A locomotiva das sete.
Tomo café. Um completo café com cereais; variados pães integrais; manteiga da mais pura nata do leite; muitos sucos e frutas. Adoto mais o frugalismo, do que qualquer outro meio alimentar. Embutidos nem pensar e bastam os embustes dos políticos. Nada dos modismos e regimes urbanos. Como o que quero, quando quero.
Ouço um zumbizar. A Natureza me fascina. Enlouqueço. Abelhas trabalham noites e dias a fio porque não sabem o valor do ócio. Contrário dessa sociedade de polinizadores, os humanos são cheios de frescura por coisas efêmeras e nada de emoção pelo seu semelhante. Deveriam imitar quem é para ser imitado, mas não...aliviam suas dores e pesadelos existenciais com os animais domésticos. Cães e gatos; antigamente, até rato. Vai haver um dia que o rato comerá o gato. Talvez já haja. Não sei.
Vão à feira, ao shopping, ao supermercado com os animais expondo seus focinhos sobre o vidro do carro. Um luxo. Revezam no cara de um, focinho do outro. São bem parecidos. Iguaizinhos. Até parece que resolvem os seus problemas! Seres humanos são assim: enigmas indecifráveis. Cada louco com sua loucura. Eu devo ter as minhas. Nada relevante, claro!
Saio para uma caminhada. Aprecio o frescor da manhã. Ouço o trinado dos pássaros. Uma cachoeira convida-me para relaxar. Esquecer do mundo. Folhas farfalham. Os raios de sol aparecem entre elas. Brinco com aranhas e lagartas. São inofensivas; suas teias não me pegam. Uma mosca cai nas garras de uma delas. Alimento garantido. Na Natureza é assim: dormiu no ponto, vira petisco do predador. Tudo muda conforme a ocasião e necessidade, fato que ocorre com os humanos.
Lá longe, bem distante um apito. Parece ser uma locomotiva pedindo passagem. Ao que tudo indica, dará tempo de ir até a ferrovia. Deve ser emocionante ver uma locomotiva arrastando uma montoeira de vagões: bate-bate louco. É a hora dela remoer-se, faiscar sobre os trilhos. Pontual, é a hora dela. Tudo tem hora: até a morte. A cada segundo, uma vida a menos. Isto é o dualismo de viver. Incrível como Deus criou todas as coisas para funcionar. Quem rompe, destrói, somos nós.
Apresso os passos, no descompasso. Exercitar, praticar esportes auxilia no movimento peristáltico. Aproximo ofegante. Dito e feito. Estou meio apavorado. Embora não seja a primeira vez que deparo-me com ela, tenho certo medo. Cada experiência é uma experiência inusitada. Pensando assim, evito ser traído. Diminuo os passos. Agora já apita mais: berra. Berros ensurdecedores. Tresloucados. Vem devorando, esmagando tudo. Fuuhco. Fuuhco. Fuucho. Lá vem ela desgovernada. Desde criança, qualquer descontrole causa-me certo terror. Sou uma pessoa empática. Mas para esses sons: apático.
Fico reticente e sobre o trilho, sento. Levanto para a serpente metálica passar. Fico de cócoras. Passa um, passa dois, três...passa cinquenta...passa...levanto para reverenciar a metamorfose. Mudança de estado do líquido-sólido, para sólido, somente. Assim que passar o último vagão, provavelmente não nos veremos mais, nunca mais. Dou uma olhadela meio desconcertada. Um uma piscadinha. Mais outra. Nada. Dou tchau despretensioso que não é visto. Insisto com mais um. Sou invadido por um tremor. Irredutível, voraz, ela não dá a mínima.
Como gostaria que retribuísse com o mesmo grau de sentimento que sinto por ela. Sinto um tacho fumegante queimando de vergonha as minhas faces. Torno-me vulnerável e sensível à medida que avanço na vida. Aceitar a despedida é sempre um momento difícil, pelo menos para mim; ainda mais ela que vai indo devagar. Sonolenta. Vagarosa. Ela, somente ela: A locomotiva das sete. Estou arrependido pelo ato que estou cometendo. Isto é a minha sofrência. Demência.
Lá vai o último vagão adentrando o túnel da mata densa. Faíscam o rabicho cor prata sobre os trilhos. Repito o tchau. Novamente sou ignorado. Verdadeiro rolo compressor. Nós, humanos não gostamos de perder nada. Somos materialistas, embora não assumamos esta condição. Alguns são tão gananciosos e quanto mais tem, mais querem. Existe um provérbio popular que diz “que quanto mais se quer, menos se tem”. Tenho minhas dúvidas, pois são tantas conquistas ilícitas, fraudulentas que mostra que o tal aforismo ficou no passado; afinal, como a água nas torneiras está escasseando, cobiçam a fonte. O manancial.
Consternado, dou a última olhada. Uma olhada de soslaio, pois não quero ser alvo de chacota. Humilhação. Exato: humilhação de fazer o máximo e não receber nada em troca. Sinto-me entristecido por não por ir. Onde vai dar aquele oco lúgubre. Estreito buraco infindo. Raso. Profundo. Tenho pena daquela coitada desgovernada, que sem saber de nada, irá por onde a goela movediça a levar. Ingenuidade: esta é a palavra.
Por mais que neguemos, ainda existem ingênuos e autênticos neste mundo. E devem ser estes que herdarão o aprisco do céu. Reinarão no paraíso com a lua e estrelas.
Noto que vai sumindo, sumindo, esvaziando. Esvaziando no sumiço. Não acredito que ela se sinta leve: vazio, isso sim. Consolo-me em saber que tudo na vida tem um fim. Isto ocorre com os rios; com a alegria; com a tristeza; com os túneis cruéis; com os cemitérios; com as locomotivas. Definitivamente olho o movimento movediço. Redemoinho. Vulcão. Aperto um botão. Foi...foi para nunca mais voltar.
Viro as costas. Finjo não estar chateado com a situação que eu mesmo quis e propiciei. Continuo praticando meu esporte matinal. Os movimentos já não são mais os mesmos. Tudo é calmaria. Leveza. O agrado do desagrado. Já não posso contar mais com aquele turbilhão desarranjado de metal; definitivamente não. Deixa que vá...vá para onde for; passe para onde passe; que tenhas uma boa viagem; um final feliz. Por merecimento, o céu é o limite; mas nunca sabemos os desígnios que nos espera do outro lado de lá. Ida sem volta de uns, partida de outros.
Depois de presenciar, observar, tirar minhas conclusões sobre a hora da locomotiva passar, retorno ao meu lar. Lar, doce lar. Porém, sempre remoendo, mascando, ruminando o pensamento: para onde ela foi...será que está bem? Possui um lar? Uma casa para lhe abrigar? Uma família para brigar, discutir, amar? Onde estiver, que estejas feliz, é o que lhe desejo!
Com ela, A locomotiva das sete, regulo o meu relógio biológico. Minha vida, meu bem estar, minha felicidade sob seus gemidos ensurdecedores, sob seu calor enfumaçado, enfim, anda sob suas esmagadoras rodas de ferro. É ouvir os seus apitos esganiçados, corro, disparo em desabalada carreira para espreitar o comboio de latas passar. Pedindo passagem, preferência, chega atropelando tudo, quebrando tudo, desfazendo de tudo. Alucinante e lancinante é A locomotiva da sete. Embarque nessa!