A Liquidez dos Tempos
Enquanto não éramos irmãos
Dizem os saudosos que recordar, lembrar o passado é viver o presente; talvez até seja, pois prefiro alimentar o presente com o que passou, a morrer no ostracismo do esquecimento daquilo que não voltará jamais. Se não quero perecer num instante qualquer, ilusão e sonhos, sempre!
A pior forma de prisão é aquela em que o prisioneiro não tem consciência da espessura dos ferros das grades que o prende. Enganosamente, aparentemente eles não existem, mas ao bater asas, o prisioneiro tomará conhecimento de seus algozes.
No inicio era tudo brincadeira de dois adolescentes despreocupados com o futuro. Como arquitetos desconhecedores das teorias geométricas, rabiscávamos planos inexequíveis em folhas de papeis limpas. Tudo era inovação; colagem em papel carbono. Gênese em botões de rosas. Pétalas vívidas. Androceu e gineceu despudorados que fartavam seus instintos em palavras vagas. Como oceanos navegáveis, navios esquivos das tormentas, divagávamos o nosso lúdico e incompreensível mundo. Um mundo embora comum, livre dos pesadelos das cobranças. Por sinal, nem imaginávamos que o contrário pudesse acontecer; pois, parecia que nada iria além do que éramos: lunáticos inconhos emparelhados.
Sair de mãos dadas; abrir a porta do carro; ser prioridade em quaisquer ambientes; receber flores aos finais de semana; passear em parques; sua única companhia para ir ao teatro e cinema, fazia de mim uma mulher, além de primeira dama. Sua finesse de gentleman, cativava e conquistava-me a cada ato. Sentia-me insubstituível. E ao despedirmos, ele “besuntava” meus lábios com o leve aroma da fidelidade. Com quanta amabilidade, sensibilidade e benevolência aquele ser me envolvia. Estando com ele, sonhos e magias aconteciam, bastava deixar-se levar pela fluência das palavras. Pelos leves toques com os quais acariciava-me. Embora não tenha sido educada ouvindo contos de ninar, o nosso envolvimento era um conto de fadas.
Escrevendo, lembrei-me da primeira noite em que criamos asas e fomos visitar as estrelas. Em casa, todos dormiam. Silêncio até dos animais domésticos. Acionei o botão da campanhia que em ocasiões como aquela nos tocava, e numa sintonia além-humana, ele chegou. Despimos das vestes: eu da camisola, a qual suas implicadas investidas e devaneios iniciavam por ela; e você, de seu escafandro preferido. Quando dentro de algum deles, parecia um Platão teorizando o amor não revelado; apenas interiorizado pelas atitudes e brindado pelas constelações.
Vestíamos as asas da liberdade e saíamos vagando a esmo. O universo se abria para nossa passagem. Para aqui, chega ali, observa os vales e fiordes acolá e íamos subindo; quando dávamos por conta, estávamos tocando as estrelas. Cada uma delas irradiava uma energia específica: uma de arrepio; outra de êxtase; outra a sensação de leveza; outra de murmúrio. Uma delas insinuava uma explosão de meteoritos, que se viesse acontecer, mataria a humanidade. Ótimo que tenha ficado apenas no traçado das ideias e estando segura ao lado de um protótipo dele, levava-me a crer que Platão realmente existira.
Com ele aprendi que os olhos que apreciam apenas o externo, saciam o apetite da carne. Porém, aqueles que olham para o interior, despertam a leveza da alma. Ambígua, mas verdadeira visão do sábio.
Outra passagem pra lá de espetacular, era quando ele abandonava o lado platônico e inquiria-me poeticamente. Tomado por um híbrido de sensibilidade e refinada agudeza, recitou:
Quando quer:
Recupera as peças,
Adivinha meus pensamentos,
Perscruta minhas fraquezas,
Disseca meu íntimo.
Em seguida, dando a real conotação de um diálogo e pedindo silêncio para os vulcões, tormentas e aviões, vociferou para os lobos, que imediatamente sufocaram os uivos:
Quando o inverso:
Vento fugaz,
Abismo profundo,
Negrume voraz,
No qual, silencias.
