A COLINA dos Dez ENCANTOS
Sadim abriu a janela e com sua costumeira contumácia arrogante observou os arredores. Seu reinado havia conquistado praticamente todo o espigão da Colina dos Dez Encantos; no entanto ainda havia algo para ser conquistado; sonho que o rei já não mais sonhava, uma vez que todos os baixios e cabeceiras das cercanias pertenciam ao seu reinado e este último, era questão de tempo. Depois de apreciar tudo com olhos perspicazes, ferinos e hediondos, voltando para o trono adornado com ouro e prata, sorriu sorrateiramente. Olhou-o no espelho e disse para si: "Sou o rei Sadim e quero toda a prata e o ouro do mundo somente para mim"! E isto muito o motivava e estimulava; mesmo porque, fazia dos lemas sua forma de expressão e audácia.
Um híbrido mesclado de autoelogio com autocomiseração invadiu-lhe a imaginação, porém nada duradouro: “Com toda esta fortaleza e material humano, em breve colorei a mão sobre a batalha final. Rei por rei, sou eu o Rei Sadim e imponho aos deuses e diabos que forneçam prata e ouro somente para mim!” E arreganhou os dentes num sorriso zombeteiro.
Recebendo das mãos do súdito-mor um jarro de chá nobre adocicado com mel de laranjeira, sentou-se confortavelmente sobre o objeto em que passava praticamente a maioria dos segundos do dia. Quando não estava sentado sobre o trono, recebendo as mensagens vindas além-castelo pelos núncio que juntamente com os sentinelas vigiavam os pináculos, estava em seu quarto conspirando em favor de seus desideratos e traçando planos para as conquistas vindouras.
Distante dali muitas léguas, uma batalha se travara. No outro lado da colina, ainda existia um rei menor que tentava a todo custo manter o seu suposto reino; mas que com a tomada dos demais por Sadim, estava com os seus dias contados. No entanto, sem saber até quando, resistia bravamente. A desvantagem numérica era imensa em relação aos homens de Sadim e havia motivos para tal, pois, toda vez que este lograva vantagem e vitória sobre outro reino combatente, todo o material humano passava a pertencer ao vencedor; com isto, o potencial do reino vencedor aumentava em escala progressiva.
Sadim, como em outras batalhas, enviara para lá espiões para analisar o contingente de combatentes inimigo, o qual enfrentaria e assim, montar estratégias e maneiras de ataque e defesa; afinal sabia plenamente que para conseguir êxito numa batalha, além de conhecer a fundo o material e potencial que possuía, era fundamental obter informações detalhadas sobre o exército inimigo. “Nenhum reino se domina, se nada sei sobre as deficiências, virtudes e poderio dos meus subalternos. Em contrapartida, nada angario, se nada sei sobre as fraquezas, fortalezas e o potencial inimigo. Com esforço, estratégias bem aplicadas e eficaz espionagem, o próprio inimigo mostra para o rei Sadim o caminho das pedras de suas deficiências e fraquezas; fatores que farão dele presa relativamente fácil”.
Mantendo parte de seus homens na guarda do castelo e cercanias, o rei enviou para a zona de conflito o restante dos súditos. Inexplicavelmente, incluiu na aventurosa batalha, parte dos Bobos. Dentre esses, fora enviado o mais revoltado e pensador do rebanho de Bobos, que de sempre em sempre estava às turras com os fidalgos e súditos-mor. Com sua rebeldia fora de precedentes, havia percorrido praticamente todos os palácios; fato que o credenciava ao novo reino, pois sabia de cor os pormenores dos reinos e forçadamente, era obrigado a denunciar e dar dicas dos reinos por quais passara.
Após semanas de embate, a batalha da Colina dos Dez Encantos chegara ao final com a transcendental vitória dos homens de Sadim. Ao voltar para o palácio foram recebidos com forte salva de tiros, folguedos e requintado banquete. Aqueles subalternos que eram mais achegados dos comandantes foram condecorados com medalhas de honra ao mérito, festividade que nada acrescentava e agradava ao Bobo rebelde.
