Mulher-Garoupa

Foi um sonho. Um final de semana em Itaipava. A casa de veraneio, bela, remanescente dos anos 50, com suas janelas brancas e grandes. A Varanda vermelha, virada pro lado de dentro do terreno. A grama deliciosamente cheirosa. Lembro dos bangalôs de madeira, os quatro lado a lado, no terreno ao lado da casa, guardando a piscina da vista dos que passassem pela estrada.

Lembro da piscina com belas pedras em toda volta, regulares e ásperas. O azul da água parecia quase irreal. A menina que estava a falar comigo, era um espírito, tenho quase certeza. Linda demais, lembrava um comercial da década de 70. Os seus cabelos e o cheiro que exalavam não podiam ser de verdade. Eram coisa do passado, com certeza. Ainda assim, dela pouco mais que isso eu lembro. Só a sua voz esteve sempre presente, me explicando tudo que acontecia, tudo que eu via, menos a Mulher-Garoupa.

Eu na piscina, e até mesmo a menina já não estava por perto. Só conseguia ouvir a voz dela. Ao submergir, me espantei com o tamanho do peixe... Não esperava ver nada tão grande numa piscina. Mas imediatamente reconheci o formato, o jeito do corpo e tudo mais. Garoupa. Não me senti com medo, apesar do ineditismo da coisa. A menina me dizia que a Garoupa tinha sido trazida de outro lugar. Não passou pela cabeça na hora, indagar-me como podia sobreviver tão majestosa de movimentos numa simples (ainda que bela) piscina. Acompanhava commisto de fascínio e precaução o nadar do peixe. Aproximou-se de mim, procurei ficar atento aos dentes, e sempre alerta a uma reação. A voz da menina me explicou que mesmo que a Garoupa fizesse menção de me morder, para que eu gentilmente segurasse o inferior de sua mandíbula e desviasse seu avanço.

Iniciou-se uma dança aquática, e posso jurar que a Garoupa se divertia, assim como eu. Descobri que por mais que tentasse, o belo peixe não conseguiria me ferir. E neste momento me veio a certeza dupla. O peixe não queria me ferir. E era mulher. Ao tomar posse dessa certeza, tudo mudou. A voz da menina desapareceu. Emergi da água, e me deparei com o mais belo céu de entardecer que já tinha visto, ainda que a claridade estivesse presente ainda, uma hora dourada. E sem tanta surpresa, na minha frente, meio corpo fora da água, a Garoupa transformada em mulher.

Tinha diante de mim um ser admirável. Desde o rubor saudável da pele, até a perfeição das formas. A aparência de mulher forte, roliça de tudo. As maçãs do rosto como que coradas do sol, os olhos de um castanho claro, os cílios ainda molhados, fixavam os meus. E que conhecimento, que confiança, que simplicidade transmitiam. Olhos de mulher que conhece o que olha. Mulher que lê as pessoas de dentro pra fora. Enquanto me perdia nos detalhes da mulher, algo em mim insistia na inverossimilhança do que ocorria. Lembrei-me de sereias, Iaras, lendas e filmes, mas aquela morena linda de cabelos cheios e fartos, tinha pernas, pés e cheiro. Sim, cheirava a infância, a saudade, a casca de fruta. Cheirava a grama aparada, a chuva que começa a cair. Cheirava a amanhecer de dia frio. Toquei seu rosto. Ela sorriu. Perguntei se podia tirar uma foto dela. Ela falou em uma voz muito baixa, muito cuidadosa, que podia ficar apenas dois minutos fora da água. Pediu que eu guardasse sua imagem na mente. Pediu que eu olhasse seus olhos pela última vez. Recebi o beijo mais doce que alguém já recebeu. A voz da menina voltou, sorridente à minha mente. Dizia, divertida. Isso é um sonho, mas um dia, ela volta. A piscina estará sempre aqui. Acordei.