morria de medo de pisá-la; pois a tinha como parte de si. Foi também naquele ponto fixo, onde o sol sem fazer nenhum esforço invade a sua privacidade, quantas foram as vezes que falando sozinha, conversando com Deus, embalou, fez dormir em seus braços uma boneca invisível. Em transe, falava um monte de coisas desbaratadas que somente o despedaçado pedaço de madeira, denominado por ela, como boneca, entendia. Em seu íntimo, de menina puritana e ingênua que era, imaginava-se mãe; uma mãe terna de coração e atos.
Debaixo daquele pé de árvore que tombava por terra as folhagens da displicência, ela cansou de brincar de ciranda, pular corda e entrando dentro de sacos alvejados de linhagem, imaginava flutuando nas nuvens. Viajando em seu aviãozinho particular que não saía do lugar, pegava a roda do carrinho do irmão mais velho, que dizia ser o "manche" e acelerava; e estando a muitos pés da terra firme, o que mais martelava sua cabeça miúda, o que mais queria e pedia para todos os santos, é que o amanhã se apresentasse para ela o quanto mais cedo. No fundo, no fundo, embora não demonstrasse os motivos, ela parecia ser uma menina ansiosa. No entanto, nada mais que ansiedade de crianças; mas contrário das crianças egocêntricas, que querem tudo para si, ela satisfazia seus apetites e vontades com o que possuía. E o que não possuía, criava, imaginava, inventava em sua mente.
E ainda que viesse chiar sob a ardência cruel das labaredas, para todo o sempre, representaria para ela o confessionário e o espelho que não tivera. Jogou os sacos de lado, e limpou-o com toda força que tinha nos pequenos braços. Caprichosamente, como artesão que esculpe sua última obra, retirou as cascas do tronco e raízes, deixando as fissuras e veios à mostra, e jurou por tudo que é sagrado que compraria uma lata de verniz para envernizá-los. Transformaria-o num Adonis; e até onde a sua altura lhe permitisse, renovaria sua beleza; e o brilho seria mera consequência. Todavia, ao saber que nem toda paisagem traduz em fertilidade a beleza que aparenta por fora, uma profunda e repentina desilusão interrompeu a sua euforia de menina púbere! "Para se perder nas confluências deste mundo sonso, ainda que não tenham pedido, pelo motivo de já ter vindo bastam os que e estacionados em uma delas"!
Apenas o início de muitos capítulos... e por enquanto o Prelo é sonho duvidoso, sonho mal sonhado e distante; mas o climatério virá naturalmente com o decorrer da idade e será descrito conforme a continuidade da narrativa. O viés é que que se tudo der certo e as flores não perderem a vitalidade até lá, se mantiverem disponíveis para o baile noturno entre o androceu e o gineceu, é bastante provável que o Prelo também se realize, com uma diferença: durante o dia, com o sol a pico, às claras. Torçamos!
O capítulo seguinte porá em evidência, elucidará os céticos e incrédulos que desprezível e infeliz é o niilista, cuja liberdade, autonomia e independência dependem da disponibilidade de um, ou de muitos.