Por saber o representava aquele momento e no dia seguinte, não passaria de mais um em meio a um monte de comuns, sua essência via tudo aquilo com tremenda desconfiança e descredito. “Bobos são aqueles que creem que o produto da conquista e vitória sobre o outro reino é deles e para eles. Aqui ou em qualquer outro reino, há apenas um rei”.
Definitivamente, em se tratando de poder, nada mais havia para ser conquistado pelo reino de Sadim. Provavelmente este poderia ser a ideia de qualquer outro rei, menos dele. Vorazmente mantinha-se inconstante, como se algo lhe importunasse os pensamentos, o que era verdade. Sua mente rodopiava em cima do pescoço e para satisfazer sua avidez pelas coisas incomuns e de poucos, nutria o ego com profundas pesquisas sobre a era dos Alquimistas; afinal se os alquímicos não conseguiram o êxito de transformar latão em ouro, poderia ser ele a realizar a façanha. Para tanto, reuniu alguns súditos de fácil aprendizado e orientando-os, construiu um laboratório avançado de pesquisas. Cada dia uma descoberta nova, mas nada de realizar a premissa da transformação.
Sadim viera ao mundo para descobrir e não para ser descoberto; porém, sem poder contar com literatura apropriada e elucidativa, transformar latão em ouro estava consumindo-lhe a paciência até quando lhe aparecera uma centelha de luz iluminando suas ideias, tirando-o daquele martírio de tentar e não conseguir; pondo fim naquelas experiências mal sucedidas. “A primeira e última batalha que o rei Sadim participa e sai derrotado. Jamais isto se repetirá na história deste império”.
Desconsolado, viu desmontar o laboratório e resmungando em sílabas, caminhou vagarosamente em direção do trono. Sentado confortavelmente e inebriado pelo seu monólogo de olhar fixo o ponto que somente ele sabia ao certo qual era, pôs-se a reestruturar suas ideias para o futuro; mas de antemão buscava algo que coubesse em seus planos de rei.
O tempo passava e nada acontecia de novo para fazer Sadim repensar o mundo à sua volta. A maldição da monotonia cotidiana era como se uma velhice modorrenta fora de época e contexto apodera-se do rei e de todo os ambientes do palácio. Inadvertidamente, ratos invadiam o palácio, o que despertou certa suspeita de invasão; por sorte ou falta dela, os arredores estavam em perfeita calmaria. Porém nem todo sonho sonhado e não realizado pode ser desprezado e sempre se apegava a esse lema, um rato pulou sobre ele enquanto ressonava à tarde.
Antes de gritar pedindo socorro aos súditos, bateu a mão sobre o bicho que cuspiu-lhe um pedaço de papel e nele estava escrito o quão inútil foi tentar transformar latão em ouro, pois o simples toque de seus dedos faria o que sua mente pensou e o fazer sem sucesso; sem pestanejar, imaginou que pudesse ser dono de toda prata e ouro do mundo. Para confirmar o prenúncio, meteu o dedo no criado mudo e imediatamente, o amarelo do ouro reluziu, iluminando o aposento.
- Rato, poderoso rato! Por que não viestes antes; pouparia-me daquela trabalheira dos diabos. – rapidamente e assustadiço, sem saber o que estava acontecendo e prevendo a morte, o camundongo enfiou-se no primeiro buraco que encontrou. “espere, espere! Tenho um queijo inteiro, inteiro somente para você”.
Como em todo sistema, a boa e necessária engrenagem é aquela que está em comunhão e harmonia com o conjunto sem ranger ou danificar os dentes, ordenou que lhe levasse o Bobo rebelde. Uma vez que todos os reinos lindeiros haviam sido apoderados pelo seu reinado, não havia mais motivos para mantê-lo nos limites do castelo, ainda mais tendo conhecimento de sua rebeldia e irreverência contra os mandos e leis estabelecidas. Internamente ao palácio, a constituição do rei estabelecia que: “para aqueles que adentram os meus limites, as leis do palácio. E para aqueles que se opõem às minhas leis, imperdoavelmente, o palácio das leis.” E dessa lei premissa, ninguém escapava.