Naquela ocasião, você devia estar tomado pela debilidade do amor e a fúria dos mares; pois, flutuou do raso ao profundo. Do ínfimo ao gigantesco. Do esquilo serelepe ao bicho preguiça. E naquele êxtase insano sem proporções e limites, ficamos o resto da noite. Longo e curto transe naquela noite em que suas palavras atingiram a minha essência, silenciaram as minhas súplicas, aquebrantou o meu ego.
O nosso primeiro filho, a linda Júlia está com 3 anos, cheia de gracejos e preparando-se para botar a lancheira no ombro rumo à escola. O uniforme em saia pinçada caiu perfeitamente ajustado em seu pequenino corpo ainda em formação; no entanto, já se vê as curvas da bela moça que será. A genética não falha.
O Daniel, esta com 2 anos incompletos. Sorri e ensaia completar o “mama e papa”. Traz consigo a robustez de um touro em miniatura. A casa está ficando pequena para ele e quando deseja algo, choraminga até conseguir o seu intento. Crianças são autênticas e não menos, chantagistas. Sempre as observamos e em cada sorriso, em cada engatinhado, em cada choro, em cada forro de mesa puxado, em cada mamadeira deixada pela metade, a cada fralda trocada, estamos aprendendo com elas. Crianças unem e desunem.
E nós: eu e aquele que me ensinou a sair do corpo e apaixonar-se por estrelas? O passado distanciou-se do presente, motivo de estarmos vivendo o período das verdades, das realidades na nossa relação. Uma relação desbotada. Insípida. O automatismo do nada, ou do tudo, motiva-nos à irmandade e impossibilita-nos de despirmos das vestes habituais e com as asas das fantasias, visitar as estrelas. Ademais, o confinamento das grades de um apartamento não possui poesia, ideias platônicas, poleiro para os periquitos piar, pomar para as abelhas captar o néctar da florada, regatos para os sapos coaxarem e o monjolo, por onde passeávamos engendramento ideias, diálogos e planos denotados pela liberdade de amar. As assinaturas impuseram regras e baixaram liminares em nosso cotidiano. Oficializamos a nossa união através das assinaturas; e também por elas, a tácita separação.
Agora, vindas dele, a cada cem sins falados de boca para fora, (quando ditos e revelados) equivale a um não de coração pra dentro. Fora isto, noto em seus olhos: “até quando ficaremos à mercê, sujeitos as palavras que o padre falou”. Por mais que eles queiram, seus olhos não me traem. E se nunca mais fomos os mesmos lunáticos, nos tornamos irmãos constituidores de família. Embora não pensássemos nisto, por mais que não queiramos, não fugimos à regra social de aparentar por fora, o que não somos por dentro.
A solidez do concreto em nome da relação, supostamente perfeita, nos dispensou das fantasias do amor que vagava rumo ao subjetivo, ao inusitado, à completude, rumo à fusão de elos perdidos; fatores que prendiam e tornavam a corrente do amor totalmente independente e livre. Pode-se dizer sem medo de errar que este é o amor que não requer algemas, e por não requerer juras, é amor libertário. Amor sem dissolução, amor assinado por Platão.
Neste final de ano, fomos “comemorar” a passagem em família. Adentramos à casa: ele na frente e eu com as crianças, atrás. Fomos recebidos pela Blowin'in The Wind; obra prima do Bob Dylan, que naquele instante tornara melódica e suave aos tímpanos na voz do violonista que a interpretava. Sentamos e após breves balbuciares, fomos servidos com um Gim tônica com bastante gelo e uma fatia de limão para ele; e para mim, uma coca-cola.
Diante do alarido, sacamos os celulares e entretemo-nos em olhar a tela. O silêncio insistia em acompanhar-nos. Ele pediu mais uma dose. Mais uma...provavelmente tomou umas dez doses. O momento chegou. Era ano que findava e braços que entrelaçavam-se. Cada abraço vinha acompanhado de um “feliz ano novo”. Ouvia aquilo e nada dizia: para mim, enquanto não éramos irmãos, felizes foram os anos velhos, que não voltam mais.