Com extremo esforço e brutalidade, os súditos apresentaram o arredio Bobo ao rei Sadim. O infeliz soltava gosma pela boca de raiva, porém nada podia fazer; pois palavra de majestade não se volta atrás. Para acalmá-lo, amarraram-lhe os pés e as mãos ao pé do trono. O silêncio deu lugar aos berros ensurdecedores daquele que marcou as cartas das vitórias da conquista para o rei; isto Sadim não podia negar, afinal muitas conquistas passaram pelo crivo das indicações do Bobo que naquele instante, era visto como algoz e intruso. "No meu reino, inteligente é aquele que anda de cabeça baixa e o horizonte para ele é mera sentença vaga e inapreciável. Sabe por boatos que compõe o universo, mas jamais é visto: levantou a cabeça e descobriu-o, a guihotina mostra-lhe a sentença e o pescoço paga o pato".
Para aumentar ainda mais as suas posses, o rei já tinha tomado a decisão que faria dele mais um mastro de ouro, sobretudo por que o toque faria isso por ele: não deu outra. Repentinamente, o espírito do Bobo desprendeu-se do corpo físico e levitando pelo ar, vociferou: “Sinto em ter que dizer, reizinho de “meia trepada”, que não há fortalezas e palácios que durem mais do que o tempo. Que brilhe e aqueça mais que sol e que não dependa do sol, como é o caso da lua. Assim forçadamente e fora de época está chegando a minha hora, a sua vez também chegará". E sumiu no desabafo.
Encabulado com aquela aparição repentina e diabólica, uma vez que o Bobo já era uma estátua de ouro, Sadim foi ressonar suas elucubrações no leito. Passava por um dilema dilacerador, pois ao tocar com os dedos das mãos em algo, imediatamente o objeto tocado tornava-se ouro. Não imaginava que os dons e talentos são como facas que possuem gumes cortantes em ambos os lados, prontas para espetar-lhe a jugular.
Esses episódios, o fez repensar uma série de coisas em sua vida; afinal, necessitava de auxílio de seus súditos para praticamente tudo. O aturdimento subia lhe à cabeça, a ponto de mandar emendar retalhos e mais retalhos ao tapete vermelho que cobria todos os ambientes por quais transitava. E a cada pedaço emendado, o todo era esticado sobre o castelo, até cobri-lo por completo.
Os súditos e Bobos, ao notarem que, tanto o palácio quanto os arredores e toda as dependências pertencentes a Sadim seriam cobertas pelo imenso e interminável tapete vermelho, saíram em debandada e até o presente momento, não sabem que fim levou o rei. No entanto, partiram sabendo plenamente que Rei por rei, era ele o poderoso, invencível e único rei da Colina dos Dez Encantos!
- Sentença totalmente verossímil, sobretudo por que Sadim conquistou tudo que estava ao seu alcance e olhos; sendo ele, portanto merecedor de toda prata e ouro.
Falou o espírito do Bobo rebelde que perambulava cumprindo penitência pelas atrocidades que fizera ao contestar os reis daquelas paragens. Sua alma penada era obrigada a subir e descer os penhascos, cujo desnível beirava os mil metros em dez quilômetros de extensão, no mínimo vinte vezes por dia. Sina terrificante e inglória desse Bobo que não consegue ficar com a língua dentro da boca, está sempre batendo-a contra os dentes!
Atravessar as trevas de paraísos inóspitos e desérticos mais rapidamente que a velocidade da luz, são percalços que fazem parte de suas escolhas; ou seja, impor a liberdade, o livre pensar e desafiar aqueles que vieram ao mundo para desafiar mas não suportam ser desafiados. "Tentar e ser derrotado é mais sublime que esconder-se debaixo dos alvos véus da sórdida covardia! Assim parto para a eternidade".